Segunda Noite

81 10 4
                                    

Uma dor fina no interior da cabeça, uma visão turva, uma fraqueza nos músculos. Lisa acordava.

Ao afastar o rosto da madeira gélida, não sabia o quão avermelhado e marcado o mesmo estava. Pelos primeiros instantes não entendeu muito bem o que estava acontecendo. E mesmo quando sua visão ganhou contornos mais firmes, continuou confusa.  O que diabos fazia largada ao chão?

Só então as memórias começaram a rebobinar em sua mente. Enquanto ela tentava se erguer com as duas mãos pressionando a madeira, o que provocou um rangido tortuoso, lembrou-se das lâmpadas piscando, do armário sujo e dos enlatados que não deveriam estar ali. Contudo, foi ao lembrar da figura que havia a agredido com um taco de beisebol que Lisa apressou seus movimentos, erguendo-se alarmada. Estaria o invasor ainda lá dentro? Perguntou-se enquanto seus olhos atentos e temerosos percorreram a cozinha e a sala.

Não viu ninguém. O silêncio também era total. Com cautela, começou a andar pelos cômodos, procurando por alguém enquanto ao mesmo tempo tentava notar se algum objeto faltava. A única explicação plausível em sua cabeça era aquilo ter sido um assalto. Entretanto, contrariando suas suspeitas, nada parecia fora do lugar. Seu notebook, telefone, e todos os objetos valiosos que tinha, estavam espalhados pela casa. Não havia dado falta de absolutamente nada.

Então pensou em algo. Algo que a fez descer as escadas em passos ligeiros, voltando à cozinha. Lá, segurando as portas do armário entre seus dedos, pensava sobre o que havia visto ali na noite anterior. Ao abrir as portas do móvel, um suspiro aliviado escapou. Nenhuma lata de sardinha. Nenhuma! Na verdade, lá estava seu pacote de pão de misto assim como lembrava de ter deixado. Sem falar do próprio armário que, longe de qualquer poeira, estava tinindo de tão limpo.

— Foi só um sonho! — concluiu, sentindo o peso do mundo escorregar de suas costas. Ainda não entendia porque havia acordado sobre a madeira gelada, mas estava certa de que sua casa não tinha sido invadida na noite anterior, o que já era um grande alívio.

Após isso, seguiu seu dia normalmente. Comeu os mistos que tanto desejava e leu alguns livros na varanda do andar de cima.
Mal se deu conta e um dia inteiro já chegava ao fim. Sempre anunciado pelo tom alaranjado que atravessava por suas janelas. Antes de ser noite por completo, desceu a escada com uma xícara suja de chá que havia tomado durante a tarde. Na cozinha, lavava o objeto quando viu o primeiro vestígio da noite, algumas estrelas já pontoavam o céu. Sentiu-se calma ao perceber aquilo, não lembrava de já ter visto um céu tão estrelado como aquele antes. Na verdade, não lembrava de olhar para o céu quando estava cercada de tantos edifícios na capital. 

Passeando pela sala, decidiu que nada melhor do que música para tornar aquele momento ainda mais sereno. Ligou o aparelho de som que antes figurava sobre a estante e deixou que uma música tranquila como a vista de um lago tomasse conta do cômodo inteiro. Aumentou ainda mais o volume, a fim de que pudesse escutar do andar de cima, já que tudo o que queria agora era um banho em sua banheira.

Pisou nos primeiros degraus da escada, e a partir dali os rangidos pareciam crescentes, cada degrau parecia gritar mais alto que o anterior, mesmo que abafados pela música. Todavia, ao pisar no sexto degrau, Lisa não somente deixou de ouvir a música como as luzes também apagaram.

O corpo da jovem ficou estático, pensou sobre quando o mesmo aconteceu com as luzes na noite anterior, e realmente não estava gostando disso. Jurava que aquele momento também havia feito parte do sonho, mas agora já não tinha tanta certeza.

— São só problemas com a fiação, certo? — murmurou tentando se convencer, engolindo seco logo em seguida.

Seguiu seus passos, pois se desse um passo para trás e as luzes voltassem a acender era bem provável que ela tivesse um ataque. Ao chegar ao corredor teve que espremer o nariz para conter um espirro. Não conseguia enxergar com clareza, mas sentia um inconveniente cheiro de mofo e poeira. Tentou ligar a luz novamente, apertando o interruptor na parede por repetidas vezes, mas não obteve sucesso.

O sangue de Lisa começava a correr mais quente dentro de si. Seus olhos tremulavam inquietos e sua mão começava a suar. Seguiu dando passos pelo corredor, mas tentava ao máximo não provocar ruídos. Encontrou uma porta entreaberta, que dava em um quarto vazio onde uma janela deveria mostrar o céu, mas tudo que Lisa conseguia enxergar era uma espécie de fumaça branca que não lhe permitia ver nenhuma estrela.

Quis chorar naquele momento, tão irracional quanto uma criança. Sentia-se sufocada e desprotegida. Por um momento só queria abrir os olhos e se enxergar diante dos braços de alguém em quem confiasse.

Deu meia volta, saindo do quarto vazio, e estando novamente em meio ao corredor empoeirado. Caminhou rumo à escada, mas no meio do caminho ouviu a madeira ranger logo atrás de suas costas. Virou-se como um raio, avistando novamente a figura de alguém com um taco de beisebol em suas mãos, mas dessa vez foi mais rápida. Segurando o objeto no ar e com a força de seu espanto conseguindo tomá-lo das mãos do invasor.

Enquanto segurava o taco de madeira firmemente, percebeu, pelos contornos da figura, que se tratava de uma criança ou adolescente, seu tamanho não chegava sequer à altura dos seios de Lisa. A jovem percebeu também que se tratava de uma garota, pois viu os fios de seus cabelos caídos sobre seus ombros, enquanto a menor parecia paralisada pelo medo.

— Eu não vou machucar você. — Lisa assegurou abaixando o taco de beisebol na direção do chão — O que faz aqui?

Nesse momento sentiu algo que parecia um cano metálico repousar sobre as costas de seu crânio.

— Não atire! — a menor implorou enquanto Lisa sentia um calafrio levantar todos os seus pelos — E se ela não for um deles?

E então um silêncio tomou conta do corredor. Nesse momento, as pálpebras de Lisa se aninharam fortemente, esperando pelo pior.

— Fora da minha casa! — ouviu dessa vez uma voz adulta e masculina. Que graças aos céus parecia ter dado ouvidos ao pedido da menor — Um passo errado e eu estouro sua cabeça!

Sem questionamentos, Lisa largou o taco sobre a madeira, virando-se na direção da escada enquanto a todo momento sentia o cano de uma espingarda encostado ao seu corpo. Seu coração jamais havia pulsado tão rápido e desesperado. Começou a descer os degraus, finalmente sentindo-se livre do cano da arma, e então, de repente, as luzes estavam de volta. Acompanhadas ainda da música.

Lisa correu para a primeira janela que viu em sua frente, com seus olhos inundados em lágrimas e sua respiração ofegante. Havia inúmeras estrelas no céu, e inúmeras dúvidas em sua cabeça.


Continua...

A eu do outro ladoOnde histórias criam vida. Descubra agora