COMO UMA PESSOA SE TORNA A pessoa que ela é? Quais são os fatores de sua cultura, infância, educação, religião, condição financeira, orientação sexual, raça, interações cotidianas — que tipo de estímulos a levam a fazer escolhas que farão com que outras pessoas a odeiem depois?
Este relato é uma tentativa de identificar os elementos da personalidade de Frankie Landau-Banks que contribuíram para o que aconteceria depois. O que a levou a fazer o que ela fez: coisas que mais tarde ela veria com uma mistura
curiosa de arrogância e arrependimento. Os processos mentais de Frankie tinham
sido estimulados pelas aulas da srta. Jensson sobre o pan-óptico, seus encontros com Alfa, a proibição que sua mãe lhe fez de caminhar da praia até a cidade,sua observação do quanto Matthew ficou contente quando a socorreu depois do
acidente de bicicleta, e a raiva que sentiu de Dean por não se lembrar dela.Todos esses fatores tiveram um papel no que aconteceu depois. E aqui vai mais um:
Como você se lembra, Frankie estava lendo O código dos Woosters, de P. G.
Wodehouse, por diversão. Ela o havia deixado no chão da biblioteca na noite em que recebeu de Matthew o convite para a festa no campo de golfe, mas no dia seguinte voltou lá e o retirou. O livro não deve ser descartado como influência
em seu comportamento por uma série de razões.Primeiro, os jovens neste e em muitos outros livros de Wodehouse — vários dos quais Frankie também leu — são membros do Drones, um clube inglês de
cavalheiros povoado por rapazes bobalhões com os bolsos cheios de dinheiro e muito tempo livre. Ao contrário de todos os outros clubes descritos neste relato, o Drones tinha uma sede permanente. Havia uma piscina, um restaurante e diversos espaços para fumar, beber e compartilhar histórias. Bertie Wooster,Gussie Fink-Nottle, Catsmeat Potter-Pirbright e todos os demais personagens de Wodehouse criaram seus laços no colégio interno. Eles baseiam a maior parte de suas decisões éticas e financeiras (Devo lhe aconselhar numa aposta? Emprestar-
lhe dinheiro? Pedir-lhe um favor?) no fato de o outro ser ou não um velho colega de escola.
Os Drones estão sempre a fim de se divertir. Eles roubam capacetes da
polícia, apostam grana pesada em corridas de saco na escola, fazem os outros tropeçarem e caírem totalmente vestidos na piscina. E embora sejam, em sua
maioria, muito limitados para se tornarem membros do Parlamento ou editores de jornais — muitos deles ficam sem grana de tempos em tempos —, todos sempre serão Veteranos.Segundo, o sr. Wodehouse é um estilista da prosa dono de um talento tão surpreendente que Frankie chegou a quase dar pulos de alegria quando leu algumas de suas frases pela primeira vez. Até sua descoberta de Algo fresco na prateleira mais alta da estante de Ruth, numa manhã morosa de verão, a leitura de lazer de Frankie consistia basicamente em best-sellers de mistério que encontrava nas estantes giratórias da biblioteca pública a uma quadra de casa e os contos da Dorothy Parker. Os jogos de palavra divertidos de Wodehouse
penetraram nas sinapses dela como um verme em uma espiga de milho fresca.
“Ele falou com um certo que-é-isso em sua voz, e pude ver que,se não
estivesse infeliz de fato, ele estava muito longe de estar desinfeliz.”
— O código dos Woosters
Frankie leu essa frase, que os fãs de Wodehouse amam e repetem sem parar uns aos outros (apesar de ela ainda não saber disso), e sua mente começou a zunir.
— Vem me dar um beijo — ela disse a Matthew. Eles estavam na área
comum da biblioteca numa tarde de domingo, estudando. Frankie tinha terminado o que planejara fazer, e estava lendo Wodehouse para fazer companhia a Matthew.Ele se levantou da mesa, caminhou até o sofá em que ela estava sentada e beijou seus lábios. Não havia mais ninguém por ali.
— Hummm — ela sussurrou. — Agora estou desinfeliz.
— O quê?
— Desinfeliz. Antes eu estava infeliz.
— Por quê?
— Está chovendo, não tem nada pra fazer além de estudar, a máquina de
salgadinhos está quebrada. Sabe como é, infeliz.
— E agora você está…
— Desinfeliz.
Ela esperava que o rosto de Matthew se iluminasse ao ouvir aquela nova
palavra, mas ele passou a mão suavemente no queixo dela e disse:
— Não acho que essa palavra significa o que você acha que ela significa.
— O quê?
Frankie não achava que era uma palavra de verdade. Ela achava que… Ela achava que fazia parte da teoria que mais tarde viria a chamar de “positivo negligenciado”.
Prefixos como “in”, “não”, “an”, “des” e “im” fazem com que as palavras
fiquem negativas, certo? Pode haver partículas gramaticais que não estou citando aqui, mas falando de modo geral. Então, você pega uma palavra positiva como “refreado” e acrescenta um “i” para ter uma negativa: irrefreado.
Possível. Impossível.
Sensato. Insensato.
Quando há uma palavra ou expressão negativa — imaculado, por exemplo —
cujo positivo quase nunca é usado, e você decide usá-lo, você se torna um tanto quanto interessante. Ou pretensioso. Ou pretensiosamente interessante, o que às vezes pode ser bom. Em todo caso, você está desenterrando uma palavra morta.O positivo negligenciado de imaculado é maculado, o que significa moralmente impuro ou manchado. O positivo negligenciado de incômodo é cômodo — que significa suportável — apesar de quase ninguém usar nesse sentido.
Outras vezes o positivo negligenciado não é uma palavra. Nesses casos, é um positivo negligenciado imaginário, ou PONI.
(Frankie inventou tudo que está escrito depois da parte sobre maculado e cômodo, caso você esteja pensando em impressionar sua professora de português com seu conhecimento sobre PONIS.)
Alguns PONIS: impetuoso é alguém que age de cabeça quente, sem pensar,de forma impulsiva. A forma positiva não existe, então você pode inventar uma palavra nova e ilegítima.
Petuoso, significando cuidadoso.
Epto, significando competente, a partir de inepto.
Comodado, significando relaxado e confortável, a partir de incomodado.
Você pode criar mais PONIS ao fingir que algo é negativo quando não é —
porque, como você pode justificar, tem um daqueles prefixos no começo.
Impugnar significa questionar, atacar com palavras. Vem do latim in-
(contra) mais pugnare (lutar). Pugnar, por si só, tecnicamente significa lutar, tipo,brigar de soco. Mas para um positivista negligenciador de carteirinha, pugnar seria o mesmo que falar bem de alguma coisa.Outra técnica que o positivista negligenciador pode usar é dar um novo significado a uma palavra que já existe mas, por meio das convoluções da gramática, tecnicamente não significa o que você decidiu que ela significa. O positivo negligenciado de incriminar é criminar, que tecnicamente significa a mesma coisa — já que o in- não tem um peso negativo nesse caso —, mas é muito mais divertido se você usar significando o contrário. Criminar: fornecer um álibi a alguém.Quando você redefine uma palavra desse jeito, você está criando um falso positivo negligenciado, o oposto de um positivo negligenciado imaginário, de modo que pode ser útil chamar essas falsetas de FAPONI. Mas como falseta é uma palavra mais divertida, Frankie preferiu ficar com ela.Mais tarde, quando bolou tudo isso.Desinfeliz/ infeliz é uma falseta, ainda que Frankie não soubesse até que
Matthew explicasse isso a ela (não nesses termos, é claro).
— Desinfeliz quer dizer descontente — ele disse, se aproximando do
dicionário, que ficava num suporte alto. Ele virou algumas páginas. — Não quer dizer feliz, quer dizer… Olha, desinfelicidade quer dizer desgraça, ou melhor ainda, infortúnio. — Ele foi até a letra I. — Infeliz vem da mesma origem latina.
— Por quê? — Frankie ficou chateada por ele estar sendo tão literal. — Isso
não faz nenhum sentido, porque se você diz que desinfelicidade é o mesmo que infortúnio, então infelicidade deveria ser o mesmo que felicidade.
— Hummm… — Matthew correu os olhos pelo dicionário. — Des- é um
prefixo que pode ser usado tanto para tornar negativo quanto para intensificar.Frankie se largou no sofá.
— Gosto mais da minha versão.
Matthew tirou o dicionário do suporte e se sentou na mesinha.
— Meu pai trabalha com jornais — ele disse. — Não sei se já contei a você.
Como se todo mundo na escola não soubesse quem era o pai dele.
— Ele começou como revisor, e costumava nos fazer usar o dicionário durante os jogos na nossa casa de verão. Então eu aprendi, com medo da humilhação pública, a procurar qualquer palavra sobre a qual não tivesse certeza absoluta.Frankie não queria que Matthew estivesse certo. Na verdade, uma busca na internet mais tarde provaria que desinfeliz pode mesmo significar feliz, mas é uma formação a partir de infeliz, que provavelmente começou em O código dos Woosters, então hoje significa, de forma legítima, tanto uma coisa quanto o contrário.
Mas quando Frankie descobriu isso, já não falava com Matthew há um bom
tempo.
O que a incomodava não era o fato de Matthew estar certo — mas o fato de
ele não ser capaz de simplesmente curtir a palavra inventada. Ele precisava estar certo. E havia passado a mão em sua cabeça — no caso, em seu queixo, como se faz com um cachorro — quando a informou que, basicamente, sua astúcia ao propor desinfeliz tinha sido completamente atropelada pela memória descomunal que ele tinha, capaz de recordar detalhes obscuros do dicionário.
— Era uma piada — ela disse a ele.
— Eu sei — ele disse. — Mas só teria graça se você estivesse mesmo
inventando uma palavra, mas nesse caso não estava.
— Você não precisa me fazer sentir como se eu fosse uma idiota.
— Só estava ressaltando uma coisa que pensei que você gostaria de saber.
— Bela maneira de acabar com a graça.
— Não seja tão sensível, Frankie.
— Eu não sou.
— Você está fazendo bico por causa de uma palavra no dicionário.
— Então tá. — Frankie voltou para seu livro, mas não continuou a ler. Se ela
fosse tão sensível, pensou, não ficaria muito tempo com aquele garoto, aquele garoto maravilhoso que a deixava tonta quando a beijava.
Ela perderia aquele mundo em que havia entrado, os ritmos imprudentes das trocas de insultos, a autoimolação desavergonhada, o ridículo vertiginoso de Matthew e seus amigos. Ela logo entendeu que ser insistente ou carente era o caminho mais rápido para perder seu lugar entre eles.Ela não estava preocupada apenas em perder o afeto do namorado. Ela
estava preocupada em perder seu status entre os amigos dele.
Matthew tinha feito Frankie se sentir delével. Sim, essa era uma boa palavra para descrever.
Ela arrancou uma folha do caderno e começou a fazer uma lista.
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O Histórico Infame de Frankie Landau-Banks (E.Lockhart)
Teen Fiction***** Aos catorze anos, Frankie Landau-Banks era uma garota comum, um pouco nerd, que frequentava a Alabaster, uma escola tradicional e altamente competitiva. Mas tudo muda durante as férias. Na volta às aulas para o segundo ano, o corpo de Frank...