Imagine um pedaço de queijo suíço, daqueles bem cheios de buracos.
Quanto mais queijo, mais buracos.
Cada buraco ocupa o lugar em que haveria queijo.
Assim, quanto mais buracos, menos queijo.
Quanto mais queijos mais buracos, e quanto mais buracos, menos queijo.
Logo, quanto mais queijo, menos queijo.
Faz alguns anos que a população de Vertena aprendeu que esse silogismo servia também para o conhecimento. Quanto mais a gente aprende, mais percebemos o quanto ainda somos ignorantes. Quanto mais conhecimento, menos conhecimento.
Eu lembro até hoje quando o primeiro grupo resolveu se revelar ao público: as bruxas.
Eu tinha nove anos quando vi na TV um grupo de mulheres completamente normais, usando vestidos soltos e umas pedras penduradas nos pescoços. Seus cabelos eram compridos e indomáveis e seus olhos pareciam brilhar com o sol enquanto a líder do Coven falava.
"Durante anos nos escondemos nas sombras. Aceitamos fingir que não existíamos enquanto a população brincava com nossas lendas e esquecia da queima às bruxas realizada pela Igreja, tantos séculos atrás. Esqueciam de tantos crimes que nos levaram à clandestinidade. Hoje, resolvemos nos inserir de volta à comunidade, e esperamos ser recebidas de braços abertos."
"Vocês usam varinhas e conseguem fazer as coisas levitarem?", perguntou a repórter com um tom de deboche.
"Nós usamos varinhas, mas não como você pensa", a bruxa sorriu ao responder. "Nós não repetimos fórmulas mágicas nem criamos poções do amor. Nós acreditamos em energia. Karma. Espíritos. Natureza. Existem várias vertentes da bruxaria, e cada qual canaliza sua energia de alguma fonte. Mas isso é assunto apenas para iniciadas."
Eu me lembro como fiquei encantada com a breve explicação da bruxa. Eu amava tudo que era relativo à natureza e ali mesmo senti que gostaria de fazer parte disso.
"Qualquer pessoa pode se iniciar na bruxaria?", a repórter continuou.
"Sim, mas nem todas tem a vocação para isso."
"E como saber que você tem a vocação?"
Nesse momento, a bruxa sorriu com tanta bondade quanto malícia para a repórter.
"Minha querida, se você precisa perguntar, então você não tem."
Essa reintrodução para a sociedade foi acompanhada de muitos protestos contra as bruxas, de pessoas querendo que regulamentassem seus caldeirões e suas ervas (o que não fazia o menor sentido, já que elas não eram, na essência, más) até às que sussurravam que as fogueiras deveriam voltar a ser socialmente aceitáveis. Eu lembro de não ter entendido o ódio: as bruxas eram curandeiras do corpo e da alma. Eram hippies em sua maioria, mas existiam aquelas que seguiam vidas corporativas, artísticas, tudo.
Antes que o governo pudesse dar um parecer oficial sobre essa comoção, os vampiros chegaram.
"Nós viramos lendas, seriados de adolescentes, livros onde nos fazem brilhar no sol", a vampira bonitona falava para uma repórter que, não conseguindo esconder o medo, estava claramente desnorteada com a beleza que a mulher exibia com seus longos cabelos prateados. "Então resolvemos seguir o exemplo das bruxas e nos revelarmos também. Queremos quebrar alguns mitos sobre nossa espécie e, principalmente, queremos sair da clandestinidade".
"E quais seriam esses mitos?"
"Alguns bem simples, como alho e água benta. Total balela. Mas obviamente eu não vou revelar a fraqueza de nossa espécie, pois não confiamos em humanos que possuem séculos e séculos de violência àqueles que são melho... diferentes deles. Comecem a conviver conosco pacificamente que saberão", ela respondeu, lançando um olhar quase pornográfico à repórter, que já estava corada dos pés à cabeça.
Os vampiros tampouco tiveram uma recepção fácil. Mas ela também foi logo abafada pela aparição de lobisomens. Então as faeries. Metamorfos. Basicamente, a cidade de Vertena foi transformada em um livro de conto de fadas, até o momento em que as pessoas perceberam que era inútil protestar contra esses seres.
Aí que a coisa começou a ficar interessante.
Veja bem: eu, com meus nove anos, descobri que queria ser bruxa. Eu sentia na minha alma que era isso que eu deveria fazer e que aos dezoito anos procuraria um Coven para me iniciar. Eu sabia que virar bruxa exigia muito estudo, então tentava pôr as mãos em todo livro de bruxaria que encontrava pela frente.
As outras espécies também podiam "iniciar" os outros, mas de maneiras diferentes. Alguns argumentariam que seriam até mais fáceis.
Os lobisomens mordiam. A pessoa sentia muita dor no processo de transformação e, por alguns meses, ela deveria ficar reclusa com outros lobisomens durante a semana que antecede a Lua Cheia pois, pelo que é relatado, a transformação leva tempo para ser controlada plenamente. Mas tudo valia a pena, pois o iniciado também ganhava um desempenho físico incrível. Lobisomens geralmente eram atletas, professores de educação física, fisioterapeutas, treinadores, etc. Basicamente eram pessoas que tinham muita energia para gastar, toda hora. Quase hiperativos. Eu não sou muito fã de lobisomens, pra falar a verdade. Eles são muito barulhentos e "de lua" (trocadilho intencionado aqui).
Os faeries diziam não poder converter ninguém, mas os fae (como são "carinhosamente" chamados) são pouco confiáveis e extremamente mesquinhos, então muita gente se perguntava se eles não estavam apenas mentindo para manter sua linhagem pura. Eles eram mais vistos como a aristocracia da cidade. Eram altos, magros e elegantes, ostentavam ora jóias e roupas de marca caríssimas em bailes super VIP, ora roupas extremamente descoladas e na moda. Eles costumam ser atraídos pelo luxo, então é muito fácil encontrá-os em bancos, bolsa de ação, como analistas financeiros ou donos de alguma empresa que eles compraram.
Os vampiros, para a surpresa de ninguém, eram em sua maioria donos de boates, motéis, bares e restaurantes de altíssimo renome. Isso sempre gerou dúvida se a parte do "não podem tomar sol" é verdadeira. Embora seja possível vermos alguns vampiros andando durante o dia com a maior tranquilidade, a maioria preferia sair à noite mesmo. Seu processo de transformação era o que mais chamava a atenção do público, já que não era doloroso como o dos lobisomens. De verdade. Foi descoberto que a mordida de um vampiro causa uma sensação de prazer muito grande para o humano que a está recebendo, próximo a um orgasmo. Mas, assim como os fae, eles não eram muito abertos a receber gente nova em sua sociedade noturna. Na verdade, eles eram quase tão ruins quanto os fae nesse quesito.
Isso não os impedia de morderem pessoas. Eu tenho uma opinião que existe algo no sangue humano que os vampiros precisam, então antes eles faziam isso na clandestinidade. Hoje, as baladas noturnas possuem pulseirinhas coloridas dizendo se você tem interesse ou não de ceder um pouco de sangue para vampiros. Isso não causa a transformação e eu não sei exatamente a diferença entre a iniciação e o uso recreativo de sangue, e os vampiros não liberam esse segredo nem sob tortura.
Na minha opinião, vampiros e faes estão certos. Eu não acho que iniciações devam ser distribuídas a qualquer um. Acho que os lobisomens são só adolescentes burros que cresceram demais e esqueceram de desenvolver o cérebro.
Do jeito que eu estou contando, podemos até pensar que todas as pessoas querem se iniciar em alguma dessas sociedades, mas a realidade não é bem assim. Dois novos grupos agora existiam: o dos humanos que simplesmente gostavam de ser humanos normais, vivendo suas vidas normais sem nada paranormal, e os rad-cleaners.
Os rad-cleaners eram os que sussurravam sobre voltar a queimar bruxas e armazenar estacas em casa. Sobre comercialização de balas de prata e focinheiras para "semi-humanos". Eles abriram bares onde o sobrenatural não pode entrar. Criaram escolas só de humanos, para não misturar seus filhos com "esses seres". Coisas assim.
Isso já faz oito anos.
⛤
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Garota da Lua
FantasyO negócio sobre a vida é que ela toma os rumos que ela quer, independente dos nossos planos. Em um mundo onde você pode escolher ser quem você quiser - humano, vampiro, lobisomem ou faerie - Agnes sonha em fazer parte de um Coven desde os seus 9 ano...