"Na escuridão, eu vi um anjo. Contendo o dilúvio. Até que o céu caísse"
Sirens – Fleurie.
O LITORAL de Mangata estava ofendido com aquele comportamento nada inédito de seus moradores. O mar estava sentimental. Pulsante. Resumidamente excedido por ser entrecortado insistentemente pelos dedos de peneira de Scarlet, em mais uma noite de lua minguante.
A maré subia conforme o navio de pesca se apoiava nas ondas. O motor provocava marolas em um mar até então tranquilo, e os dedos ágeis de Lorenzo Fidalgo guiavam a embarcação para o destino já tão conhecido, o qual sua bússola veemente apontava. O objeto cinza e sem graça se encontrava fortemente preso a si, mesmo que no fim não tivesse utilidade prática alguma. A verdade era que, depois de mais de quinze anos fazendo praticamente o mesmo percurso ao menos uma vez por mês, Lorenzo poderia guiar seu pessoal de olhos fechados. Mas, como no fim era um homem fiel às tradições, a bússola herdada de seu pai era como um amuleto da sorte em suas caçadas, e ele fazia questão de a consultar todas as vezes por pura superstição. O objeto meio lento era seu mais precioso bem em alto mar, fazendo par, claro, ao colar de vidro que carregava enforcado em seu pescoço. Aquele pequeno frasco amarrado a um barbante era o verdadeiro segredo de todo o seu sucesso, não uma bússola cor de concreto com mais de um século. Mas poucas pessoas sabiam disso.
Tinham saído do cais a cerca de dez minutos, e, pilotando na velocidade que o faziam, Lorenzo sabia que em mais dez chegariam perto o suficiente do relevo fantasmagórico e sedutor que tão bem conhecia. Dez minutos era tempo de menos. Já estava na hora de se aprontarem.
– Garoto – chamou pelo filho, que gastava seu tempo roendo o que sobrara de suas unhas enquanto se agarrava à única cadeira que cabia dentro da cabine de comando.
Com o chamado do pai, o garoto – na verdade um homem feito e de barba – se aprumou, sentindo a expectativa e o medo o espetarem a fundo.
– Distribua os protetores de ouvido e os mande lançar a rede.
Ordenou, enquanto se debruçava calmamente para abrir a primeira gaveta debaixo do painel e expunha a seu filho o único material de proteção que precisavam. Acostumado com o procedimento. Tranquilo como era de costume, mesmo que estivessem a caminho de uma ilha conhecida por suas monstruosidades encantadoras.
O filho de Lorenzo não demorou para obedecer, puxando o saco plástico do lado de dentro, saindo pela porta pouco emperrada e se misturando rapidamente ao convés. O piloto não conseguiu evitar então, assisti-lo se misturar aos seus homens.
Aquela era a segunda vez que Lorenzo tinha a ajuda de seu único herdeiro para lidar com os dois homens que sempre o acompanhavam na pescaria. A primeira visita do rapaz, um mês antes, havia sido um desastre, e o surpreendia o fato de Isaque ter aceitado estar ali de novo. Ou, na verdade, alguma vez. Sabia do receio do filho, portanto, apreciava o sacrifício que fazia.
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O Caçador de Maresia
FantasíaLorenzo monopoliza o comércio de sereias. Sendo o único pescador em Mangata a deter o conhecimento de como fisgar uma "mulher peixe", Lorenzo vive por exatos dez anos vendendo sereias para aquários. É o negócio da família. É o que dá vida a cidade...