"Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui" A Estrada – Cidade Negra.
QUANDO Lorenzo recebeu aquele telefonema tão cedo de Beto, não imaginou que as coisas transcorreriam da forma que o fizeram, e se culpava por aquilo. Afinal, no mínimo três coisas o deviam o ter alertado que aquele não seria um dia convencional: sua sereia havia saído andando do aquário, seu filho havia estado no aquário e seu pão havia queimado na chapa. Três situações especialmente fora do ordinário, como todo o resto daquele dia.
Beto o adiantou por telefone que a sereia que vendera na noite passada tinha virado mulher e ido embora. Em seguida, gastou um pouco mais de linha para o xingar antes de finalmente desligar. Como se ele fosse o culpado pela natureza daqueles monstros!
Tomou uma ducha gelada para despertar, vestiu sua camisa quadriculada de sempre e comeu seu pão torrado. O gosto amargo era quase tão insalubre quanto a sua mente. Sereias eram mesmo uma praga, pensou. Viravam mulheres agora? Riria sozinho se não estivesse com a boca amarrotada. Comia rápido, para sair com mais pressa ainda.
Beto queria seu dinheiro de volta, tinha mencionado isso, e ele não se importaria em devolver se não fosse um desaforo. Beto era um folgado, e ele não o pagaria porcaria nenhuma, afinal, sua parte havia cumprido. De toda a trajetória daqueles seres, era responsável apenas pela pesca. Isso fizera bem. Vendera a mercadoria. Depois de vendida, virando mulher ou não, não era mais problema seu.
Virando mulher ou não.
Bradou para si, enquanto tomava seus remédios diários. Suas costas estavam bem naquela manhã, o que era uma boa notícia. A única boa notícia.
Virando mulher.
Ainda estava engasgado com aquela nova realidade, sem dúvidas. Não era imune à preocupação. Afinal, se aqueles monstros passassem a caminhar por ai, teriam um grande problema.
Sereias sempre puderam virar mulheres? Duvidava disso, senão já teria sido enforcado enquanto dormia por Nerisse.
Nerisse.
Claro, ai estava sua resposta! Nerisse o saberia dizer. Passaria por lá mais tarde. Primeiro, precisaria xingar Beto.
Saiu de casa apenas com sua carteira, celular e chaves, dirigindo até Maraberto com sua picape perdendo a carcaça pelo asfalto. Morava um pouco longe, quase afundado na praia, o que deu tempo para que montassem todo o infeliz cerco na entrada principal do aquário antes mesmo que ele chegasse.
Estacionou em uma das vagas reservadas para funcionários, apesar de, em teoria, não ser um. Conseguiu parar então, perto o suficiente da entrada principal para enxergar com nitidez a multidão com cartazes que bloqueava o portão bronze com textura de escamas. Franziu sua testa, batendo a porta do veículo e estudando a situação com cautela. Claramente, tratava-se de uma manifestação. Pequena, mas enfática.
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O Caçador de Maresia
FantasíaLorenzo monopoliza o comércio de sereias. Sendo o único pescador em Mangata a deter o conhecimento de como fisgar uma "mulher peixe", Lorenzo vive por exatos dez anos vendendo sereias para aquários. É o negócio da família. É o que dá vida a cidade...