Capítulo 2

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  Não dormi durante a noite, intercalava meus olhares entre a porta do quarto e o teto. Meus olhos estão pesados pela falta de sono e meu pescoço dói a cada movimento feito. Desço as escadas e preparo uma caneca de café enquanto como algumas bolachas de água e sal.

  Há uma janela logo acima da pia, dando vista a casa velha. Minha mente começa a vagar criando inúmeras histórias para explicar o possível motivo de seu abandono, mas desperto do meu sonho ao ver um vulto negro passar por sua janela embaçada pela maresia.

  Pisco algumas vezes e balanço a cabeça negativamente tentando expulsar o pensamento de que há a possibilidade de haver algum indivíduo morando lá, mas o aspecto mal acabado deve atrair aqueles que procuram esconder-se. Possivelmente um mendigo ou algum grupo de marginais, porém em meus poucos dias na residência vizinha não percebi nenhum tipo de movimentação estranha, exceto a pegada na noite passada.

  Estou decidida a telefonar ao locador em busca de alguma informação, talvez, até mesmo, pedir reembolso e procurar algum lugar mais próximo do centro da cidade.

  O relógio de parede da cozinha, pregado em uma parede de azulejos xadrez verde musgo e branco marca seis e meia da manhã. Salto no meio do caminho em direção à sala, deixando uma parte do meu café fervente cair sobre meus pés descalços, por conta de batidas fortes na porta.

  Meu coração acelera tanto por medo quanto pela dor que estou sentindo por ter queimado minha pele. Apoio a caneca na bancada e corro até a porta parando a alguns passos dela com as mãos caídas ao lado do meu corpo.  Varro a pequena sala de relance em busca de algo para me defender; encontro apenas um abajur, do que parece ser porcelana coral claro e sua cúpula beje possui pequenas flores no tom da parte que a sustenta. Bonito demais para estragar.

 Hesito antes de perguntar:

"Quem está ai?", minha mente tranquiliza-se por um breve momento, ao imaginar que possa ser o locador.

  Alguns segundos passam-se em silêncio até que uma voz grossa e rouca pronuncia:

"Eu gostaria apenas de um pouco de álcool, estou com a mão machucada."

  Dou um pequeno passo até a janela ao lado da porta e afasto levemente a cortina preta a fim de espreitar o sujeito. Encaixo meu rosto no pequeno espaço e imediatamente me afasto ao perceber que ele está me encarando.

  Pisco algumas vezes e abro as cortinas, não posso mais me esconder porque fui descoberta, mas posso continuar dentro de casa, segura. Minha mente começa a imaginar uma cena em que ele arromba a porta enquanto corro até a cozinha para buscar uma faca, para me defender. Volto à realidade e foco meu olhar em seu rosto impaciente. Seus cabelos são compridos e escuros, contrastando com seus olhos claros – verdes, ou talvez azuis. Seus lábios estão comprimidos e o meio de suas sobrancelhas está um pouco enrugado. Na lateral direita de seu rosto, uma cicatriz estende-se do canto dos seus olhos quase atingindo seu maxilar e seus braços imponentes,  relativamente bronzeados, apresentam incontáveis cicatrizes.

  Ele levanta sua mão, na altura do seu peito, e demoro um pouco para entender o que está fazendo; está mostrando o grande corte na palma da mão. Meu rosto molda-se em uma expressão de horror e não penso duas vezes antes de abrir a porta. Eu e minha necessidade de ajudar todo mundo.

"O que aconteceu?" indago desesperada.

 Ele dá dois passos largos com seus coturnos pretos - sujos de lama nas laterais, bem como sua t-shirt e jeans desgastados - e para na soleira da porta.

"Estava carregando algumas coisas e acabei me cortando, nada de mais." Ele responde neutro, identifico um sotaque carregado em sua voz - nórdico, talvez - frisando os "R's".

"Nada de mais? Acho que você precisa de pontos." Exclamo e me aproximo segurando sua mão com cuidado.

"Eu só preciso de um pouco de álcool para não infeccionar."

  Sinto seus olhos analisarem meu rosto com calma. E apenas ao sentir sua respiração quente bater contra minha testa, noto que estou mais perto do que deveria daquele estranho.

"Está tudo bem," ele puxa sua mão para si, com uma força desnecessária, e os músculos de seu braço contraem-se por debaixo de sua camiseta preta. "já estou acostumado." Seu tom de voz é extremamente ríspido e sinto-me ligeiramente desconfortável com sua presença.

"O que você estava carregando para ter feito algo assim?"

"Não é da sua conta, garota. Me dá logo a porra do álcool, o resto eu resolvo.".

  Encolho os ombros na defensiva e estreito os olhos. Estava apenas tentando ajudar, tento ignorar sua estupidez.

  Tensão cresce entre nós e fico calada enquanto retorno à cozinha em busca do líquido que ele precisa.

  "Essa merda 'tá pior do eu lembrava" ele murmuro indiferente enquanto anda atrás de mim e obrigo-me a controlar meus nervos.  

  Em meio a minha procura, que parece em vão, ouço uma das portinhas dos armários ser fechada atrás e mim e deparo-me com o rapaz segurando o tubo de álcool.

"Só usarei um pouco, trago para você mais tarde." diz simplesmente, pronto para sair.

"Como encontrou tão rápido? E sabia que é mal educado falar mal da casa dos outros?" apoio minhas mão na cintura, tentando não soar amedrontada por sua presença.

  Ele revira os olhos e dá uma risadinha.

"Eu conheço essa casa, e além do mais, ela não é sua." Ele dispara com desdém.

  Meu rosto queima de raiva e ajeito meu cabelo atrás da orelha – uma mania que tenho quando estou prestes a explodir.

"Com licença, meu querido, mas que direito você acha que tem para vir aqui e me tratar desse jeito? A residência pode até não ser minha, mas aluguei até o fim do verão, então quem manda aqui por esse período sou eu! Não pense que por já esteve aqui antes que pode entrar dessa maneira e me tratar mal." Disparo.

  Termino meu discurso e respiro profundamente, enquanto conto até 10 mentalmente.

  Ele apenas ri sarcasticamente e começa a andar até a saída.

"Eu não sei quem você acha que é, para falar assim comigo. Devia ter mais cuidado, afinal, com tantos caçadores na região, as presas ficam em desvantagem." Ele diz sombriamente me encarando por cima do ombro, seus olhos adotaram uma tonalidade mais escura que faz múltiplos arrepios percorrerem por minha espinha.

  Minha respiração acelera e sinto meu coração tentar sair pela garganta.

  Ele segura o frasco em sua mão direita, que não está machucada, e com a ponta dos dedos agarra a maçaneta.

  Antes de sair e fechar a porta, deixa suas últimas palavras no ar com um sorriso:

"Nos vemos mais tarde, Evangeline."


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Beijocas!

-S.

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