Uma folha

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— Porcaria, porcaria, porcaria. Cadê minha carteira? Não acredito que eu perdi! Me ferrei! — resmungava Marília consigo mesma.

— Como é que eu vou fazer pra pagar o sky train e voltar pra casa do meu homestay? Como é que eu vou fazer sem nem um centavo, sem cartões, e ainda em um país estrangeiro. Droga, tava tudo junto. Cheguei há poucos dias e já fiz merda. — Pensava Marília enquanto caminhava de um lado para outro na estação do sky train, em Vancouver, onde viera cursar a universidade.

Ela tentava relembrar seus passos para tentar descobrir a última vez que usara a carteira... fora na lanchonete da universidade. Mas tinha certeza de tê-la colocado de volta na mochila. Então, lembrou-se que a colocara junto do celular e que pegara o aparelho quando chegou na estação. Percorreu o caminho que havia feito, vasculhando o chão, mas foi uma tentativa infrutífera.

Para piorar, estava um frio de rachar naquele fevereiro. Lá fora, muita neve e pouca luminosidade. Esquecera as luvas e tirar as mãos do bolso era uma tortura. Cada vez que o fazia, parecia que ouvia os dedos se crisparem.

— Pense... pense... sua burra. Ainda estou com o passaporte por pura sorte. Só não estava na carteira porque não coube. Mainha e painho vão tentar me matar, mesmo pelo aplicativo de mensagens. Mainha, com certeza, vai conseguir algum jeito de realizar tal façanha. Vai virar manchete de jornal: "Mãe usa o poder da mente e, à distância, mata filha engasgada com um cartão de crédito".

— Já estou ouvindo o ribombar nos meus ouvidos: "Eu não te disse... Eu não te disse...". —  Sofria ela em antecipação.

— Eles me fizeram uma porrada de recomendações chatas. Chatas porque eram óbvias. E uma delas era pra não colocar todos os pertences juntos nem sair com tudo na bolsa. Mas eu não fiz o óbvio. Sou idiota mesmo. Pensei: aqui não é o Brasil, não tem perigo de assalto. Mas o perigo sou eu mesma, uma distraída. — Punia-se enquanto ponderava as alternativas.

Mas Marília sabia que não haveria jeito. Teria que recorrer aos pais no Brasil e aos seus homestays, os donos da casa em que estava hospedada enquanto cursava a universidade de economia ali, no Canadá. Saco. Ela sabia que ia levar muito esporro.

— Pai, por favor, não briga comigo! — foi a primeira coisa que Marília disse na ligação que fez pela internet do celular. Lógico que ela ligou para o pai, que era mais condescendente, na verdade, ele era um frouxo quando se tratava dela. Não haveria nada que ela fizesse que ele não perdoasse. Teria apenas que esperar passar o surto de desespero que ele sempre tinha antes de se acalmar.

— O que foi? O que aconteceu? Fala logo, filha. Quer me matar do coração? — dizia o pai do outro lado em um pânico precoce. — Vai dizer que escorregou na neve e se machucou? Falei pra comprar aquele troço de por na sola do sapato. Mas você é teimosa. Não me escuta. — Já se antecipava ele, sempre muito catastrofista. Em poucos segundos, ele já havia imaginado dezenas de desgraças diferentes.

Então, Marília explicou sua situação tampando os ouvidos para não escutar a esculhambação. O pai se desesperou. Precisaria cancelar os cartões e pedir novos. Como faria para enviar dinheiro se até os cartões de viagem ela havia perdido. Santa Mãe de Deus. O que fazer?

— Filha, fale com seus homes, peça ajuda para ir pra casa. — orientava seu pai sobre a providência mais imediata depois de passado o tal surto inicial, muito previsível.

Era o jeito.

Hi, Jack. Its Marília. — Começou a digitar no aplicativo para falar com o seu homestay. Mas, para sua surpresa, um rapaz se aproximou e, gentilmente, perguntou-lhe se estava com algum problema e se poderia ajudar. Ele deve ter percebido seus gestos eloquentes e desesperados e escutado suas lamúrias em português, tudo no melhor estilo brasileiríssimo.

Yes, a big trouble. — Sim, um grande problema, respondeu suspirando e revirando os olhos para o alto.

Marília era tímida e sentiu-se constrangida de falar com um estranho. Mas ele foi gentil e educado, então ela esclareceu que acabara de perder sua carteira com tudo dentro.

O rapaz, que depois soube se chamar Sean, ofereceu-se para pagar sua passagem para casa. Marília cogitou que o valor era pequeno e ela poderia ressarci-lo depois e que, afinal, ela não tinha alternativas melhores. Então, enviou uma mensagem de texto para o pai, mentindo que encontrara uma colega que a levaria pra casa. Se dissesse que estava sendo socorrida por um desconhecido, ouviria uma enorme preleção sobre os riscos de aceitar ajuda de estranhos. As outras questões seriam administradas depois.

Entraram juntos no mesmo vagão. Descobriram que estudavam na mesma universidade em Vancouver. Ele estava terminando o curso de criminologia, queria seguir carreira policial. Ué? O curso dele era na mesma faculdade de ciências sociais que o curso dela. Coincidência interessante, ela avaliou. Ele costumava ir de carro para a universidade, mas naquele dia houve um snow storm alert, alerta de nevasca, e seria mais seguro ir de trem. Mais uma mãozinha do destino, concluiu ela.

Marília tentava manter as mãos nos bolsos, mas tinha que responder às mensagens do pai, ainda preocupado, e agora da mãe enfurecida, soltando os cachorros. Atitudes muito previsíveis de ambos. Parecia um script pronto, imutável.

— Tome, use minhas luvas. — disse o rapaz, descalçando-as e apresentando-as em oferta.


Este é o início da história da Marília e do Sean. O que acharam do gesto altruísta do rapaz oferecendo as próprias luvas? Qual será a reação da Marília?



Help: uma moça em apuros (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora