Capítulo 13 - A Batalha Decisiva (Parte 3)

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Pensei que havia adquirido uma boa taxa de tolerância a dor.
Faz pouco mais de dois anos que cruzei espadas com os goblins que vieram do Dark Territory que
surgiram na caverna ao norte de Rulid. Durante a batalha, meu ombro esquerdo foi seriamente
ferido pela arma do líder deles, que apesar de ter sido longe de ser algo fatal, a dor foi
avassaladora, na verdade, o medo de ter me ferido gravemente me fez sofrer mais ainda, acabei
ficando encolhido e nervoso naquela ocasião.
Essa experiência em Underworld deixou bem claro a minha maior fraqueza. Provavelmente
originada de meus longos anos lutando em mundos onde a dor era inexistente graças ao sistema
que tinha função de absorção de dor instalada nos dispositivos NerveGear e AmuSphere. Acabei
me acostumando com isso e minha resistência a dor foi completamente perdida.
Desde então, comecei a treinar esse meu lado, controlando meus movimentos, jamais
retrocedendo aos golpes que certamente me acertariam durante as práticas com espada de
madeira na academia que fazia com Eugeo. Por consequência, sofri muitas feridas e machucados
visando única e exclusivamente condicionar meu corpo para ficar mais resistente a dor.
Credito à essa maneira de treinar que acabou me fazendo permanecer em pé e lutando diante
todas as feridas sofridas em minhas batalhas contra os Integrity Knight, do contrário, estaria
paralisado de medo. Além do mais, em Underworld, era possível recuperar-se por completo
mesmo se mãos e pés fossem arrancados, contanto que sua Vida não cheguasse a zero.
Todavia...
No final dessa longa viagem, aprendi uma amarga lição de que nem tudo obedece os padrões
programados.
O Sword Golem, a arma militar criada pela Administrator, possuía poder e velocidade
extraordinários. Obtendo um desempenho muito além do parametrizado. De fato, já era um
milagre ter conseguido bloquear o seu primeiro ataque, entretanto, o segundo golpe vindo de sua
pata traseira foi mais rápido do que meus olhos puderam captar.
A espada, que fazia às vezes de perna do golem, estraçalhou meus órgãos internos. Pude sentir
nitidamente aquela lâmina gelada rompendo meu estômago no momento do golpe, porém,
estranhamente a dor maior foi a de ser arremessado no ar, bater com as costas contra a janela e
desabar no chão. O choque criou uma onda de dor progressiva que tomou conta de todo meu
corpo, me fazendo acreditar que tinha sido partido ao meio.
Não conseguia mover meus dedos, assim como não conseguia sentir os membros inferiores. Com
minha visão turva, não tinha como confirmar se realmente fora cortado em dois.
Outro fator que era um verdadeiro mistério é de como pude manter a habilidade de pensar. Ouvi
dizer que quando o ferimento é muito extremo, o cérebro desliga partes sensíveis para manter-
nos lúcidos e evitar danos maiores. Seja como for, o desespero gritava mais alto do que a própria
dor em si.
Meu marcador de Vida deveria estar em queda vertiginosa. Provavelmente não teria mais do que
dois minutos antes de zerar.
A Integrity Knight Alice, com toda a certeza, tinha menos tempo ainda. A mulher cavaleiro, caída
no chão ao longe, tinha sido apunhalada diretamente em seu peito também pela espada dessa
monstruosidade. Pelo que pude perceber, ela tinha evitado no último instante que o golpe
acertasse seu coração, todavia, seu sangue continuava se derramando a um ritmo alarmante. Era gigante a possibilidade de que nem sequer as artes sagradas curativas do mais alto escalão
poderiam deter aquilo.
Essa incrível existência, esse Fluctlight que rompeu o selo do olho direito, o qual está presente em
todos os habitantes de Underworld, com somente sua força de vontade, estava sendo extinta
diante de mim.
A vida de meu insubstituível melhor amigo, Eugeo, que estava fora de meu raio limitado de visão,
metaforicamente tremulava como uma vela a mercê do vento. Sua força já havia superado a
minha há um bom tempo, entretanto, esse não era um inimigo comum que pudesse ser derrotado
com simples habilidades de espada.
Minha visão nebulosa conseguiu registrar o avanço do Sword Golem, que em cada passada
causava tremores no chão, como uma banda marcial martelando em minha cabeça.
Instintivamente tentei gritar para meu amigo ter cuidado, porém, somente um leve gemido saiu
de minha boca. Infelizmente percebi, que mesmo que conseguisse gritar para Eugeo fugir, de nada
adiantaria, pois ele certamente não nos abandonaria. Muito provável que estivesse agora
agarrando a empunhadura da Blue Rose esperando o momento para lançar-se ao ataque na
tentativa de salvar Alice e eu.
Minha única e pífia crença era de que essa terrível cena não ocorresse somente se a
Administrator resolvesse poupar sua vida... devido a sua restrição de preservar tudo.
Na sala da Grande Biblioteca, a pequena Cardinal havia explicado que as essências de certos tabus
estavam enraizadas no interior de cada um dos habitantes desse mundo. Que mesmo ela, não
poderia ir contra, como demonstrado quando tentou colocar sua taça de chá sem sucesso em
contato com a mesa, pois não tinha um pires embaixo.
Entretanto, também explicou que havia certas manobras que poderiam ser feitas para burlar esses
impedimentos. A Administrator certamente tinha esbarrado com essas restrições e criado diversos
meios para suplantá-las, como é o caso de criar um arma alheia as suas vontades, podendo mover-
se de forma automática para chacinar seus inimigos, eliminando o fator de sujar suas próprias
mãos diretamente.
A dor tão feroz quanto chamas estava agora se transformando gradualmente em um torpor
gélido.
Senti minha Vida chegando ao zero. E quando isso acontecer, provavelmente serei expulso desse
mundo, despertando dentro do STL com o pessoal do RATH prestes a eliminar Underworld...
juntamente com todos os seus fantásticos Fluctlight, incluindo Alice e Eugeo...
A angústia tomou conta de meu ser. Desejei que minha morte aqui fosse realmente uma morte
verdadeira, quis desaparecer ao lado dessas duas magníficas almas. Pois do contrário, como me
desculparia com eles ao acordar fora de perigo do outro lado enquanto eles pereceriam aqui?
As quatro patas do golem foram aproximando-se e o resplendor dourado dos cabelos de Alice
começou a sumir lentamente de minha visão. Até mesmo a luz da janela tinha sumido de meu
campo visual.
Foi quando essa suave, porém, incrível voz surgiu em meus ouvidos.
“Use a adaga, Eugeo!”
Tinha um timbre gentil que parecia me acariciar. Continuei concentrado ao diálogo que se seguiu
entre Eugeo e aquela linda voz de soprano enquanto minha mente mergulhava em um nada.
A dona da voz deu algumas instruções antes que anunciar que conseguiria algum tempo. Nesse
instante percebi que o som vinha próximo ao meu ouvido. Senti por breves instantes algo morno
tocar minha bochecha direita.
O calor desse leve toque trouxe uma ponta de sensibilidade de volta para meu corpo.
Desesperadamente, juntei forças para abrir os olhos e consegui ver uma pequena sombra saltando
em meio ao meu sangue que identifiquei como sendo...
...Uma pequeníssima aranha negra.
Soube que não poderia ser outra a não ser minha companheira de viagem, Charlote. O familiar de
Cardinal que ficou incógnita comigo durante dois anos recolhendo informações. Mas, porque ela
estava ali nesse momento? Já tinha sido destituída de sua função desde o instante em que se
revelou na Grande Biblioteca e desapareceu por entre as estantes de livros.
A dor e o medo deixaram minha mente por alguns tempo por causa da surpresa. A criatura, que
era demasiadamente minúscula, começou seu ataque ao gigantesco golem enquanto eu apenas
podia observar.
A grotesca criação da Administrator não diminuiu seu avanço em nenhum momento, dando largas
passadas com suas quatro patas, cobrindo uma distância absurdamente maior do que a que
percorria a pequena aracnídea. Como ela pretendia conseguir algum tempo para Eugeo contra
aquela monstruosidade?
Ao menos foi isso que pensei antes de deixar escapar um fraco gemido ao ver o que se sucedeu
logo após.
A aranhazinha começou aumentar incrivelmente rápido o seu tamanho. A cada passo, seu
tamanho dobrava em uma progressão geométrica, duas, quatro, oito, dezesseis vezes e assim por
diante.
E antes que me desse conta, minha bochecha encostada no chão pode sentir os fortes tremores
que as patas de Charlote estavam produzindo a cada pisada no tapete.
Fazendo um grande ruído metálico, o golem finalmente notou a nova inimiga. As duas gemas que
compunham seu pseudorrosto cintilaram como se estivessem avaliando o oponente.
Emitindo um guincho estridente e ameaçador, a aranha negra, cujo tamanho facilmente superava
os dois metros, tinha também um estranho brilho em seus quatro olhos.
Mesmo que seu corpo alcançasse a metade do golem, a super aumentada Charlote tinha um
exoesqueleto que parecia muito resistente, em contraste com seu inimigo que era somente um
aglomerado de espadas longas. Com sua casca brilhante refletindo a luz noturna e garras
pontiagudas que cresceram em suas oito patas, parecia uma ameaçadora criatura feita totalmente
de cristal negro. Duas de suas patas eram visivelmente largas, funcionando como longos braços e
suas garras eram suficientemente grandes que se assemelhavam às espadas.
Elevando sua pata direita, Charlote atacou a perna esquerda do golem. Um imenso impacto
metálico, como de duas espadas gigantes se chocando, ecoou por toda a sala. Faíscas alaranjadas
iluminaram o local com uma luz cegante.
Esse flash fez o contorno da silhueta de Eugeo, que já havia começado a correr sem que eu
notasse.
Entretanto, não corria para o golem e tampouco para Alice ou para mim.
Foi em direção ao adorno circular na parede ao sul, conforme instrução dada por Charlote, para
cravar a adaga no disco de elevação.
Enquanto isso, o único golpe desferido por Charlote, apesar de desequilibrar o Sword Golem,
pareceu não tê-lo de fato causado dano, pois ele logo se endireitou e já partia para o ataque,
levantando seu braço direito.
Provavelmente, ele havia identificado a aranha gigante como sua inimiga, pois seus orbes
começaram a brilhar fortemente enquanto girava o braço com um rugido metálico.
Charlote confrontou o ataque com sua pata dianteira esquerda. A espada dourada e a garra de
cristal negro mais uma vez colidiram, causando outra violenta onda de choque. O tremor sacudiu o
solo e vibrou dolorosamente meu corpo.
O simples golpe do golem, que facilmente acertou Alice e eu, foi detido pela aranha que
amorteceu o impacto flexionando suas patas traseiras.
A dupla titânica continuou a luta feroz tentando destruir um ao outro por mais algum tempo. Até
que a carapaça resistente de Charlote começou a apresentar algumas rachaduras frente ao
massivo peso dos golpes sucessivos daquelas três espadas que formavam os braços do golem,
fazendo com que suas articulações rangessem de tanta pressão.
Ficaram cruzando e medindo forças, até que em três segundos para ser mais exato, o impasse foi
rompido com um ruído surdo vindo da pata dianteira de Charlote. Um fluído leitoso jorrou do
corte, tingindo seu corpo negro.
Ainda assim, a aranha não retrocedeu e saltou para frente com os restos de sua pata direita em
frangalhos. Seu objetivo era se colocar entre o espaço das três grandes espadas que formavam as
costas do golem. A luz violeta que brilhava lá... o Piety Module.
Usando sua garra, avançando como um relâmpago negro apunhalou o prisma, a maior fraqueza do
monstro metálico... e nesse momento tudo aconteceu.
Várias espadas se alinharam na esquerda e na direita da coluna vertebral do golem e sua caixa
torácica se moveu...
Após um som metálico contundente como de uma guilhotina, as quatro lâminas de cada lado do
corpo do gigante se cruzaram, capturando entre elas a valente aracnídea. Inevitavelmente,
Charlote teve sua perna direita amputada, com novo jorro de fluído viscoso brotando dos horríveis
cortes.
A caixa torácica do golem se abriu lentamente e a metade da perna decepada caiu de seu interior.
Quem sabe convencido de sua vitória, mas os olhos do monstro piscaram rapidamente, como se
não tivesse entendido o que a aranha havia tentado fazer.
Charlote, contudo, permaneceu com sua intenção de seguir atacando, mesmo tendo perdido suas
patas dianteiras.
Com um guincho mais agudo do que o primeiro, ela saltou com seus cotos destroçados e líquido
saindo de sua boca.
Entretanto, seu ataque não chegou ao objetivo. A perna do golem levantou mais rápido do que se
esperava, cortando as duas patas esquerdas de Charlote, fazendo a imensa aranha desabar no
chão com um golpe seco.
“Isso é o suficiente, corra, por favor!”
Tentei gritar.
Nunca havia conversado diretamente com aquela aranha chamada Charlote. Porém, ela sempre
esteve me observando. Inclusive, foi ela que me orientou em como salvar as flores de Zephyria
que cultivava no jardim do dormitório, quando foram cortadas por Raios e Wanbell. Ela havia
interferido diretamente em meu auxílio mesmo desobedecendo à ordem primária de sua missão
de apenas observar.
Ela tinha sua própria individualidade, uma existência preciosa. Não poderia morrer em uma
batalha tão desesperada apenas para ganhar tempo.
“Corra!”
Tentei gritar novamente, porém, não produzi nenhum som.
De algum jeito, levantou-se com suas patas restantes, para novamente se lançar a outro ataque
temerário. Mas dessa vez, o golem teve mais facilidade ainda para repelir, impelindo seu braço
esquerdo diretamente em seu torso vindo de cima, tão rápido quanto o ataque de um escorpião
traçando um elegante arco.
“A-Ah...!”
Um ruído estranho e baixo demais para ser considerado um grito, saiu de minha garganta.
E então aconteceu.
Um repentino brilho violeta encheu minha visão. Era um resplendor que já havia visto antes.
Propagações luminosas surgindo de todos os cantos da sala, formando letras minúsculas. A mesma
luz que saiu da adaga de Cardinal quando utilizei para salvar a subcomandante Fanatio.
Eugeo deve ter alcançado o disco de elevação e cravado a adaga que tinha lá. Não estou certo o
que pode acontecer, entretanto, ele não desperdiçou o tempo que Charlote sofreu para conseguir
a custo de sua vida.
Banhada na luz que surgiu, a aranha negra pisou forte no chão com as pernas que ainda possuía,
procurando manter-se em pé mesmo com seu corpo todo perfurado e mutilado. Ainda assim, sua
gigantesca estrutura não se sustentou e caiu pesadamente no chão, sobre uma grande poça de
sangue branco enquanto o golem retirava seu braço afiado com um som aquoso de seu torso.
Os quatro olhos alinhados haviam perdido a maioria daquele vívido brilho inicial. Tendo
confirmado o estado do disco de elevação, Charlote sussurrou com a voz fraca.
“Graça aos deuses... você conseguiu.”
Suas pernas tremeram e se recolheram enquanto mudava sua visão. Seus dois pares de olhos me
fitaram docemente.
“Estou feliz... de ter podido lutar junto de vocês... nessa...”
Suas palavras cessaram como se dissolvidas no ar. A luz escarlate de seus brilhantes olhos
redondos piscou e desapareceu.
Percebi novamente minha vista ficar turva, porém, dessa vez era devido às lágrimas que rolavam
em meu rosto ao sentir a sombra da morte se aproximar de nós. A gigantesca aranha negra se
encolheu silenciosamente. A poça de sangue rapidamente evaporou, deixando para trás nada mais
do que um cadáver menor do que a ponta de meu dedo, virado para cima com suas patinhas
contraídas.
O golem se virou instantaneamente perdendo todo o interesse pela vida que acabara de ceifar e
olhou diretamente para Eugeo.
A silhueta gigante girou noventa graus e cravou fortemente a ponta de seu pé estendido no solo.
As ondas de luz violeta continuavam ondulando por todos os lados.
Lutei com forças que não tinha para mover meu pescoço alguns centímetros para avistar a fonte
da luz.
Um anel de luminoso vibrava no chão no lado sul da habitação circular, pertinho da janela de
cristal inquebrável. Era o próprio disco de elevação que Alice e eu usamos para chegar nesse
andar.
A última adaga feita por Cardinal estava cravada bem no centro do objeto como se fosse uma cruz
em uma lápide, coberta por uma intensa luz violeta.
As adagas foram criadas de recursos aos quais tinham sido cultivados durante duzentos anos, as
mechas dos cabelos da pequena sábia, e podiam abrir um portal que ligava Cardinal diretamente
ao alvo que tivesse sido apunhalado por umas dessas pequenas armas.
Eugeo cravou o último recurso que tínhamos contra a Administrator no disco de elevação
seguindo as instruções de Charlote, a aranha negra.
O objeto circular parecia um grande holofote resplandecente, propagando ondas de alta
frequência como um conjunto de diapasões ressoando uns contra os outros. Continuou vibrando
até a última adaga se desfazer, completando o processo de conexão.
Eugeo, tinha se colocado ao lado cobrindo os olhos com seu braço direito, incapaz de suportar a
magnitude daquela luz.
O Sword Golem parecia um tanto confuso em seu avanço, pois titubeou levemente, fazendo suas
articulações rangerem. Possivelmente não compreendendo o fenômeno em sua frente.
E assim que a intensidade da luz foi abrandando, uma superfície lisa de cor marrom escura, como
um quadro retangular em pé, surgiu dentro do espaço antes iluminado. Não, para ser mais exato,
não era apenas um tablado de madeira comum e tampouco era circular ou totalmente liso. Pois
deslocado um pouco para o lado direito da estrutura, havia uma saliência metálica, como uma
maçaneta prateada... sim, de fato, era uma porta.
Enquanto me esforçava para raciocinar sobre a situação em minha frente, houve mais um flash
luminoso e as ondas vibrantes de antes se desvaneceram completamente, jogando a sala outra
vez a pouca luz.
Tanto Eugeo quanto eu ficamos olhando em silêncio aquela porta com cor e formato familiar.
Talvez por não saber lidar com as anomalias, o monstro metálico tenha reiniciado seu sistema para
fazer update, só algo assim explicaria a parada repentina de seu avanço com a pata dianteira
direita esticada para frente, suspensa em pleno ar.
E nesse momento...
Um leve ruído quebrou o silêncio recém-estabelecido no ambiente vindo da maçaneta e a porta
enfim abriu sem fazer barulho.
A presença daquele objeto ali em si já era uma quebra inacreditável da realidade, pois se
mantinha em pé como se fizesse parte de uma parede invisível, conectada em outra dimensão. Ao
abrir, a luz que vinha da janela próxima não se filtrava pela abertura, atravessando como
normalmente deveria acontecer. Havia um espaço que estava definitivamente dentro daquela
porta, um espaço delimitado pelo seu marco feito de madeira rústica que não pertencia ao
centésimo andar da Catedral Central. E essa dimensão abrigava uma densa escuridão.
Mesmo com a folha da porta abrindo, a visão de seu interior ainda era impossível. Nesse instante,
o golem, recuperado de sua indecisão inicial, começou a se aproximar novamente, parecendo
perder o interesse ao repentino surgimento da misteriosa porta.
Provavelmente, havia retomado sua instrução primordial e seu alvo agora estaria a menos de três
passos de seu alcance. Com o brilho insano direcionado para Eugeo, a monstruosidade deu um
passo, dois e...
Inesperadamente, uma surpreendente quantidade de luz inundou a escuridão contida no interior
da porta. Uma explosão luminosa de um branco puro irrompeu horizontalmente do acesso criado.
O impacto desse fenômeno fez quase meus ouvidos sangrarem, superando em muito qualquer
efeito de arte sagrada que já havia presenciado até o momento. O mais próximo de uma
comparação que podia chegar era que aquilo parecia ser um relâmpago disparado a queima roupa
diretamente sobre o Sword Golem, fazendo-o contorcer-se como se tivesse sentindo uma dor
excruciante, incompatível de um ser que em tese não deveria estar vivo. Transformando-o em
uma gigantesca massa carbonizada.
O rugido do ataque ficou reverberando por vários segundos no local antes de desaparecer
totalmente. O golem, quem deveria possuir uma durabilidade próxima à invulnerabilidade total,
foi detido...
Sua parte superior ficou tremendo e rangendo de forma errática, com fumaça saindo da superfície
de seu corpo, com as lâminas de seus membros incandescentes enquanto os orbes que
compunham aqueles terríveis olhos piscavam desordenadamente.
O monstro ainda assim continuava tentando cumprir sua missão, retomando seu avanço,
entretanto, foi novamente atingido em cheio por outro relâmpago da mesma potência do
anterior, saindo de dentro da porta. Se aquilo fosse realmente uma arte sagrada, era com toda
certeza um encantamento que devia requerer uma extensa combinação de comandos para ser
ativado. A potência daquele raio era incrível, deixando o golem com praticamente todas suas
partes completamente carbonizadas.
O constructo de metal rangia estridentemente, soltando faíscas, com seu equilíbrio totalmente
destruído, mas ainda assim fazia menção de avançar.
Porém, mal tinha levantado uma de suas destroçadas patas e um terceiro rugido tomou conta do
lugar.
Golpeado mais uma vez pelo relâmpago branco, com duas vezes a potência dos dois primeiros, a
arma militar que superava os cinco metros de altura foi completamente destruída.
Os poucos pedaços íntegros ainda restantes da criatura foram lançados ao ar, passando pelo lado
direito da Administrator que continuava a flutuar calmamente e foram explodir na parede mais
afastada da enorme sala, fazendo toda a Catedral Central sacudir ao receber o impacto.
A mortal arma, o golem de espadas, finalmente parou seus movimentos, entretanto, as pontas de
suas patas ainda relutavam em parar de tremer, mostrando que sua Vida não tinha se esgotado
plenamente daquela estrutura disforme. Mas o seu estado denunciava que logo sua vitalidade
chegaria à zero.
Pensei rapidamente que ele morreria antes de mim ou de Alice enquanto voltava meus olhos para
o interior escuro daquela porta outra vez. Sabia exatamente quem iria cruzar por ela. Não havia
ninguém nesse mundo além da própria Administrator que pudesse lançar disparos tão rápidos e
tão imensamente poderosos que não fosse ela.
A primeira coisa a surgir da escuridão foi o seu cajado sendo carregado por uma pequena mão.
Seguido a isso, a manga comprida e larga sobre o pulso fino. Algumas camadas de tecido que
pertenciam a sua capa, colocada sobre a túnica negra e um grande chapéu angular, decorado com
um penacho. Os sapatinhos baixos mal apareciam na parte inferior de sua longa batina enquanto
dava pequenos e silenciosos passos sobre o tapete da enorme sala.
A luz da lua finalmente a alcançou, iluminando seu cabelo castanho de aspecto suave, tocando
levemente seus pequenos óculos arredondado e emoldurado em prata. Seus grandes olhos,
contrastando jovialidade eterna com sua ilimitada sabedoria por trás de finas lentes.
A pequena sábia, Cardinal. A pessoa que possuía uma autoridade de acesso ao sistema
equivalente à da Alto Ministro, a Administrator. Vivendo como sua contraparte na sala da Grande
Biblioteca, um lugar isolado durante um tempo que poderia ser comparada com a eternidade.
A garotinha que calmamente saiu de sua passagem, se banhou na luz azul prateada da lua e parou
seu avanço após dar alguns pequenos passos.
Ao fazer isso, a porta em suas costas fechou imediatamente.
Como ela havia conseguido entrar nesse quarto contendo uma barreira contra si, diretamente da
Grande Biblioteca?
Com certeza foi devido à chave, melhor dizendo, a adaga que Eugeo carregava. Que sob
orientação de Charlote, ao ser cravada no disco de elevação, que tinha como função o transporte
de pessoas, certamente pode ser manipulado para criar uma abertura inesperada na barreira
criada. Só uma pessoa como a Cardinal conseguiria fazer uma coisa dessas.
A pequena sábia observava toda a estrutura do último piso da Catedral com um olhar severo.
Provavelmente era a primeira vez que a estava vendo em anos.
Em seguida, voltou seus olhos para Eugeo, que estava parado ao seu lado, deu-lhe um breve
assentimento com a cabeça. Também fixou o olhar na mulher cavaleiro Alice, que estava jogada
ao longe e após virou para mim, que estava em uma postura semelhante e me deu também um
leve sorriso tranquilizante, assentindo novamente.
E por último...
Cardinal endireitou seu corpo e perfurou a Administrator com seus grandes e penetrantes olhos. A
mesma continuava flutuando silenciosamente em sua calma característica um pouco mais
afastado do grupo.
O perfil da sábia não demonstrava indícios de nenhuma emoção intensa de que pudesse ser
chamado de um enfrentamento contra sua mais poderosa inimiga, mesmo depois de ter-se
passado mais de duzentos anos.
Havendo confirmado a situação, Cardinal levantou levemente seu cajado em sua mão direita. Sua
pequena figura flutuou instantaneamente e ela deslizou-se através do ar até onde Alice e eu
estávamos.
Descendo novamente para o chão, primeiramente tocou Alice levemente com a ponta de seu
cajado na altura das costas, ao que surgiram partículas brilhantes de luz que se juntaram e ficaram
girando ao redor da garota caída, para depois fundir-se ao corpo da mulher cavaleiro.
Logo após, se aproximou de mim e cutucou de maneira nada gentil meu ombro. A mesma luz,
calma e morna surgiu em minha volta e depois que se fundiu ao meu corpo, todas as sensações
sumiram instantaneamente.
A fria sensação de vazio crescente que sentia, como se minha existência estivesse se esvaindo,
sumiu. Depois, a dor abrasadora regressou ao meu abdômen, como se tivesse novamente
recebido o golpe do golem. E quando estava prestes a urrar, a mesma dor sumiu, preenchendo o
espaço com um calor aconchegante.
Todas as demais sensações corporais foram retornando junto com dores que eu já havia sentido
em diversos momentos anteriores, mas que também foram sumindo e preenchida com outros
sentimentos como se nunca tivessem existido. Não consegui evitar me surpreender. Se eu
tentasse fazer uma arte curativa no mínimo parecida com essa, teria que ficar tranquilamente por
horas a fio em um bosque super ensolarado, cheio de recursos naturais recitando comandos após
comando e ainda assim, não conseguiria tal efeito.
Estava a salvo, assim dizia minha ingênua mente. Falar que aquilo tinha sido um milagre não era
fazer justiça a uma arte tão grandiosa quanto aquela. Contudo, certamente um ato desses deveria
ter um preço a ser pago à altura. E o que mais doía, era saber que a pessoa que pagou esse
tributo, foi a pequena Cardinal.
Enquanto cogitava qual tinha sido a troca equivalente e que tipo de problemas isso tinha causado
à pequena sábia, um pensamento frio passou na mente. Todo recurso utilizado para nos ajudar,
era um recurso a menos na batalha contra a Administrator e isso era algo que a Alto Ministro não
deixaria de notar...
Porém, como se estivesse totalmente despreocupada sobre minhas suposições, Cardinal
gentilmente flutuou mais uma vez.
Aterrissou momentos depois perto de um minúsculo cadáver negro sobre o tapete.
Cravou profundamente o cajado no solo e se encurvou suavemente para pegar os restos mortais
que jaziam no chão com ambas as mãos. Seus pequenos dedos envolveram completamente a
aranha negra, Charlote, enquanto a trazia até seu peito.
A garotinha inclinou sua cabeça e sussurrou com uma voz doce, palavras que não consegui captar
direito.
“Você... sua maravilhosa coisinha boba. Eu já não havia te liberado de seus deveres? Porque não
foi aproveitar sua vida em algum lugar sossegado? Já tinha cumprido sua missão, eu estava
agradecida por todo seu esforço e empenho... não precisava fazer isso...”
Seus grandes cílios piscaram uma, duas, três vezes e permaneceram abaixados por mais um
tempo.
Recuperado, empunhei minha espada negra que estava caída ao meu lado com a mão direita.
Finalmente podia me mover apropriadamente outra vez. Então, a usei como suporte para me
erguer.
Meu equilíbrio ainda estava retornando ao normal, por isso cambaleei um pouco até chegar perto
de Cardinal e perguntei:
“Cardinal... essa era a verdadeira... forma de Charlote...?”
A pequena sábia de cabelos castanhos levantou seus olhos úmidos e respondeu pesarosamente.
“Muitas bestas mágicas e outras raras criaturas viviam em bosques, florestas e terrenos baldios no
antigo Mundo Humano. Creio que está familiarizado com o que estou falando, não é?”
“Você está se referindo aos Named Monster... certo? Monstros especiais criados para os jogos de
MMORPG, que tem nomes, personalidades e são muito mais poderosos que os outros de sua
espécie.
Mas... Charlote era capaz de falar a língua humana, incluindo demonstrava emoções... por acaso
ela também não era uma existência que possuía um Fluctlight...?”
“Não... E usando as palavras de seu mundo, ela seria o equivalente a um NPC. Tinha um
considerável motor de pseudo-inteligência em seu main visualizer, o que a fazia ser um pouco
mais do que Lightcube é. A grosso modo, ela era parte do próprio sistema.
Diversas bestas, monstros, árvores antigas, rochas gigantes e outros seres capazes de manter
algum nível de conversação em língua comum estavam espalhados pelo Mundo Humano.
Entretanto... hoje em dia, todos já foram destruídos. A metade foi exterminada pelos Integrity
Knight enquanto a outra restante foi usada como fonte de recursos para criar objetos, tudo obra
dessa... Administrator.”
“Entendo... assim como o dragão guardião que virou apenas ossos na caverna das montanhas ao
norte.”
“Sim. Pensei que seria uma pena deixar essas magníficas inteligências artificiais serem destruídas
dessa forma, então tentei pegá-las para mim a fim de preservá-las.
Mesmo tendo como meus familiares diversas pequenas unidades sem motores de inteligência ao
meu dispor, algumas dessas criaturas que recuperei acabaram também me ajudando com essa
tarefa, Charlote foi a mais formidável dentre todas.
Foi-me muito conveniente ter esse tipo de auxílio, já que eles não sofrem muitos danos, pois
podem manipular seus status de acordo com suas vontades e situação. Essa pequena aranha
passou por poucas e boas, mas sempre se manteve ilesa devido à capacidade de diminuir seu
tamanho e se esconder... pelo menos até agora...”
“M-Mas... ainda assim...”
Olhei fixamente para o corpo de Charlote inerte na palma da mão de Cardinal e continuei a
pergunta enquanto resistia a vontade de chorar.
“Suas palavras, ações... tudo em Charlote de alguma maneira era verdadeiro, não tinha nenhum
traço de uma simples inteligência artificial. Ela me salvou, se sacrificou por mim... porque ela faria
uma coisa dessas...? Como ela pode fazer algo assim...?”
“Creio que já disse isso antes, mas essa criatura viveu por mais de cinquenta anos. Havia passado
conversando continuamente comigo todos esse tempo e vigiando os hábitos dos humanos.
Inclusive esses dois últimos anos os acompanhando...
É natural que ela se apegasse a você... mesmo não possuindo um Fluctlight, ela...”
O tom da voz de Cardinal repentinamente aumentou, se tornando mais resoluto.
“Inclusive se a verdadeira natureza dessas inteligências forem nada mais do que dados de entrada
e saída, um coração verdadeiro pode sim residir nelas. Então, visto por essa ótica, o amor pode
existir.
Infelizmente, pode-se passar uma eternidade que você jamais entenderá isso... Administrator, seu
recipiente vazio!!”
Gritando essas palavras que não eram mais dirigidas para mim, a garotinha voltou seus olhos de
maneira ressentida para sua inimiga de duzentos anos.
Flutuando à distância e observando tudo em silêncio, a Alto Ministro não deu uma resposta
imediata.
Suas finas mãos cobriram a boca, mostrando nada mais do que uma luz misteriosa se filtrando por
aqueles olhos prateados.
De acordo com a história que Cardinal havia me contado, a Administrator se fundiu com o Cardinal
System original, manipulando seu Fluctlight e eliminando a maioria de suas emoções com a
finalidade de prevenir qualquer revolta do subprocesso de recuperação e esse expurgo originou a
segunda personalidade que formou a base da Cardinal atual.
O perigo do subprocesso possuindo seu corpo havia passado depois que foram separadas em duas
existências humanas únicas, mas ainda assim, ela deve ter encontrados diversas outras emoções
que considerou inútil e certamente não gostaria de revivê-las.
Assim que, a imagem que tinha da existência conhecida como Administrator era de um ser
humano que processava tarefas como uma máquina, que se comportava exatamente igual a um
programa de computador. Entretanto, a Alto Ministro que encontrei nesse último andar da catedral diferia muito de minha imaginação. Não pude sentir nada de falso por trás daqueles
sorrisos de soberba e também de todas as emoções que transmitia a Chudelkin em forma de
desprezo ou da satisfação em manipular todos.
E mesmo agora...
A gargalhada que ela deixava escapar por entre os vãos de suas mãos, enquanto tentava em vão
suprimir.
Hehehehehe... Fufufufu!!!
Se dirigindo a Cardinal com toda a superioridade, como se a garotinha fosse menos importante do
que uma simples brisa, seus ombros esbeltos tremiam enquanto seguia rindo.
Ficou assim por alguns instantes e entre uma risada e outra, falou com severidade.
“Sabia que viria. Hehehehe!!!”
Riu mais um pouco.
“Mas confesso que inicialmente achei que iria deixar tudo nas mãos desses garotinhos.
Entretanto, conforme o rumo das coisas foi acontecendo, sabia que viria.
E sua presença aqui só significa que você não tem mais nada, chegou ao seu limite, irmãzinha.
Ainda não é capaz de usar seus peões da maneira correta, abandonando-os quando fracassam.
Veja só! Esses humanos estão além de qualquer ajuda, mas eu os ‘amaciei’ esperando a sua
chegada. Apostou nas peças erradas mais uma vez.”
Como imaginei...
Temi que o objetivo real da Administrator era atrair Cardinal para fora de seu isolamento na
Grande Biblioteca. Contou com a intensa vontade de preservar e arrumar tudo de Cardinal e nos
torturou até ela se revelar. Em outras palavras, a Alto Ministro podia nos obliterar a qualquer
instante, mas se segurou, pois tinha um plano.
Mas... o Sword Golem, sua principal arma tinha sido destruída por Cardinal e Eugeo, Alice e eu,
que já havíamos recobrado a consciência e estávamos se levantando, logo estaríamos pronto para
seguir com a batalha.
Tecnicamente os dois lados estavam equiparados, com Cardinal e a Administrator com as mesmas
capacidades, com o equilíbrio podendo ser quebrado por nossa presença. Porém, se ela havia
atraído sua pequena contraparte para cá, é seguro dizer que deveríamos esperar uma reviravolta
na situação.
Por experiência própria, atacar antes em um combate geralmente garante uma vitória rápida e
limpa. Com isso em mente, a Administrator deveria ter atacado Cardinal com todas suas forças no
momento em que ela atravessasse a porta.
Entretanto, porque a deixou sair da passagem e ficou somente observando Cardinal destruir sua
preciosa arma, o Sword Golem? Sem contar que deu tempo para que ela regenerasse nossas
feridas e ainda ficou observando Cardinal calmamente terminar a explicação sobre Charlote.
Naturalmente, Cardinal deveria ter as mesmas dúvidas do que eu. Porém, sua expressão só
revelava uma firme resolução.
“Hmm... E você parece ter ficado muito boa com essa imitação de ser humano. Bom, teve
duzentos anos para aperfeiçoar esses sorrisinhos, não é? Andou praticando em frente a um
espelho?”
A Administrator fez pouco caso das palavras de Cardinal e continuou sorrindo.
“O mesmo para você, mana. O que pensa em conseguir fazendo esse discursinho? Da última vez
que te vi, duzentos anos atrás, estava tremendo miseravelmente enquanto fugia de mim. Estou
errada, Lyceris?”
“Não me chame por esse nome, Quinella! Meu nome é Cardinal, um programa que existe somente
para te eliminar.”
“Ufufu, isso é exatamente o que você é. Enquanto eu, a Administrator, sou quem manipula todos
os programas. Desculpe-me pela recepção tardia, minha irmãzinha. Levei um tempinho para
preparar uma arte para dar-lhe as boas-vindas apropriadas.”
Finalizando a frase com um grande e amável sorriso, a Administrator gentilmente levantou sua
mão direita.
Os dedos esticados se curvaram como se estivesse agarrando e destruindo algo invisível. Suas
bochechas enrubesceram e uma luz violeta refletiu em seus olhos prateados. Um forte calafrio
percorreu minha coluna quando percebi que a Administrator estava levando aquilo a sério pela
primeira vez.
Mas não havia tempo para fazer nada. Um instante foi tudo que a Administrator precisou para
cerrar seu punho direito de maneira agressiva.
Então...
Uma avalanche de sons devastadores se ouviu por todo o salão. Pensei por um momento que as
paredes e estruturas de cristal estivessem desmoronando sobre nossas cabeças.
Entretanto, estava errado.
O que acontecia além das janelas, além das paredes que agora era nada mais do que uma mera
marcação semitransparente, o que se destroçava era o mar nebuloso de nuvens serpenteantes, as
estrelas, a lua cheia brilhando com sua luz branca azulada... enfim, tudo que poderia ser
conhecido como os céus.
Observei perplexo enquanto o céu se transformava em incontáveis fragmentos estilhaçados,
girando, se dispersando, caindo e rompendo-se em partículas tão pequenas ao chocarem-se umas
com as outras. O que surgiu logo após a desconstrução de tudo a nossa volta tinha um nome... o
nada!
Impossível detectar a noção de profundidade naquela densa escuridão em tons violetas que
parecia se retorcer de maneira viscosa. Era um mundo inteiramente vazio, sem nada. Sua mente
se perderia em um branco total se fixasse o olhar por muito tempo.
Diferia completamente em tonalidade e beleza, mas ainda assim, senti certa semelhança a uma
cena antiga. Com um véu de luz branca e nuvens douradas que cobria os céus e abraçava e engolia
aquele castelo flutuante, Aincrad, no momento de sua destruição. Em essência, era a mesma
coisa, um lugar de morada e sepultamento de todas as coisas.
Underworld estaria se desfazendo também? O Mundo Humano, o Dark Territory, as vilas e
cidades... junto com todos seus habitantes... tudo?
O que me tirou dessa sensação crescente de pânico foi a voz de Cardinal, firme e resoluta, ainda
que não completamente imune à comoção.
“Você... desconectou o... address?”
“A que ela se referia?”
Observei incapaz de tirar meus olhos da Administrator mesmo em total confusão. Enquanto a
mulher gentilmente baixava sua mão direita e respondia baixinho.
“Certamente sou a única culpada por ter permitido que você fugisse duzentos anos atrás quando
estava prestes a morrer, minha querida irmã. Esse andar é agora um host local, sem um address,
foi construído especialmente para você. Da outra vez conseguiu acesso externo e escapou. Dessa
agora será diferente, aprendi com meu erro. Está presa como uma ratinha e eu sou o gato que irá
lhe caçar.”
Fechando a boca, a Alto Ministro fez uma expressão divertida no rosto, levantando seu dedo da
mão esquerda como se estivesse pronta para dar o toque final.
Um ruído de algo quebrando, bastante fraco se comparado ao som aterrorizante de antes, soou
um pouco atrás de nós, onde a porta marrom estava. Logo após, a passagem feita de madeira foi
completamente destruída. Seus fragmentos viraram pó e se dispersaram no ar, igualmente
acontecendo com o padrão radial do disco de elevação, que simplesmente evaporou do solo.
Eugeo, que estava parado ao lado, começou a pisotear o chão várias vezes no local onde estava o
disco antes de levantar o rosto e dar uma pequena sacudida com a cabeça em sinal negativo para
mim.
Em outras palavras, não existia mais nenhum ponto de acesso para outras partes desse lugar
isolado.
O que a Administrator havia feito foi romper a conexão da sala do último andar da Catedral
Central com o resto do mundo.
Mesmo se nós, de alguma maneira, pudéssemos quebrar aquelas janelas, não poderíamos sair
dali, pois não havia um lugar para ir. Esse era um método usado para isolar alguém em um espaço
virtual, algo que requeria um nível supremo de autoridade.
Comparado com isso, a área de encarceramento do Black Iron Castle no primeiro andar do antigo
Aincrad podia ser considerada como brincadeira de criança.
A Administrator não estava perdendo tempo no momento em que Cardinal havia aparecido, ela
estava usando a oportunidade para preparar essa arte absurdamente complexa.
Mas, se as conexões entre os espaços estavam completamente cortadas, então...
“Creio que essa metáfora não esteja completamente correta, creio eu.”
Aparentemente, a pequena sábia tinha chegado a mesma conclusão, ao proferir essas palavras em
voz baixa.
“Embora você tenha levado poucos minutos para desconectarmos, fazer o caminho inverso não
será uma tarefa muito fácil. Assim, você também está presa aqui. E creio que está bem claro qual
dos lados pode ser considerado o gato e qual será o rato. Depois de tudo, nós somos quatro e
você, apenas uma. Estará cometendo um grave erro se subestimar esses três garotos, Quinella.”
Sim, ela está certa.
Com as coisas como estão, a Administrator não deveria ser capaz de escapar desse espaço tão
facilmente por si mesma. E ambas, Cardinal e ela, eram grandes usuárias de artes sagradas
extremas, com o mesmo nível de autoridade.
Possivelmente teríamos que terminar esse impasse em uma batalha corpo-a-corpo, enquanto
Cardinal enfrenta e cancela as artes dirigidas para nós.
Mas, mesmo depois de Cardinal ter dito isso abertamente, a Alto Ministro conservou seu sorriso.
“Você disse... quatro contra um? Não, irmãzinha, seus cálculos estão equivocados. Para ser mais
precisa... são quatro... contra trezentos. Excluindo a mim, que ficarei apenas olhando.”
Assim que voz melosa e viciada finalizou suas palavras, a massa de metal, o Sword Golem que
deveria já ter se desintegrado atrás da Alto Ministro, começou a produzir sons metálicos
ensurdecedores, como se um enorme violino desafinado começasse a tocar.
“O quê...!?”
Cardinal franziu o rosto. Ela deve ter julgado que já tivesse destruído completamente após tê-lo
golpeado por três vezes com seus relâmpagos disparados a queima roupa.
Entretanto, a luz dos orbes que faziam as vezes de olhos do golem e que estavam praticamente
apagados, voltou a brilhar intensamente, como se duas estrelas estivessem incrustadas naquele
arremedo de rosto.
Direcionando aquela luz homicida para nós, o gigante se levantou como se a falta dos membros,
destroçados anteriormente, não lhe fizesse falta. Com um movimento único, se pôs de pé com um
estrondoso rugido.
Quando a criatura se colocou em posição ereta, foi possível notar que todas as partes faltantes e
carbonizadas de seu corpo, apresentavam agora nenhum tipo de marca de dano e com os
membros antes ausentes, agora ressurgindo em perfeito estado.
Certamente que as armas de alta prioridades eram providas da habilidade de regenerarem suas
Vidas nesse mundo, mas somente se fossem apropriadamente mantidas em suas bainhas e em
locais com recursos abundantes. Coisas completamente ausentes nessa situação, já que o local de
descanso das espadas que formam a criatura, eram os pilares da enorme sala e elas não tinham
retornado para eles.
Inclusive, mesmo que todas as espadas fossem consideradas instrumentos sagrados, como a
Administrator havia dito, não explicava a razão pela qual tinham se recuperado de maneira tão
acelerada de todos aqueles danos severos.
Porém, a realidade é que o gigante de espadas estava erguido atrás da Alto Ministro envolto em
uma aura assassina e poderosa igual ou até mais poderoso do que antes quando recebeu os três
relâmpagos.
Se esse golem pudesse ser produzido em massa, seria realmente um meio poderoso o suficiente
para contra-atacar a invasão conjunta do Dark Territory. Só com sua incrível tenacidade já dava
para perceber que seria um obstáculo praticamente intransponível.
A sonora voz da sábia chegou aos meus ouvidos enquanto estava perplexo vendo a cena.
“Kirito, Eugeo, Alice, fiquem atrás de mim! Não se movam em momento algum!”
Após escutar suas instruções em tom de urgência, meus dois companheiros se apressaram em se
posicionar conforme Cardinal ordenara.
Parecia que o dano que Alice sofreu a direita de seu peito quando perfurada, havia sido
completamente curado, como os meus ferimentos. Ela havia perdido a proteção peitoral de sua
armadura, assim como teve suas roupas de abaixo, o avental branco e o vestido azul
completamente rasgados, entretanto, seu corpo não parecia mais ter sinais de danos.
Com sua Frangrant Olive Sword apertada fortemente em sua mão, sussurrou suavemente.
“Kirito... quem é essa pessoa...?”
“Seu nome é Cardinal. A Alto Ministro anterior que lutou contra a Administrator e foi exilada,
duzentos anos atrás.”
E em contraste com a atual, ela estava encarregada de reiniciar e formatar esse mundo,
regressando-o para o vazio, mas obviamente, não poderia dizer isso. Então, continuei minha
explicação duvidosa.
“Está tudo bem, ela está do nosso lado. Foi ela quem ajudou Eugeo e eu e nos guiou até aqui. Ela
ama incondicionalmente esse mundo e sente tudo que aconteceu e está prestes a acontecer, do
fundo de seu coração.”
Pelo menos isso era uma verdade. Alice parecia ser incapaz de deixar de lado todo seu usual modo
de desconfiança, entretanto, algo a fez mudar de ideia e gentilmente colocou sua mão esquerda
no lado direito de seu peito, no lugar onde Cardinal tinha milagrosamente curado seu ferimento e
assentiu com a cabeça.
“Entendido! As artes sagradas de alta categoria também tem o poder de refletir o coração de seu
usuário... Eu não preciso duvidar do poder dessa pessoa, já que senti todo seu carinho no gentil
calor quando ela me curou.”
Exatamente! Ela havia compreendido completamente os sentimentos de Cardinal. Em resposta,
assenti em afirmativo com a cabeça, profundamente comovido.
Uma dura batalha estava por vir.
Mesmo a mais simples arte curativa, a que necessitasse de menos comandos para ser ativada, seu
efeito variaria absurdamente dependendo da maneira com que fosse recitada, ou seja, seu poder
era diretamente proporcional com o nível de crença depositada nas palavras, pouco diferente das
artes ofensivas.
A arte que Cardinal utilizou estava repleta de carinho e apreço verdadeiro, um sentimento tão
reconfortante que derretia todo o tipo de dor. E era exatamente aí que residia a minha esperança
de que o assunto sobre regressar Underworld para o completo nada que ela havia determinado,
ainda estava em aberto. Entretanto, aquela não era hora de ficar tendo esse tipo de pensamento,
primeiro teríamos que ganhar essa batalha.
Que recursos o Sword Golem possuía para conseguir se regenerar instantaneamente daquela
forma? Antes de prosseguir com os ataques, tínhamos que descobrir quais eram.
Com seu corpo renovado, brilhando mais uma vez em dourado, a criatura feita de espadas
começou seu avançou tranquilamente.
Cardinal apertou seu cajado, preparando-se para enfrentá-lo, porém, dessa vez ela não podia usar
muitas artes de maneira preventiva como havia feito minutos atrás, pois o fator surpresa não mais
existia e a Administrator certamente estaria esperando uma brecha para atacar no momento em
que a pequena garota tentasse ativar algum comando.
Pensar.
Era tudo o que podíamos fazer agora.
A habilidade de regeneração do Sword Golem era provavelmente fruto de seu Release
Recollection. Nesse caso, existia ‘algo’ que estava sendo utilizada nessas aproximadamente trinta
espadas que compunham seu corpo, que possibilitava essa fantástica propriedade.
O que primeiro veio à minha mente foi a habilidade de regeneração de Vida da árvore gigante que
serviu de matriz para minha espada negra, o Giga Cedro. Todavia, aquilo só era possível devido aos
abundantes recursos naturais que ela possuía, como a luz do sol e a terra.
E até a poucos momento, a única fonte de luz dessa sala era a da lua. A qual duvidada muito que
fora capaz de abastecer esse gigantesco constructo para que houvesse uma recuperação tão
poderosa. Em outras palavras, o Sword Golem não tinha como origem um objeto natural como o
Giga Cedro.
Assim, a única possibilidade restante que podia pensar, era que poderia ser algum tipo de criatura
que tivesse a propriedade de regeneração acelerada sem a necessidade de recursos espaciais.
Mas... ainda existiam seres assim?
Cardinal havia dito que os Named Monsters, que uma vez habitaram esse mundo, estavam
completamente extintos. E que seus restos mortais, ossos, peles e outros, mesmo que tivessem altos níveis de prioridade, ainda assim não podiam ter um potencial tão absurdo quanto esse que
presenciamos.
Creio que mesmo se juntassem dezenas de milhares de objetos desse tipo e os transmutassem em
espadas, o resultado estaria muito longe de alcançar os dos instrumentos sagrados dos Integrity
Knight.
Esse era o fator que demonstrava o quão baixa eram as Vidas desses monstros em relação às
demais ferramentas. A prioridade e durabilidade até poderiam sem proporcionais, entretanto,
criar trinta e poucas armas necessitariam de centenas de dezenas de milhares dessas incríveis
criaturas...
Mas espere...
A Administrator disse algo estranho antes, não é?
“-Quatro contra... trezentos”.
As units usadas para criar essa aberração não eram mobile objects, como os animais eram
classificados. E sim, human units, os seres humanos que viviam nesse mundo. Isso significaria que
ela havia condensado trezentas pessoas. Um número tão elevado que provavelmente
corresponderia a uma pequena aldeia. Tudo isso, somente para poder satisfazer sua sede de
dominação.
Após fazer meu cérebro quase fritar de tanto pensar, estava convicto que essa era a resposta
certa. Infelizmente, não era uma solução animadora, muito pelo contrário, ter esse conhecimento
me trouxe um imenso terror. Instantaneamente minha pele se arrepiou, juntamente com uma
sensação de eletricidade percorrendo a coluna.
As pessoas de Underworld não eram simples objetos móveis, constructos funcionais que se
movimentavam. Elas possuíam Fluctlight, almas, iguais aos dos seres humanos do mundo real. E
mesmo que fossem transformados em espadas, seus Fluctlight não cessariam suas atividades, pois
ainda manteriam uma forma corpórea.
Em outras palavras, aqueles convertidos em espadas e que agora faziam parte do Sword Golem,
possivelmente ainda mantinham suas consciências dentro desse corpo de metal, embora não
tivessem mais a forma humanoide, com olhos, bocas e membros flexíveis.
Aparentemente, tendo chegado à mesma conclusão do que eu, a pequena Cardinal estremeceu
levemente. Sua diminuta mão perdeu um pouco da coloração rosácea enquanto apertava ainda
mais o cabo de seu cajado.
“Sua... abominação!!”
Deixou sair essas palavras entrecortadas com tanta fúria que não era mais possível reconhecer sua
voz angelical.
“Você... o quão... o quão inumana pode se tornar!? Deveria guiá-los, protegê-los, amá-los!! Como
pode criar essa aberração às custas das pessoas você deveria proteger acima de tudo??”
Gemidos surgiram ao meu lado esquerdo.
“Pessoas...? Como assim... pessoas!?”
Eugeo retrocedeu um passo, atordoado.
“Essa monstruosidade... foi feita de seres humanos...!!?”
Alice colocou a mão esquerda sobre o peito mais uma vez enquanto murmurava.
E um frio silencioso tomou conta da isolada sala.
Instantes depois, a Administrator respondeu com um grande sorriso como se estivesse
degustando o sabor de nossos medos.
“Exatamente isso! Finalmente você se deu conta. Achei que iria morrer antes de descobrir... nossa
minha irmã, você está ficando enferrujada.”
Com uma voz beirando a inocência e infantilidade, a governante absoluta bateu uma pequena
palma.
“Estou deveras decepcionada com você, minha irmã. Mesmo depois de ficar me espionando
naquele porão por duzentos anos, ainda não entendeu nada? Será que tenho que realmente
explicar tudo? Quer que eu banque sua mãe e lhe conte tudo?”
“Cale-se!! Não quero nada vindo dessa sua personalidade depravada!”
“Se não quer isso, porque vem com esse discursinho cheio de palavras inúteis? Que história é essa
de proteger e amar as pessoas? Porque alguém da minha posição teria que me importar com
assuntos tão triviais quanto esses?”
Seu sorriso se manteve, entretanto, o ar na volta da Administrator pareceu estar tão denso e frio a
ponto de congelar. As palavras fluíam como granizo saindo de seus lábios, escorrendo pelo
afetado sorriso e atingindo nossos tímpanos violentamente.
“Eu sou a governante. Essas existências insignificantes só devem servir para meus propósitos, só
devem se sujeitar a minha vontade. Humanos, espadas, nada importa desde que me sirvam.”
“Seu... monstro...!!”
A voz de Cardinal saiu arranhada.
Não consegui encontrar palavras para expressar tudo que estava sentindo.
O estado mental dessa mulher... não, dessa existência nomeada Administrator já havia
extrapolado toda minha capacidade de entendimento. Fiel a sua nomenclatura e cargo,
administradora de sistema, que reconhecia as massas que viviam no Mundo Humano como meros
arquivos a serem manipulados, sobrescritos e deletados.
E aqui vai uma metáfora, se fizer uma analogia aos viciados em internet no mundo real, que
descarregam uma gama sem tamanho de arquivos somente para a satisfação de ter determinado
tipo de dado, como uma coleção virtual, ela estava fazendo basicamente o mesmo. Se
preocupando minimamente ou somente com o conteúdo desses arquivos sem importar-se com os
meios para consegui-los.
Durante a conversa na sala da Grande Biblioteca, Cardinal havia dito que os valores principais do
sistema havia registrado na alma da Administrator o princípio de preservação total do mundo. Isso
de fato era certo, entretanto, a questão tinha se tornado bem mais complexa.
Levando a pergunta, o Cardinal System da primeira geração, o programa de gestão sem alma, igual
ao que regia o mundo de SAO, ele conseguia distinguir jogadores como humanos... como seres
vivos e pensantes?
Agora vejo que a resposta era um grande não.
Não éramos nada mais do que dados a serem manipulados, ordenados e eliminados.
A menininha Quinella, a existência de uma era há muito passada, não havia cometido nenhum tipo
de assassinato até agora.
Entretanto, para a atual toda poderosa Administrator, os seres que aqui habitavam, não eram
seres humanos, portanto, passíveis de serem eliminados sem restrição alguma.
“Mas o que é isso? O que há com vocês? O gato comeu suas línguas?”
Olhando-nos de cima, a deusa inclinou adoravelmente sua cabeça.
“Não me venha dizer que está apavorada por eu ter transmutado essas simples trezentas
unidades, minha queria irmã?”
“Essas... ‘simples’...!?”
A Alto Ministro respondeu afirmativamente a pergunta praticamente inaudível de Cardinal,
balançando suavemente a cabeça.
“Sim, simplesmente, nada mais do que isso, irmãzinha. Pois para falar a verdade, quantos
Fluctlight você acha que se perderam antes que eu pudesse completar esse boneco? Antes de
qualquer coisa, isso aqui é um mero prototype. Gastei muitos recursos até conseguir estabilizá-lo.
Entretanto, uma produção em massa dessa versão aperfeiçoada, para lidar com esse detestável
experimento de carga, provavelmente consumiria a metade de minhas unidades...”
“A... metade...!!!”
“Exato. E pelos meus cálculos, tem aproximadamente oitenta mil unidades humanas viventes
nesse momento no Mundo humano... Então... suponho que terei que usar quarenta mil dessas.
Sim, acho que isso seria o suficiente para combater e repelir a invasão do Dark Territory. Não
concorda?”
Depois de dizer essas terríveis palavras sem a mínima emoção, a Administrator moveu seus olhos
prateados para a mulher cavaleiro ao meu lado esquerdo.
“Satisfeita agora, Alice? Seu precioso Mundo Humano será salvo. Vamos! Alegre-se!”
Alice não fez nada mais do que escutar as provocações em meio a risadas em total silêncio.
Vi sua mão tremendo enquanto agarrava a empunhadura da Fragrant Olive Sword, porém, não
sabia se essa reação se devia a fúria ou ao medo.
Rapidamente, o que veio dela foi somente uma pergunta com o máximo de controle que
conseguiu reunir.
“Estimada Alto Ministro... as palavras desses humanos já não podem mais ser alcançadas.
Portanto, eu farei as perguntas diretamente a você no lugar deles, como uma usuária das artes
sagradas. As trinta espadas que formaram esse... boneco... de quem eram exatamente?”
Algo veio até mim como um raio. Quem tinha levado a cabo o Release Recollection dessas trinta
espadas que formavam o golem, segundo a contagem de Alice muito mais precisa do que a minha,
tinha sido a própria Administrator. Assim, supus que ela era a de fato a dona delas, mesmo que
estivesse indo contra a regra básica de posse de objetos desse mundo.
Entretanto, as palavras seguintes de Alice negaram totalmente essa possibilidade.
“Estimada alto Ministro, certamente você não pode ser a dona de todas elas. Mesmo que possa
desobedecer a regra de ter apenas uma arma para controlar, não pode desobedecer a regra
seguinte, liberar suas recordações. Pois essa técnica requer que a espada e seu dono estejam
conectados por laços e sentimentos inquebráveis. Como já foi demonstrado com a minha Fragrant
Olive e eu, os demais cavaleiros e seus instrumentos sagrados, Eugeo e Kirito com suas espadas. O
dono tem que amar a sua arma e ter a reciprocidade desse amor. Estimada alto Ministro, se as
origens dessas espadas que formaram esse monstro são as inocentes existências que você traiu...
certamente elas não lhe amarão de volta.”
Alice declarou indignada enquanto sua voz ecoava na sala e o silêncio se instaurava novamente.
O que veio instantes depois foi a risada contida da Administrator.
“Ufufufu.... E eu me pergunto que tipo de chama alimenta essas suas vontades, jovens estúpidos.
Que sentimentalism barato esse de vocês... Não passam de alimentos, frutos a serem colhidos por
mim e devo confessar... estou ficando faminta.”
Seus grandes olhos especulares brilharam nas cores do arco-íris de excitação.
“Entretanto, ainda é cedo para isso, não chegou o momento ainda.
Alice, o que você quer dizer é que eu deva ser incapaz de utilizar a imagination necessária para
overwrite essas espadas... é isso? Hum... direi que não está de toda equivocada. Meu domínio
sobre a memória já não me dá mais a permissão para gravar todas essas espadas de alta
prioridade de uma única vez, devido a minha priorização de espaço mental.”
Apontando gentilmente seu dedo, a Alto Ministro indicava no outro lado, o seu golem avançando
pouco a pouco.
Pelo que pude entender, o Armament Full Control Art necessitava que o dono memorizasse a
informação total de sua arma, tal como textura, aparência e peso, combinando isso com a ajuda
dos comandos para produzir essa técnica capaz de transformar sua forma e poder com a força da
imaginação.
Em outras palavras, a condição necessária para ativar a arte sagrada seria que o dono pudesse
armazenar todas as informações de sua espada em sua própria mente.
Por exemplo, se eu quiser usar o Full Armament Control Art de minha espada negra, não haveria
nenhuma diferença entre ‘A’, a informação da espada contida dentro do centro do Light Cube
Cluster e o Main Visualizer e ‘B’, a informação da espada gravada em meu Fluctlight Natural. Isso
me possibilita transformar a informação de ‘B’, em meu corpo, usando minha imaginação e
sobrescrever ‘A’, que está no sistema. Que com certeza deveria se aplicar com outras coisas
também. Essa lógica provavelmente foi a que foi utilizada quando meu corpo se transformou no
meu antigo eu, minutos atrás.
Por outro lado, a capacidade de Light Cube da Administrator deveria de estar praticamente lotada,
cheia de memórias de sua vida durante esses trezentos anos. Era impensável que ela fosse capaz
de recordar de todos os mínimos detalhes dessas trinta espadas.
Alice deve ter se referido que para poder utilizar os Fluctlight como arma, a deusa deveria estar a
par de tudo de seus donos, de suas crenças pessoais, personalidades... tudo. E somente
atendendo esses requisitos que a arte poderia ser ativada de forma precisa no sistema.
Mas mesmo assim... ainda tinha o fator de que as espadas que constituíam o golem, os donos
daquelas almas, cada um deveria de estar cheio de desejos ruins, vingativos, distorcidos... como
ela fez essa arte? Armazenados em algum lugar externo? Mas onde? Essa sala estava
completamente isolada do mundo exterior no sentido real da palavra. A técnica só deveria dar
certo em tese, caso as essências das pessoas transmutadas em espadas ainda estivessem aqui
nesse salão...
Tinha que ter um lugar de armazenagem...
“A resposta está bem diante de seus olhos.”
A Administrator respondeu automaticamente me olhando direto nos olhos.
“Eugeo, creio que já deve ter entendido também.”
“...!?”
Desolado, observei Eugeo no lado oposto de Alice. Meu companheiro de cabelos loiros estava
olhando acima da Alto Ministro completamente congelado, como se até o sangue tivesse
abandonado seu rosto. Suas pupilas não mostravam nenhuma expressão além de puro temor
enquanto tremiam, olhando em direção ao teto.
Acompanhando seu movimento, também me virei para cima. Uma versão reduzida do mito de
criação do mundo estava reproduzida no grande domo, com cristais incrustados em diversos
pontos da obra brilhando gentilmente.
Havia visto aquilo quando subi aqui e tomei tanto a arte como os cristais como parte de uma
vistosa obra de adorno, nada mais do que isso... pelo menos até agora.
Mais alguns segundos de silêncio se seguiu, até ser quebrado pela voz rouca de meu companheiro,
saindo arranhada de sua garganta.
“Entendi... então é... isso...!?”
“Eugeo... o que descobriu!?”
Meu amigo virou-se lentamente para mim e murmurou com o rosto cheio de um medo muito real.
“Kirito... esses cristais no teto. Eles não são... somente para decorar. São definitivamente... as
memórias, os fragmentos de memórias roubados dos Integrity Knight.”
“Como é que é!?”
Cardinal e Alice se espantaram ao mesmo tempo, enquanto eu ficava sem palavras.
Os fragmentos de memórias dos Integrity Knight, todas as recordações mais preciosas extraídas
dos humanos transformados em cavaleiros sagrados através do Synthesis Ritual. Os sentimentos, as ligações com as pessoas mais queridas, como a mãe de Eldrie e a esposa de Deusobert...
estavam tudo ali naqueles cristais.
Então, se isso era verdade... esses cristais eram os que estavam em todas aquelas espadas que
formavam a criatura da Administrator?
Não! Os cristais não deveriam ser mais do que informações soltas guardadas no Fluctlight. Não
eram almas completas ao ponto de formarem pensamentos coerentes.
Dificilmente podia imaginar que eles pudessem ter tanta afinidade com as espadas ao nível de
serem capazes de ativar o Full Control Art.
Tinha algo mais nessa explicação, pelo menos era o que meu sexto sentido estava dizendo. Se
esses cristais no teto eram realmente as recordações de todos os Integrity Knight, então, neles
também estavam as memórias de Alice roubadas há seis anos.
Dois anos e pouco atrás, Eugeo sofreu uma ferida gravíssima durante a batalha contra os goblins
na caverna do norte de Rulid. Lembro claramente de ter escutado a voz de uma garota me dizendo
que estava esperando Eugeo e eu no andar mais alto dessa catedral. E após ouvir essas palavras,
senti fluir uma energia enorme entre nossos corpos, força essa que acabou curando Eugeo.
E se aquela voz de fato pertencesse à Alice? Significava então que mesmo fragmentos de
recordações roubadas ainda continuavam tendo pensamentos ordenados?
Porém, ainda tinha outra coisa a ser investigada...
O fato da regra de não ser possível curar sem que houvesse contato direto, isso valia para
qualquer tipo de arte sagrada curativa.
Nem mesmo a Administrator conseguia transmitir sua voz e poderes de cura a distâncias tão
longas quanto aquela, cobrindo 750 quilômetros em linha reta daqui da Catedral Central até a
caverna situada nos limites da montanha ao norte.
Para acontecer algo assim, um milagre deveria ocorrer e só consigo lembrar do fenômeno de
overwriting que controla o Armament Full Control Art. Sendo isso verdade, as memórias guardadas
de Alice deveriam ser de fato...
O grito de Cardinal, ardente como fogo, interrompeu minha linha de raciocínio.
“Então é isso... !? Quinella, sua maldita desgraçada!!... O quão longe você deseja chegar
manipulando a humanidade, seu monstro?”
Olhei para a mulher que flutuava calmamente com um sorriso tranquilo diante de nós.
“Ora, ora...! Não me elogie tanto, afinal, creio que posso lhe dar o crédito, não é, minha irmã?
Você descobriu antes do que eu pensava, minha cara defensorasinha hipócrita da humanidade,
rainha da falsa benevolência.
Então, já que entendeu, diga-me! Qual é a resposta para tudo isso que mostrei?”
“...É o pattern ou seja, o padrão inerente e compartilhado por todos os Fluctlight...”
Cardinal apontou o cajado diretamente para a Administrator.
“Ao colocar uma piece de recordações extraídas por meio do Synthesis Ritual em um modelo
mental loaded com um Light Cube novo, pode se criar uma imitação de uma human unit. Dessa
forma, sua inteligência seria extremamente limitada... uma existência que não possuiria nada mais
do que seus instintos, sendo inconcebível que pudesse executar um command tão avançado
quanto o Armament Full Control Art.”
Desesperadamente tratei de entender o significado por trás daquelas desconcertantes palavras.
Cardinal disse na sala da Grande Biblioteca, que os bebês nesse mundo nasciam através de um
protótipo de Fluctlight, carregado em um novo Light Cube, mesclando as características externas
dos pais, seus padrões emocionais e tendências. Fundamentalmente, o que ela acaba de dizer
agora era algo parecido. Só com o fragmento de memória de um Integrity Knight incrustado no
lugar da informação que deveria ser herdada dos pais.
Em outras palavras, os cristais brilhando no teto eram de certa forma, bebês que receberam
memórias de todas essas pessoas...
Será que era isso mesmo? Então... como Alice conseguiu falar comigo de maneira tão direta há
dois anos? Um recém-nascido muito dificilmente poderia falar daquela maneira.
Enquanto me afogava em perguntas, Cardinal continuou falando.
“...Entretanto, esse ‘limite’, também tem uma brecha. E seria quando alguma parte dessas
recordações inseridas no protótipo de Fluctlight,a informação estrutural da alma envolvida, possui
um padrão significativamente diferente das demais. Sendo mais específica...”
As palavras da pequena sábia detiveram-se antes dela golpear o solo com a base de seu cajado e
gritar:
“...Esses eventos de recordações roubadas dos Integrity Knight, essas pessoas que carregavam
dentro de si um forte sentimento de amor, foram usados como recursos para criar armas. Estou
errada, Administrator!!?”
Uma incrível sensação de angústia tomou conta de mim antes que a breve confusão fosse
dissolvida. Os donos das espadas eram as memórias roubadas dos seres conhecido como Integrity
Knight. E as espadas foram criadas com as informações e lembranças dos próprios seres amados
pelos Integrity Knight sendo usado como recursos... A mãe de Eldrie, a esposa de Deusobert e
assim por diante, todas as pessoas queridas desses guerreiros estavam ali... Era isso que Cardinal
estava se referindo.
Eugeo e Alice pareceram entender momentos depois enquanto deixavam escapar gemidos
incompreensíveis de suas bocas praticamente em uníssono.
Resumindo, se isso estivesse certo, então, o fenômeno de liberação do Recolection era de fato
possível.
Depois de tudo, A e B, a informação do Main Visualizer e do Fluctlight, podiam derivar da mesma
existência. Se o Fluctlight recém-nascido receber o fragmento específico de recordação como uma
emoção muito forte e contundente, o acesso à maior das artes sagradas desse mundo era
totalmente plausível de ocorrer.
O problema estava no tipo de emoção. Que classe de sentimentos e comoção tinham os
fragmentos para conseguir passar algo para uma inteligência ao nível de um bebê, sendo capaz de
energizar o gigantesco golem de espadas...?
“Avareza.”
Como se estivesse lendo meus pensamentos, a Administrator disse essa palavra.
“O desejo de tocar, de adotar, de fazer alguém ser seu. Essa desagradável, porém extremamente
poderosa vontade, é o que move meu lindo bonequinho.
Fufu, Ufufufu!!!”
Os olhos prateados da mulher estreitaram-se enquanto seguia com sua provocação.
“Os indivíduos artificiais com os fragmentos de memória dos cavaleiros inseridos desejam apenas
uma coisa, transformar a pessoa querida em sua propriedade. Eles sentem a presença do ser
amado preso no teto. Entretanto, não podem vê-los, não podem tocá-los. Tudo que tem são fome
e sede enlouquecedores como inimigos que se interpõem em seu caminho. Se destruírem esses
inimigos, a pessoa será finalmente sua.
Por isso lutam não se importando com feridas e nem com quantas vezes caiam. Eles se levantarão
e matarão pela eternidade se for necessário...
Que tal? Não é realmente um cenário lindo? É maravilhoso... o poder da avareza, de fato,
verdadeiramente maravilhoso!”
A voz da Administrator se tornou aguda e reverberou por toda a sala enquanto os olhos do Sword
Golem começavam a piscar violentamente. Uma ressonância metálica, brutal era emitida de seu
exoesqueleto, o que para mim agora parecia mais ser gritos de dor e agonia.
Esse gigante não era uma arma automática de desejava matança. Tudo o que ele queria era o que
a recordação queria. Um amontoado de pensamentos como o de um menino miserável e perdido
era o que o movia. Mesmo que a Administrator tenha dito que era a avareza, agora me parecia ser
algo mais...
Entretanto, de todos os modos, aquilo estava indo muito...
“Mal!!!”
O grito que coincidia com a conclusão de meus pensamentos veio de Cardinal.
“O querer encontrar-se com alguém novamente, tocá-lo com suas próprias mãos, tais desejos são
profanados por essa sua palavra. Na verdade... ele se chama... amor, amor verdadeiro! O poder
mais forte que os humanos possuem e seu maior milagre... e é algo com o qual você não deve
jogar!!”
“Mas você é uma cabeça dura, irmãzinha!”
A Administrator estendeu as mãos até o Sword Golem enquanto seus lábios se torciam de
excitação.
“Não entende? Amar é dominar... é condicionar! E sua forma verdadeira nada mais é que uma
saída de sinais vindos do Fluctlight! Apenas estou usando esses sinais com uma intensidade mais
forte. Em um formato muito, muito mais inteligente e eficiente dos métodos que você usa!”
A voz da soberana vibrou aguda novamente como se estivesse convencida de seu triunfo.
“O que você consegue manipular e conduzir são dois ou três garotos. Enquanto eu... eu sou muito
diferente! Esse meu boneco tem uma energia transbordante condicionada de mais de trezentas
units e tudo que tenho a fazer é inserir os fragmentos de memórias e usá-los como eu quiser!
E, além disso, agora existe outra questão...”
As palavras que saíram de sua boca após instantes de silêncio, foram como picadas mortais
extremamente venenosas.
“...Agora que está consciente disso tudo, não pode mais destruir meu boneco. Pois mesmo que
sua forma tenha se modificado, essas espadas alteradas são iguais a seres humanos, seres
viventes!!”
A declaração da Administrator ficou ecoando por um bom tempo antes de desaparecer. Olhei
estupefato para o cajado de Cardinal levantado contra o golem... descer lentamente.
A voz que veio da garotinha estava anormalmente suave para a situação.
“Aah... sim, isso certamente é verdade. Não posso assassinar ninguém. Essa realmente é a única
restrição que não posso romper. Passei duzentos anos refinando minhas artes sagradas para
extinguir sua existência e seu corpo que se desviou da humanidade... porém, parece que foi em
vão.”
Escutei aquelas palavras totalmente desorientado. Palavras de admitiam a derrota ditas de uma
maneira muito tranquila.
Se as espadas que formavam o golem eram humanos, Cardinal não podia acabar com elas... não,
não faria nem se pudesse.
Mas se houvesse uma maneira de burlar essa restrição com outras ações como foi o caso da taça
de café que virou um prato de sopa.
mundo seria o suficiente para você? De outra forma negarei sua oferta, pois não vou desistir de
colocar minhas mãos sobre eles outra vez.”
“É o suficiente que os tire daqui. Eles definitivamente...”
Cardinal não terminou sua frase. No lugar disso, a barra de sua túnica balançou enquanto girava
para nós com uma luz gentil em seus olhos.
Queria gritar para deixar de brincar conosco. Minha vida provisória aqui não deveria se comparar
com a vida real de Cardinal. Considerei seriamente se deveria atacar a Administrator nesse
instante para dar algum tipo de tempo para a pequena sábia fazer algo.
Entretanto, não podia. Isso colocaria a vida de Eugeo e Alice em risco em uma aposta tão
arriscada.
Minha mão direita apertou tão forte a empunhadura de minha espada que podia sentir a pele da
palma rasgar enquanto meu pé direito pisava no chão de maneira tão furiosa que piso sob o
tapete apresentou rachaduras.
A voz da Administrator chegou aos meus ouvidos enquanto o impulso de batalhar continuava a
aumentar dentro de mim.
“Está certo, estou de acordo!”
Mostrando um sorriso angelical, a mulher assentiu com a cabeça de forma magnânima.
“Estou totalmente de acordo de deixar o mais divertido para depois, sabe? Juro pela deusa Stacia
que...”
“Não, não jure pela deusa, e sim pelo que lhe é mais precisos... seu próprio Fluctlight.”
Cardinal a interrompeu de forma cortês ao que a Administrator cedeu uma vez mais, com seu
sorriso ficando cada vez mais cínico.
“Oh! Claro, está tudo bem, jurarei por meu Fluctlight e todos os preciosos dados que posso
acumular por aí. Depois de te matar rapidamente, deixarei esses três ilesos. Não poderei romper
esse juramento... pelo menos não por enquanto.”
“Certo.”
Ao concordar, Cardinal virou para olhar para Eugeo e Alice, que estavam lado a lado em silêncio e
finalmente retornou para mim.
Um suave sorriso estava repousado em seu jovem rosto com seus grandes olhos castanho cheio
de uma luz gentil. Um turbilhão de emoções inundava meu coração enquanto minha vista
começava a embaçar, entretanto, não fazia questão nenhuma de deter.
Os lábios de Cardinal sussurraram um silencioso ‘-Sinto muito!’.
No outro extremo, a Administrator anunciou com a voz aguda, ‘-Vamos logo, irmãzinha!’.
Com um movimento ligeiro de sua mão direita, a Alto Ministro fez com que o golem parasse no
meio do salão. E ainda com a mão levantada, fechou o punho como se agarrasse algo e partículas
de luz surgiram do nada, girando a sua volta.
O objeto que apareceu era uma adaga de prata, não, era maior, um estoque de prata. Era da
mesma cor de um espelho, a lâmina fina como uma agulha gigante e uma empunhadura elegante,
uma linda espada que combinava com sua esbelta figura.
A primeira vista poderia ser confundida com um objeto ornamental, entretanto, ao observar com
mais atenção, era notável ver a incrível prioridade que era emitida em forma de aura, tão forte
que chegava a tirar o fôlego só de encarar a distância.
O instrumento sagrado pessoal da Administrator, que rivalizava com o cajado negro que Cardinal
usava para canalizar suas artes. O estoque prateado soltou um som agudo como de uma sineta de
cristal ao se mover em direção à Cardinal.
Caminhando mais para frente com passos firmes, a sábia seguiu sem o menor sinal de medo em
direção àquela arma sagrada tão poderosa.
Alice e Eugeo se inclinaram para frente, fazendo menção de persegui-la. Porém, eu levantei minha
mão esquerda e os detive. Honestamente, queria levantar minha espada e atacar a Administrator.
Mas saltar por impulso somente serviria para desperdiçar a determinação e dedicação de Cardinal.
Então, não fiz nada além de segui-la com os olhos cheios de lágrimas, rangendo os dentes, porém,
parado no mesmo lugar.
Um arco-íris de euforia surgiu nos olhos espelhados da Administrator enquanto observava a
aproximação do seu outro eu.
Imediatamente, um imenso relâmpago elétrico emitido da ponta de sua afiadíssima lâmina,
tingindo todo o salão com uma luz branca cegante e penetrou o delicado corpo de Cardinal.
Forcei minha vista a se acostumar com a claridade enquanto via uma silhueta diminuta se
torcendo pela forma brusca com que fora lançada para trás.
A energia do gigantesco ataque elétrico ainda crepitava no ar se dispersando aos poucos.
Desesperadamente mantive meus olhos abertos enquanto dava um passo para trás. A jovem sábia
ainda se mantinha em pé, embora seu corpo tivesse se inclinado sobre seu cajado, mantendo seus
pés firmes no solo e o rosto encarando sua maior inimiga com extrema determinação.
Infelizmente, as dimensões dos danos era algo incrivelmente doloroso de se ver. O chapéu e a
túnica negra estavam torrados em diversos pontos, com fumaça saindo dos buracos. Partes de
seus cabelos não mais existiam, com boa parte ainda carbonizada, perdendo toda sua propriedade
brilhante e macia de que me lembrava.
Há apenas cinco metros de nós, de pé e em silêncio, Cardinal lentamente levantou sua mão
esquerda e passou onde deveria estar seu cabelo que agora jazia queimado. Mesmo rouca, sua
voz preenchia o ar.
“Pfff!.... Isso foi tudo... que sua arte sagrada pode fazer? Não importa quantos desses raios você
lance...”
Ggggaaannnn!!!!!
O mundo pareceu vibrar com um rugido ensurdecedor. Um raio ainda maior que o anterior saiu do
estoque da Administrator e apunhalou sem piedade o corpo de Cardinal.
Seu chapéu retangular voou e explodiu em partículas em pleno ar. Seu pequeno corpo
convulsionou de forma grotesca e desabou para a direita, porém, a pequena garota colocou seu
joelho no chão e evitou a queda.
“Com certeza que eu estava me contendo, querida irmã.”
O sussurro da Administrator soou elétrico, parecendo estar se contendo para não explodir em um
êxtase selvagem.
“Seria muito chato terminar tudo em um instante. Afinal, esperei duzentos anos por esse
momento... não é!?”
Ggggaaannnn!!!!!
Um terceiro ataque.
Esse fez um arco e golpeou Cardinal no alto de sua cabeça como um chicote e a lançou no chão
com uma força aterradora. A pequena garota explodiu seu corpo no solo, foi jogada para cima
com o rebote, tamanho fora o impacto e voltou a cair com um golpe seco.
A maior parte de sua túnica tinha sido torrada, assim como sua camisa de baixo branca cheia de
buracos. As queimaduras serpenteavam a pele branca como a neve, sinais carbonizados que
também eram visíveis nos pés e mãos, como se estivesse sido presa por diversas cobras negras.
Mesmo com tudo isso, ela apoiou suas mãos contra o solo e levantou seu corpo lentamente.
Como se quisesse acabar de vez com sua desesperada tentativa de reunir forças, um novo
relâmpago a atacou pelo lado. A figura da menina saiu voando e rodou no chão por vários metros.
“Fu... ufufufu, fufufufu!”
À distância, a Administrator não conseguia mais suprimir sua risada.
“Fufu...aha.. Ahahahahahaha!!!”
Os limites entre a íris e o branco de seus olhos especulares desvaneceram enquanto um
resplendor multicolorido girava dentro deles.
“Hahahahahahahaha!!! Hahahahahahahaha!!”
E da ponta do estoque que ela manteve direcionada para o pequeno corpo da garota ao chão, foi
disparado incontáveis relâmpagos conforme sua risada se intensificava. Todos acertaram seu alvo,
perfurando e apunhalando a já imóvel Cardinal. Cada vez que recebia um ataque, o corpo era
jogado para algum canto, todo queimado, roupas, pele, cabelos... cada parte de sua existência.
“HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!”
A gargalhada explosiva da Administrator machucou meus ouvidos. Seu corpo se contorcendo no ar
com uma alegria demoníaca, com seu cabelo prateado esvoaçante e totalmente desalinhado.
As lágrimas continuavam saindo de meus olhos, embaçando minha visão e me cegando, porém,
não eram pelos incessantes ataques luminosos, eram as emoções queimando em meu peito, em
minha alma, que não tinham mais espaço dentro de mim e estavam transbordando.
Lamento pela perda da vida de Cardinal diante de meus olhos, fúria direcionada para a
Administrator que se deleitava com cada instante de sua maldita vingança e o mais importante...
ódio e repulsa para minha impotência ao ver isso e não fazer nada.
Não podia levantar minha espada e nem dar um passo adiante. Se fizesse isso, o sacrifício de
Cardinal seria desperdiçado.
Entretanto, uma voz dentro de mim gritava para que cortasse a Administrator com a espada que
segurava na mão direita, mas meu corpo permanecia estático como se estivesse petrificado... e eu
sabia qual era a razão.
Se o poder de Incarnation era o que me permitia romper os limites de alcance do Vorpal Strike e
perfurar Chudelkin àquela hora, o mesmo acontecia agora, a vontade que me transformava em
um boneco imóvel de madeira.
Minutos atrás, sofri uma grave ferida antes mesmo de conseguir acertar um golpe no golem. A
sensação fria da espada rasgando meu estômago havia deixado uma marca profunda em mim,
uma forte imagem de derrota. Esse medo se retorcia e me negava a recordar novamente a
imagem do Espadachim Negro nesse lugar novamente.
Não tinha nenhuma chance de vitória nesse meu estado atual contra nenhum Integrity Knight,
não, provavelmente nem contra um novato da academia. Atacar a Alto Ministro assim era
impensável.
“Kuh... ugh...”
Um gemido patético saiu de minha garganta.
Cardinal entendeu que não tinha como ganhar e aceitou, mas ainda se manteve em pé de maneira
corajosa até o fim. Estava repugnado da minha aceitação pela perda da sua vida sem nenhuma
intenção de salvá-la, mesmo acontecendo na minha frente.
Alice em minha esquerda rangeu os dentes e o corpo de Eugeo tremeu enquanto lágrimas fluíam
em silêncio. Não sabia o que havia em seus corações, mas ao menos, era evidente de que eles
também estavam lamentando suas próprias fraquezas. Mesmo que consigamos sair daqui, o que
faremos com essa ferida marcada em nossas almas?
A Administrator apertou seu estoque e carregou o raio final, provavelmente o mais forte que já
havia feito até agora, já que ficou um tempo girando na lâmina. Assistimos a cena mais uma vez
paralisados.
“Creio que já é hora de colocar um fim nisso. Nosso jogo de esconde-esconde de duzentos anos...
acabou. Adeus, Lyceris! Até nunca mais, minha filha... e meu outro eu.”
Com palavras carregadas de um estranho sentimentalismo, a Alto Ministro liberou a energia
acumulada.
O ataque final, emitido como se fosse milhares de relâmpagos, foram disparados diretamente no
corpo de Cardinal, sem errar uma única fagulha.
Ao ser atingido, o corpo da garotinha elevou-se no ar, sendo jogada em meus pés. Seus membros,
a começar pela perna direita carbonizada, começaram a se fragmentar em incontáveis partículas
com um ruído seco, se desfazendo em fumaça.
“Ufufu... ahahahaha... ahahahahahaha! Hahahahaha-ahaha!”
Outra risada quase histérica da Administrator ecoou por todos os lados enquanto girava sua
espada em sua mão direita e fazia uma dança em pleno ar.
“Certo... certo! Sua vida baixa bem lentamente, não é? Aaah!! Que sensação maravilhosa...
saborear cada momento... Mas creio que já está na hora do ato final. Veja só, até permitirei que
diga suas últimas palavras.”
Meus joelhos dobraram e levei as mãos até o que restava do corpo de Cardinal. O rosto da
garotinha estava todo carbonizado no lado direito e sua pálpebra esquerda estava fechada.
Entretanto, um pequeno foco de calor de sua vida ainda residia ali, mas estava prestes a
desaparecer. Pude sentir isso ao tocar sua bochecha com a ponta de meus dedos.
Inconscientemente, levantei Cardinal e a aninhei em meu peito. Minhas lágrimas não paravam de
rolar caindo sobre aquelas horríveis queimaduras. Seus olhos, que escaparam de serem
totalmente torrados, tremeram e abriram lentamente.
Mesmo nas portas da morte, uma luz de compaixão ilimitada preenchia suas pupilas castanhas.
“-Não chore, Kirito!”
Foram as palavras que surgiram em minha mente.
“-Esse não é um final tão ruim assim. Nunca acreditei... que morreria dessa forma... nos braços de
alguém com quem meu coração pode se conectar... alguém que realmente sente por mim...”.
“Me desculpe... eu sinto muito...!”
As palavras saiam de meus lábios e espalhavam pelo ar. Escutando isso, Cardinal mostrou um leve
sorriso em seus lábios milagrosamente ilesos.
“-Do que... está se desculpando? Ainda tem... uma missão para cumprir... não é? Você, Eugeo... e
Alice também... Vocês três... com esse belíssimo mundo... por favor...!”
A voz de Cardinal rapidamente se desvaneceu e seu corpo começou a ficar mais leve. Alice, que
estava de joelhos ao meu lado, levou as mãos e tocou Cardinal.
“O faremos... o faremos com certeza!”
Com sua voz embargada e lágrimas nos olhos, disse:
“Essa vida que foi me dada... pode descansar tranquila, definitivamente lutarei por sua causa.”
As mãos de Eugeo surgiram do outro lado.
“Eu também...”
Percebi a firme determinação na voz de meu amigo, algo que geralmente ele não revelava.
“Eu também, finalmente entendi o que necessito para seguir adiante.”
Mas, nem Alice e nem eu esperávamos as palavras que vieram logo após, Cardinal provavelmente
estava na mesma situação.
“Agora é o momento. Desculpe-me, mas... não irei fugir...
Tenho um dever que devo cumprir a todo custo.”

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