Os escrúpulos da guerra e o sentimento humanitário (prefácio)

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Na arte da guerra, os utopienses preferem usar a inteligência e a reflexão. Por isso, envergonham-se com uma vitória sangrenta. Por outro lado, vangloriam-se quando vencem seus inimigos pela esperteza e o artifício, o que pode incluir práticas inescrupulosas: incitam à traição e à discórdia na realeza do campo adversário, fazem represálias vingativas, oferecem recompensas para assassinatos, contratam mercenários e levam as mulheres e filhos de seus próprios soldados aos campos de batalha para que estes se sintam estimulados a combater com mais firmeza. Um dos objetivos principais, como veremos, é o de reduzir o número de suas vítimas.

Eis, de forma mais detalhada, algumas dessas táticas: 1) logo que a guerra é declarada, mandam afixar, secretamente, no país inimigo, cartazes em que oferecem enormes recompensas a quem matar o príncipe inimigo; nos mesmos cartazes, põem a prêmio, com recompensas menores, mas ainda assim generosas e capazes de compensar o tamanho do perigo enfrentado, as cabeças daqueles que, ocupando posição logo abaixo do príncipe, são responsáveis pelas hostilidades; a recompensa é dobrada para quem entregar vivo um daqueles cujas cabeças foram postas a prêmio;

2) cada um desses últimos é induzido a trair seus próprios compatriotas, sendo-lhes oferecida a mesma recompensa. Assim, semeia-se a desconfiança entre os adversários. Todos acabam por desconfiar de todos. Como o dinheiro suborna facilmente, o próprio príncipe pode ser entregue por aqueles em quem depositava maior confiança;

3) os utopienses corrompem o inimigo não apenas por meio do pagamento de enormes quantidade de ouro, mas também da distribuição de terras lucrativas que, na realidade, não são suas; são terras situadas nas nações aliadas, não havendo menção no texto à necessidade de consulta a essas nações;

4) se essas táticas não funcionam, tratam de criar dissidências e facções opostas no seio do território inimigo, semeando os germes da discórdia. Dão, por exemplo, ao irmão do rei inimigo ou a algum outro personagem importante, a esperança de tomar o poder;

5) outra tática é a de incitar nações vizinhas a entrarem na guerra, exumando algum dos velhos títulos cuja posse definitiva jamais foi determinada, que nunca faltam aos monarcas;

6) finalmente, podem pagar grandes somas de dinheiro para incentivar os aliados a entrarem na guerra. Acrescente-se a essas táticas o emprego de mercenários recrutados de todos os países, sobretudo os zapoletas. Esse povo "grosseiro, selvagem e feroz vive a uma distância de 500 mil passos a leste da ilha. Nascido para a guerra, procura toda oportunidade de fazê-la, oferecendo-se a preço vil a quem precisa de soldados." Nenhum país lhes oferece soldos tão elevados quanto a Utopia. Os utopienses, que tratam com tanta consideração os homens de bem, não hesitam em levar à morte seres tão abjetos, por cujo desaparecimento a humanidade ficaria grata. Se as circunstâncias o exigem e em troca de grandes promessas, empurram à frente os zapoletas e lhes dão as missões mais perigosas, das quais a maioria não volta com vida para reclamar o que lhe é devido. Os sobreviventes recebem exatamente o que lhes fora prometido, como incentivo e para que demonstrem novamente o mesmo destemor.

Os utopienses também empregam na guerra as tropas dos povos em favor dos quais combatem; e, finalmente, batalhões auxiliares fornecidos por seus outros aliados.

Estas táticas e práticas se justificam, na perspectiva utopiense, porque reduzem o número geral de mortes nos campos de batalha. Em alguns casos, somente um punhado de culpados morre, evitando-se os combates. Os utopienses veem como prova de humanidade e misericórdia salvar a vida de milhares de inocentes que, de outra forma, sucumbiriam nos campos de batalha. Procuram minimizar sobretudo suas próprias baixas. Na verdade, enviam à guerra muito poucos de seus cidadãos. Têm tanto apreço por eles que não aceitariam trocar um só, mesmo que fosse por um rei inimigo.

Já o dinheiro, podem gastar, sem que passem a viver com menos conforto. No fundo, é o dinheiro que corrompe o inimigo. E é o fato de que o dinheiro não tem o mesmo valor entre os utopienses (que jamais seriam corruptíveis por prêmios semelhantes), que pode explicar que tais táticas não possam ser empregadas por outros contra a própria Utopia.

Quando, apesar de tudo o que foi dito acima, é indispensável a entrada na guerra de seus próprios concidadãos, os utopienses estão dispostos a morrer em defesa da honra. Engajam-se com intrepidez e com a confiança alimentada pelo perfeito conhecimento da arte militar e a excelente educação. Colocam à frente das tropas alguém de experimentada valentia. A ele juntam dois substitutos, que não têm qualquer poder enquanto o comandante das tropas estiver vivo. Se este vier a ser preso ou morto, um desses substitutos ocupa imediatamente seu lugar e, se as circunstâncias exigirem, o comando pode passar ao terceiro. Ninguém é alistado à força para expedições no estrangeiro. Cada cidade organiza e exercita uma tropa de voluntários. As mulheres podem juntar-se aos maridos nos campos de batalha. Uma elite de jovens parte à procura do chefe inimigo, ataca-o diretamente ou o atrai para uma emboscada.

Também nas táticas e estratégias da guerra são valorizados a inteligência, a sabedoria, a disciplina, a esperteza e o artifício. Os utopienses, aliás, demonstram habilidade em montar emboscadas e astúcia em desmontá-las. Quando parece que preparam a fuga, nem estão pensando nisso. Por outro lado, se a julgarem necessária, a realizam de tal forma que é impossível ao inimigo adivinhá-lo. Retiram-se em tão boa ordem que é tão perigoso atacá-los na retirada quanto quando avançam para o combate.

Ao praticarem uma espécie de direito humanitário internacional avant la lettre, os sacerdotes interpretam o interesse da Utopia a mais longo prazo ou enxergam além desses interesses, em nome da concórdia e de valores caros a todos os povos. De fato, sua missão principal, a mais honrosa de todas, segundo diz Rafael, é contribuir para a paz. Durante os combates, permanecem próximos aos campos de batalha, ajoelhados e paramentados. Com as mãos levantadas para o céu, imploram, em primeiro lugar, pela paz, depois por uma vitória da Utopia que não seja sangrenta para qualquer dos lados. Se os utopienses vencem, correm à linha de batalha e impedem o massacre dos vencidos. Quem, ao vê-los se aproximarem, os chama, tem a vida salva. Quem toca suas estolas preserva seus bens. Daí a veneração que todos os povos lhes têm, graças à qual podem obter do inimigo, muitas vezes, a salvação de seus concidadãos. Rafael narra um caso em que, no momento em que o inimigo se lançava ao morticínio e à pilhagem dos utopienses que batiam em retirada, a intervenção dos sacerdotes suspendeu o massacre, separou os dois exércitos e trouxe a conclusão da paz em condições justas.

Ao descrever o comportamento dos utopienses em relação aos inimigos, More está, implicitamente, contrastando-o com os europeus de seu tempo. Assim, quando vitoriosos, os utopienses não continuam a massacrar os vencidos. Preferem fazer prisioneiros os fugitivos, em vez de matá-los, e deixar fugir os inimigos em vez de dispersar suas tropas no empenho de aprisioná-los. Nunca maltratam um homem desarmado, a menos que seja um espião e, em algumas situações, são benevolentes com os vencidos também por razões utilitárias de longo prazo. Assim, não é apenas por respeito aos conquistados que não devastam suas terras nem queimam suas colheitas, evitando até mesmo que sejam pisadas por suas tropas e seus cavalos, mas igualmente por compreenderem que um dia poderão lhes servir. De forma semelhante, protegem as cidades que se rendem e não saqueiam as que tomam de assalto. No fundo, como entendem que as guerras são feitas pelos governantes, ou seja, que os soldados fazem as guerras não por sua própria decisão, mas porque para ela são levados pelo furor dos príncipes, têm piedade das tropas inimigas.

Há uma gradação no tratamento dado aos inimigos, a qual depende do comportamento deles na guerra. Matam os que se opõem à rendição. Levam como escravos os outros combatentes. Porém não tocam nos que não tomaram parte na guerra. E recompensam os que aconselharam a capitulação, atribuindo-lhes uma parte dos bens dos condenados. Destinam outra parte desses bens às tropas auxiliares. Nada guardam para si. No entanto, exigem dos vencidos indenizações pecuniárias, que deixam de reserva para o caso de guerra futura, bem como indenizações sob a forma de terras rentáveis, das quais se apropriam para sempre. Observam as tréguas com tanto rigor que, mesmo quando provocados pelo inimigo, não violam seus compromissos. 

Utopia de Thomas MoreWhere stories live. Discover now