Prefácio por João Almino, diplomata e escritor: "A Utopia é um império"

34 0 0
                                    


MUITO SE TEM COMENTADO SOBRE UTOPIA, livro publicado em 1516, 24 anos depois do descobrimento da América, pelo escritor inglês Thomas More (1478-1535), que aos 57 anos seria decapitado por ordem de Henrique VIII. Mas não conheço trabalho que se tenha detido sobre as relações externas da ilha imaginária da Utopia, termo que, em grego, significa "lugar nenhum". Há muito em Utopia de Thomas More a ser refletido sobre esse tema. Juntamente com a justiça, a paz não apenas interna, mas também entre os povos, é o bem supremo que norteia a exposição do autor inglês. Vale a pena, assim, fazer uma leitura sistemática sobre os temas da paz e da guerra, das finanças e do comércio entre os povos, da colonização e da imigração naquele livro, para dele extrair conclusões sobre seu sentido político e filosófico no campo das relações internacionais.

É pertinente observar que o relato se passa enquanto seu autor, segundo diz no próprio texto, faz uma pausa em meio a uma negociação diplomática. A data não vem explicitada no texto, mas sabe-se que é em maio de 1515 que Henrique VIII o envia como embaixador a Flandres, na defesa dos interesses dos mercadores de Londres, a fim de dirimir litígio entre o monarca inglês e o príncipe de Castela, futurorei Carlos V, que havia herdado os Países Baixos.

 A disputa gira em torno da proibição holandesa da importação de lã inglesa. Henrique VIII retaliara com um embargo contra as exportações de lã holandesa. Agora, o príncipe Carlos ameaça com a expropriação de parte da frota inglesa. Após duas reuniões em Bruges, permanece o impasse. Os embaixadores do príncipe decidem, então, como afirma More no início do Livro Primeiro de Utopia, viajar a Bruxelas em busca de instruções. 

Neste intervalo das negociações, More vai a Antuérpia, onde recebe numerosas visitas, entre as quais a de Peter Giles. Este personagem verídico, humanista menor do círculo de Erasmo e grande amigo de More, o apresenta ao português Rafael Hitlodeu, o personagem que More criou para narrar a maior parte de sua história, principalmente sob a forma de diálogo.

A observação dessas duas cidades estrangeiras, Bruges e Antuérpia, possivelmente influenciou a descrição de Amaurota, a capital da ilha da Utopia. Eram, à época, cidades prósperas, que exibiam um bom modelo urbano. É possível que More tenha, de fato, redigido grande parte de seu livro no intervalo das negociações. Contudo, se o tempo passado da narrativa (aquele em que ocorre a história da conversa entre More, Peter Giles e Rafael Hitlodeu) coincide com o da permanência de More naquelas cidades e com aquele intervalo negociador, o tempo presente da narrativa (aquele em que o texto foi finalizado) é posterior. Isso o autor deixa claro no primeiro plano de sua exposição, ao dirigir-se a seu amigo Peter Giles, a quem envia seu relato da conversa que ambos tiveram com o navegador português. 

More é, concomitantemente, o narrador "atual" dos diálogos passados, e o personagem que, no passado, dialogava com Hitlodeu. A maior parte do tempo, narra a história que Rafael Hitlodeu contou. E quem é este personagem imaginário e principal? Não por acaso teria abandonado seus irmãos e sua propriedade em Portugal e se juntado a Américo Vespúcio em três de suas "quatro" viagens (historiadores até hoje debatem se terão sido apenas duas ou, no máximo, três essas viagens). 

Ora, em 1507 havia sido publicado, com grande repercussão, o Mundus Novus, relato das viagens de Vespúcio no qual este descrevia povos selvagens que, como o da ilha da Utopia, não valorizavam o ouro nem as pérolas, viviam de acordo com a natureza (na Utopia, poderíamosacrescentar também "de acordo com a razão") e eram mais epicuristas que estóicos. Ao lado de Santo Agostinho e Platão, Vespúcio é, portanto, uma referência para More.

A Utopia é uma obra que pode ser interpretada sobretudo comouma crítica à Inglaterra das primeiras décadas do século XVI. E não apenas à Inglaterra, mas também a outros estados europeus, como a França, explicitamente citada. O contraste entre, de um lado, a ilha imaginária e, de outro, não apenas esta outra ilha, a Inglaterra, mas também, de forma mais ampla, a Europa, fornece as bases dessa crítica.

Agindo segundo a razão, e mesmo sem conhecer o cristianismo, os utopienses vivem melhor do que os europeus e foram capazes de construir instituições que merecem respeito e admiração, enquanto os povos cristãos não conseguem pôr em prática as virtudes consagradas porsua religião e se destroem uns aos outros. Os utopienses comportam-se, no fundo, como se fossem verdadeiros cristãos; fazem o que os europeus deveriam fazer, se seguissem seus próprios preceitos cristãos. Essa crítica moral aos estados europeus passa também pela crítica a suas relações internacionais. Uma delas se dirige a seu belicismo e à sua ânsia desmesurada e descabida de conquistar novos territórios, em vez de bem administrar os que já possuem. Pode ser ilustrada pela passagem em que More sugere que Rafael venha a ser conselheiro de algum rei. Em sua resposta, Rafael explica que as virtudes que possui não serviriam para assuntos de Estado, pois os príncipes preferem as questões militares, das quais ele nada sabe nem deseja saber, às artes benéficas da paz. Argumenta que seria, assim, inútil vir a ser conselheiro de um rei. Se fizesse parte do Conselho do rei da França, por exemplo, e se lhe indagassem sobre as combinações e intrigas para conservar Milão, sobre como reter a amizade do reino de Nápoles e outras questões que tivessem a ver com a ocupação de outros países, não seria escutado se aconselhasse o rei a abandonar a Itália; se chamasse a atenção para a extensão do próprio reino da França que, de tão grande, quase não pode ser administrado comodamente por um só homem; se perguntasse por que haveria o rei de desejar anexar novos territórios; se dissesse que as aventuras guerreiras esgotam o erário e destroem os povos. 

A referida passagem pode ser considerada uma indicação sobreo sentido atribuído por More a seu próprio livro. De fato, da mesma forma como seria inútil para Rafael aconselhar os reis sobre a boa política, seria inútil apontar a Utopia como exemplo para a Europa. É como se More dissesse: sei que não serei ouvido, pelo menos não pelos governantes, mas ainda assim eis meu relato. Busca com isso um efeito retórico. Os comentários acima, de Rafael, se coadunam com a afirmação de More ao final do livro, quando, ao comentar que há na República da Utopia muitas coisas que desejaria ver em "nossas cidades", conclui: "coisa que mais desejo do que espero."O relato deixa claro que o orgulho é o motor da guerra. Rafael chama de insanos os governantes por acreditarem que o bem-estar deseus países somente pode ser garantido por um exército forte e numeroso, constantemente em prontidão, parecendo até que buscam a guerra para exercitar as tropas. Os exércitos seriam mantidos pelos príncipes europeus para alimentar suas glórias, às custas dos súditos. Essa crítica veemente às guerras de conquista e às expansões territoriais terão certamente influenciado outros pensadores. Rousseau, por exemplo, em seu comentário ao Projeto da Paz Perpétua do Abadede Saint-Pierre, reconhecia que aquele projeto, embora sensato, seria menosprezado pelos governantes europeus, mais interessados na guerra e na expansão de seu próprio poder do que no bem de seus súditos. 

Há aqui um paralelismo com o argumento de Rafael segundo o qual quanto menos os súditos possuem, tanto melhor para o soberano. Este se sente mais seguro quando aqueles não têm demasiadas riquezas nem gozam de liberdade excessiva. As riquezas e a liberdade tornariam os súditos menos pacientes para suportar a dureza e a injustiça, enquanto a miséria e a pobreza debilitariam os ânimos e os tornariam cordatos epacientes, abafando o espírito de rebeldia, contrariamente à crença, hoje em dia corrente, de que a miséria e a opressão são socialmente explosivas e podem gerar revoltas. 

Assumamos a ficção de More para analisar as relações da ilha da Utopia, seja com a Europa, seja com os outros povos de seu próprio mundo utópico. 

Utopia de Thomas MoreWhere stories live. Discover now