A supremacia internacional da Utopia e sua capacidade de financiar as guerras se explicam em grande medida pelas riquezas acumuladas e sua condição de credora de outros países. De fato, além das riquezas que possuem na ilha, os utopienses têm no exterior, como reserva, somas imensas debitadas por muitas nações. Esses créditos são provenientes das mais diversas causas. Seu montante total, progressivamente aumentando, somaria a mais de "setecentos mil ducados" por ano. Enviam ao estrangeiro alguns coletores fiscais, que aí vivem magnificamente como grandes senhores. Ainda assim, sobram recursos. Parte das rendas das terras que administram no estrangeiro é destinada ao Tesouro, salvo quando preferem emprestá-las ao país onde se encontram essas terras. É raro reclamarem o pagamento total das somas devidas, preservando, portanto, sua situação de credores.
Há no livro de More a ideia da justiça no comércio internacional. Os utopienses aplicam preços módicos a suas exportações e se preocupam com a pobreza não apenas no seu próprio solo mas também em outros países, ao doarem aos pobres de cada país importador um sétimo dos produtos que para lá exportam. Para realizar esse comércio, produzem excedentes, plantando trigo, por exemplo, e criando gado em quantidade superior a suas necessidades. Quando têm provisões suficientes para dois anos de produtos como trigo, mel, lã, linho, madeiras, grãos, couros e peles e animais, vendem o excedente a outros países. Com os ingressos provenientes de suas exportações, importam não apenas bens de que necessitam (basicamente o ferro, pois são em quase tudo autossuficientes), mas também grande quantidade de ouro e prata (para aumentar suas reservas).
A criação dessas reservas e, sobretudo, a manutenção de outros países em permanente endividamento fazem parte de sua estratégia de dominação. Esta estratégia explica que não tenham pressa em cobrar pagamentos; que lhes seja indiferente que suas vendas ao estrangeiro sejam à vista ou a prazo e que tenham cuidado em assegurar que as obrigações de pagamento relativas ao comércio que realizam sejam contraídas por Estados e não por particulares. Neste último caso, ao realizarem suas vendas no exterior, não aceitam documentos de particulares sem o aval de alguma cidade. É a cidade que, ao se aproximar a data do vencimento, reclama o pagamento aos devedores particulares, depositando as somas correspondentes em seu próprio Tesouro e podendo delas fazer uso até que os utopienses as reclamem. Em geral, os utopienses não reclamam a totalidade desses recursos, a não ser quando as circunstâncias o exigem, por exemplo quando deles precisam para emprestar a outro país ou para fazer a guerra. É com esse dinheiro que pagam aos mercenários e compram até os inimigos, como já foi assinalado.
A existência do comércio não caracteriza uma expressiva abertura para o exterior, já que a necessidade de importação está limitada ao ferro. Por esta mesma razão, poucos comerciantes vêm à ilha negociar. Tampouco vêm em busca de importações, pois as exportações da Utopia são realizadas pelos próprios utopienses, desejosos de conhecer países estrangeiros e de preservar o costume e a perícia das coisas marítimas.
Depreende-se dos comentários de Rafael que povos vizinhos aceitam facilmente ser colonizados pela Utopia. De fato, os utopienses têm colônias, que são fundadas quando a população de sua ilha se torna excessiva. Neste caso, designam de qualquer cidade habitantes que vão fundar no continente próximo uma colônia à qual aplicam suas leis. Escolhem um território onde o povo local possua mais terras do que necessita e não as cultive. Ao ocuparem essas terras devolutas, atraem também os habitantes locais. Graças a esta união voluntária e à comunidade de instituições e costumes, ambos os povos chegam facilmente a fundir-se num só. Ao assim proceder, os utopienses conseguem tornar fértil a terra que os locais consideravam árida.
Como colonizadores, podem ser injustos e nada éticos. Os povos que recusam sua convivência, por exemplo, são expulsos de suas terras, que são apropriadas pelos colonizadores. Se alguns oferecem resistência, os novos colonos lhes fazem guerra. Tomam por justa causa de guerra a posse do território por um povo que o mantém despovoado, inútil e deserto, enquanto proíbe seu uso e posse aos que, por lei natural, têm o direito de achar nele alimento. Locke vai, mais tarde, nos seus Dois Tratados de Governo basear-se em ideias semelhantes para afirmar que a propriedade de um homem sobre a terra é tanto quanto ele lavra, planta, melhora, cultiva e dela pode usar seu produto e, assim, justificar a propriedade daqueles que são laboriosos, industriosos e racionais, em contraposição aos que não o são.
Os utopienses não têm, tampouco, escrúpulos de colocar seus interesses acima do das colônias quando precisam repatriar seus cidadãos. Essa necessidade existe quando uma realocação dos próprios habitantes da ilha não é suficiente para cobrir a diminuição de população em determinados lugares sem que o total da população fique abaixo do número considerado adequado. Isso ocorreu, segundo o relato de Rafael, pelo menos em duas ocasiões em que epidemias dizimaram a população. Os utopienses preferem o desaparecimento das colônias à diminuição da importância de qualquer de suas cidades.
O tratamento que dão aos trabalhadores imigrantes é igual ao aplicado aos próprios cidadãos, salvo num ponto: impõem-lhes a carga (acrescida) de trabalho a que estão acostumados em seus países de origem. Tratam-nos com bondade. É raro que esses estrangeiros pobres queiram partir. Mas quando isso ocorre, os utopienses não os impedem de fazê-lo e não permitem que partam de mãos vazias.
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Utopia de Thomas More
RandomUtopia, livro de Thomas Morus, é uma obra que em estilo irônico e narrado pelo personagem Rafael Hitlodeu, demonstra como seria aplicável uma sociedade sem propriedade privada e sem intolerância religiosa, na qual a razão é o critério para estabelec...