Um Velho e Seu Cão

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?: —Fiquei amigo do velho porque ele era prisioneiro da própria casa, porque estava preso naquela cadeira de rodas enorme e porque um copo de água não se nega a ninguém. Fiquei amigo dele depois que consegui esse trabalho novo que me levou a atravessar o bairro onde passei a infância para cortar caminho, foi antes de eu escutar a rádio e saber a verdade sobre Kirlian. Um tempo antes de ele me pedir para matar o cachorro dos vizinhos.

Locutor -INTERROMPE A LEITURA-: —Por consideração aos nossos ouvintes, uma denúncia anônima foi incluída na lista de vizinhos incômodos no arquivo da polícia local. Existe uma casa como essa em cada bairro, de cada cidade, aqui existe quase uma dezena de casas que as crianças evitam passar por medo, e os adultos, por sabedoria. Casas habitadas por bruxos, ogros e outros monstros, vocês estão ouvindo A Frequência Kirlian.

?: —"Me ajuda!", foram as primeiras palavras que ouvi o Velho dizer. Eu o conhecia de vista, de quando era criança e tinha amigos no bairro. A molecada tinha medo dele, sempre ficava sentado espreitando, encostado na janela que dava pra calçada. A gente achava que ele era um ogro e que morava numa casa do mau.

 A parte de dentro não era nada do que eu imaginei, invés de gritos e pilhas de ossos que me davam pesadelo quando criança, tinham móveis bonitos e uma parede cheia de retratos. Ele me pediu para pegar um copo d'água e me explicou que a porta da cozinha era estreita demais para a cadeira de rodas e por isso, ele não passava pela cozinha, também me explicou que seus filhos e noras não deixavam água o suficiente porque os desprezavam. Os filhos, as noras, os netos, todos moravam naquela casa mas sempre estavam ocupados, estudando ou trabalhando. O homem que as crianças tanto temiam, ficava preso dentro de casa o dia todo, sozinho e sem água. 

 A partir desse dia comecei a visitá-lo todo dia, saía mais cedo de casa quando ia para o trabalho para poder passar mais um tempo com ele e aos poucos, viramos amigos. Depois de algumas semanas, ele de repente me pediu para matar o cachorro do vizinho. Disse que o Cachorro deixava ele louco, latia o dia todo e só quando o velho estava sozinho. Foi a primeira vez que reparei no Cachorro que ficava nas grades da casa ao lado. Fazia meses que os vizinhos tinham se mudado e aí praticamente do nada começaram os latidos, todas as tardes, de todos os dias, assim que o velho ficava sozinho. O que mais irritava o Velho na cadeira de rodas, era que o Cachorro só latia para ele, parecia estar zombando dele, brincando com a sua solidão. 

 Tentei causar empatia nele, disse que o Cachorro também era solitário e que só queria conversar, mas o Velho não quis me ouvir... O Velho me disse que já tinha tentado arranjar um cúmplice, disse que prometeu quinhentos pesos para um garoto se ele batesse no Cachorro até ele parar de latir ou até morrer. O menino foi até a frente do jardim do Cachorro e o Velho não conseguiu mais enxergar o que aconteceu. O pedaço de pau caiu no chão e o menino correu, e o velho nunca mais o viu. 

 Com lágrimas nos olhos, o Velho me implorou para terminar o trabalho do menino. Cansei do assunto e achei que conseguiria assustar o Cachorro e que isso iria acalmar o Velho por um tempo. Fui em direção ao Cachorro, entrei dentro de sua grade, ele não rosnou ou me atacou, ficou simplesmente me olhando. Quando olhei no fundo de seus olhos, eu entendi tudo, senti algo, uma presença, vi que tinha alguma presença maligna na casa do velho, eu vi algo maligno  em Kirlian, muitas coisas malignas ocorrendo ao mesmo tempo, e de algum jeito, o cachorro também sabia.

 O Velho ficou furioso comigo, gritou umas ofensas e depois começou a chorar e a implorar que eu não abandonasse ele. Eu fui embora e não o visitei por um tempo. Uma semana atrás eu fui na casa do Velho e vi que ele estava muito pior, magro e com olheiras, parecia ter envelhecido uns dez anos. Ele estava mais assustado do que bravo e mais do que tudo, estava desconsolado.   Ele disse que o Cachorro começou a latir mais ainda nos últimos dias, que agora latia literalmente o dia todo, vinte e quatro horas, com o Velho sozinho ou não. E que de tanto latir, o Cachorro conseguiu falar, com uma voz de adolescente pois era filhote, e com uma voz arranhada e rouca como alguém que gritou durante semanas.

 O Velho me olhou com uma cara séria, agarrou meus braços para eu não ir embora e disse que o Cachorro tinha falado "Suas noras querem te matar, velho, eu ouvi elas no quintal, saía daí, enquanto pode!" e que rapidamente seus donos apareceram pela primeira vez, e o levaram para dentro, enquanto ele era arrastado, ele gritava "Não! Ele precisa saber, ele precisa saber!". O Cachorro só queria ajudar, mas o velho não quis ouvir... 

 Ele me pediu para ajudar ele a fugir da casa, eu não sabia o que fazer então me desculpei do jeito mais tonto e covarde do mundo, disse que estava atrasado para o trabalho. Eu fui embora, fugi e não voltei mais... Nos dias seguintes, fingi pra mim mesmo que não tinha acontecido nada, que eu tinha imaginado tudo aquilo, que Kirlian não era diferente dos outros lugares.  Nunca fui ouvinte, mas descobri que estava tudo aí, se a gente prestasse atenção. Era como se tivesse duas Kirlians: A que eu escutava mas preferia ignorar, a que eu acreditava ter algo maligno e outra que eu tinha certeza.

 Hoje de manhã eu vi a notícia no jornal, dizia que um idoso tinha caido da escada que separava a cozinha do quintal, e que o cilindro de oxigênio acoplado na cadeira de rodas tinha esmagado a cabeça dele. Mas o Velho não usava nenhum tanque para respirar, e muito menos conseguia ir pra cozinha com as cadeiras de rodas. Eu fui para a casa do Velho no mesmo dia, vi a família dele pela primeira vez, era de dia e a casa estava cheia, estavam todos felizes, confortáveis e tranquilos. Meu Deus! Os vizinhos me disseram que sacrificaram o Cachorro, que ele tinha contraído raiva e não parava de latir. 

 Não tenho provas de nada do que acabei de falar, ninguém nunca vai confessar o crime e as duas testemunhas principais estão mortas. O nome da família também não importa, apesar de terem feito algo terrível, eu sinto que tem algo protegendo eles de alguma forma... Tem duas Kirlians lá fora, e ninguém pode fazer nada a respeito, só se manter atento talvez. Tem algo protegendo a cidade, creio eu ser algo ou alguém, não é Sr. Locutor?

Locutor: —Nunca andem encostados nas paredes, os cachorros, os loucos e os outros estão à espreita dos desprevinidos, isso é um aviso da sua rádio preferida A Frequência Kirlian.

 -Abel Eldritch recebe as cartas de seu irmão, contendo: A foto do Locutor, o mapa de Kirlian e um mandato para abrir fogo urgentemente contra Kirlian;


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A Freqüência Kirlian (Baseado na animação da Netflix)Onde histórias criam vida. Descubra agora