❤ Capítulo 2

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Flexiono os joelhos e me inclino, tateando as caixas espalhadas no chão

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Flexiono os joelhos e me inclino, tateando as caixas espalhadas no chão. Passo o dedo na parte de cima do papelão, para sentir a textura dos pontos em relevo. Meu pai me ajudou a organizar os livros por tipo. Reconheço a letra C. Isso significa que aqui estão os clássicos.

Sorrio e abro a tampa, retirando um exemplar. Mais uma tateada, agora na capa do calhamaço na minha mão, e logo consigo identificar que se trata de "O morro dos ventos uivantes". Meu queridinho!

Ler é o meu hobby favorito desde os 7 anos. Fiquei apavorada quando perdi a visão e imaginei que nunca mais teria o prazer de folhear uma página. Apesar de ser apaixonada pela tecnologia, quando se trata de livros, eu gosto mesmo é do papel.

Um mundo só de audiobooks seria um martírio para mim.

Por sorte, a associação de deficientes visuais, da qual eu fiz parte durante anos na minha cidade natal, possui uma impressora em braille. Todas as obras autorizadas podem ser replicadas para uso dos membros.

Minha nova coleção é de lá.

Coloco Heathcliff na estante e me abaixo novamente, apanhando outro livro. Os pontos em relevo, sentidos pelo meu dedo, logo apresentam Mr. Darcy.

— Nica, eu já organizei tudo nos dois quartos e no banheiro. — A voz alta de Ane chega aos meus ouvidos, enquanto guardo "Orgulho e Preconceito". Retorço os lábios com o grave que fica cada vez maior à medida que ela se aproxima de mim. — Só faltam agora a sala e a cozinha.

Se eu não conhecesse essa doidinha desde sempre, e soubesse que é de nascença esse tom exagerado, eu poderia ficar irritada mais uma vez no dia. Muita gente pensa que todo cego é surdo.

Uma das poucas coisas que ainda me abalam é gritar na minha orelha ou fingir que eu não existo. A maioria das pessoas não tem meio termo. Ou falam como se parecêssemos crianças, separando as palavras por sílabas e em um tom bem acima do habitual; ou simplesmente nos ignoram e perguntam a terceiros o que seria dirigido a nós.

Hoje de manhã mesmo, o porteiro do prédio, ao nos receber, conversou com Ane normalmente e referiu-se a mim em terceira pessoa.

"Ela está bem?"

"Será que ela precisa de algo?"

Eu sei que com muitos nem é intencional, contudo, cansa ter que explicar toda vez que podem falar comigo como com qualquer outra pessoa. É exaustivo provar dia a dia que sou independente, um ser humano qualquer.

Inspiro fundo, espantando os pensamentos. A ansiedade por mudar de cidade me deixou um pouco na defensiva, resmungona demais.

Não sou assim. Não mais.

Eu estava acostumada com minha rotina, com as pessoas que faziam parte dela. Vir para São Paulo e imaginar o trabalho que será me adaptar e adaptar os outros, está me esgotando.

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