[Prólogo] Ignore seus sentimentos.

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Uma sexta-feira de 2010.

O ponteiro menor do relógio do refeitório marcava meio-dia, mas eu não enxergava bem o suficiente para definir os minutos. Com certeza estava antes do número seis. Talvez... quatro? Não era como se eu realmente me importasse.

As vozes dos alunos esfomeados ecoavam na grande sala, misturado aos sons de talheres e passos. Não mais de cadeiras. Já fazia quase dois anos desde que a direção substituíra as mesas de madeira por ferro soldado ao chão.

Ignorei os murmúrios atrás de mim, um grupo de garotas irritadas por eu ocupar uma mesa inteira sozinha sem sequer estar comendo. A culpa não era minha a falta de dinheiro para pagar por um pouco do veneno vendido no refeitório, ou pelos funcionários do orfanato estarem indiretamente tentando me matar de fome.

Joguei os braços sobre a mesa, para logo em seguida deitar a cabeça. Eu estava cansada daquilo, os pequenos erros, as "cutucadas". Sempre soube que não era aceita naquele orfanato — ou lar adotivo, que fosse. Roupas sumiam, comida faltava, repreensões diárias. Não podia evitar pensar no meu próximo aniversário, quando completaria os 18 anos. Com certeza levaria pouco tempo a partir dali para a minha expulsão. Não ficaria surpresa se a papelada já estivesse pronta.

Eu precisava de um emprego.

O som da bandeja pousando na mesa fez com que eu erguesse a cabeça rapidamente, causando uma breve tontura. Amanda, uma das colegas de sala a qual eu possuía uma pequena porcentagem de amizade, e logo em seguida Caroline.

Seus pratos pareciam o contrário do que seus corpos mostravam. Amanda, magra e pálida, praticamente ocultara qualquer pedaço visível do plástico descartável, enquanto Caroline, com o peso claramente acima do saudável, se restringia a elementos verdes e um pedaço pequeno de frango grelhado, não muito contente. Senti inveja das duas.

— Olha... — Caroline começou, encarando o prato da amiga.

— Não. — sua voz soou determinada, apesar da boca em processo de mastigação. Amanda estava com a expressão de quem já havia passado pelo mesmo diálogo diversas vezes. — Não vou aceitar dinheiro, livros ou roupas. Não vou ajudar você a se matar, e não ouse dizer que não tem nada a ver quando existe uma pilha de exames mostrando o quão ferrada está.

Caroline suspirou e cutucou o frango. Estava de dieta por ordens médicas e aquilo parecia ser seu inferno. Enquanto ela encarava a alface em seu prato numa tentativa falha de queimá-la, vi o olhar de pena da amiga. As duas praticamente havi­­­am crescido grudadas, provavelmente possuíam algum tipo de comunicação-mental-super-especial também.

O assunto se voltou para o tema escolar, trabalhos finais que precisávamos entregar na próxima semana. Esse era nosso último dia do ano letivo com aulas no período integral. Faltava aproximadamente duas semanas para o fim das aulas e finalmente estaríamos livres do ensino médio.

Olhei em direção as janelas e avistei Christopher falando no celular, encostado numa das colunas acinzentadas. Tudo o que eu sabia sobre o garoto era o seu nome e que éramos da mesma turma, pois fomos sorteados para escrever juntos o trabalho de química. Pelos raros comentários dos professores que minha mente conseguiu relembrar, ele devia ser bom. Tentei me recordar de algo, qualquer informação sobre o garoto, mas era um aluno tão silencioso que quase parecia não existir.

— O que vocês sabem sobre Christopher? — perguntei, interrompendo qualquer assunto na mesa.

Caroline pareceu entrar num estado pensativo, enquanto Amanda tentava mastigar mais rápido.

— Eu o vi uma vez depois da aula. Aparentemente, fazíamos o mesmo caminho para casa, mas quando tentei chamá-lo, ele me ignorou e depois... Sumiu.

Caminho de Sangue e PólvoraOnde histórias criam vida. Descubra agora