II - A ESCURIDÃO SE APROXIMA

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"É muito difícil, entenda. São detalhes pesados, perigosos... Eu me sentiria muito melhor em nunca mais ter de lembrar do que aconteceu logo em seguida, mas não consigo. Isso me assombra. Você tem certeza de que quer saber a história toda, mesmo? Dê-me um tempo então, por favor. É doloroso demais. "

 Ben Simons, 17 de fevereiro de 2015

***

Eu acordei sem fôlego.

O suor escorria pela minha testa e meu coração batia violentamente. A última lembrança que eu tinha ainda pulsava em minha mente com aterrorizante nitidez, mas a sensação de ter despertado completamente arfante fez tudo parecer ainda mais confuso. Teria sido um pesadelo?

Levantei da cama com dificuldade e olhei pela janela. O sol nascia timidamente e as nuvens preenchiam boa parte do céu. Mas eu ainda estava em South Hampton e lá fora tudo parecia tão normal quanto no dia anterior. No entanto, o que aconteceu do momento em que acordei de madrugada para buscar água até a hora, segundos atrás, em que abri os meus olhos sem quase conseguir respirar parecia obscuro demais para ser verdade.

A casa estava silenciosa e as janelas balançavam num ritmo disforme por conta do vento. Como um déjà vu, levantei da cama, saí do quarto e comecei a caminhar lentamente pelo corredor. Só que desta vez eu estava estranhamente incomodado, com uma horrível sensação ao olhar para a viga no final da escada. Mas não havia nada lá. Esfreguei os olhos para tentar colocar os pensamentos em ordem.

Viviam na casa tia Julia, tio Romeo, minhas primas Amanda, que tinha dezoito anos, e a Carla, de cinco. Eu tinha dezessete anos na época. Lembro que fui passar essa temporada na casa deles para ajudar a tomar conta da Carla, pois a minha tia Julia, do alto de seus 57 anos, havia sofrido um violento derrame e vivia na cama desde então, num triste estado vegetativo. Tio Romeo trabalhava dia e noite em outra cidade para poder pagar as contas hospitalares, que, segundo ele, eram altíssimas, e muitas vezes precisava passar mais de um dia fora de casa. Amanda havia entrado para a faculdade em Derry no final do ano passado, então não morava mais lá. Resumindo, naquela semana, estávamos somente eu, tia Julia e a Carla em casa.

Continuei caminhando pelo corredor com certo receio e passei pelo quarto da tia Julia. Abri a porta com cuidado, o suficiente para ver que ela continuava a dormir profundamente e seus equipamentos emitiam o mesmo bip intervalado de sempre. Tudo tristemente normal por ali. 

No andar de cima, havia três quartos. O quarto de Amanda em um dos extremos do corredor, que era onde eu dormia; o quarto dos meus tios e o quarto da Carla, que era no outro extremo do corredor, já próximo à escada.

Ao passar pela porta do quarto dela, notei que estava aberta. Pude ver que a Carlinha estava sentada no chão, desenhando. Dei duas batidas de leve na porta:

— Bom dia, mocinha — eu disse, tentando parecer o mais tranquilo possível. — Posso entrar?

— Oi, Benny, entra! — ela se virou e olhou para mim, sorrindo. — Tô desenhando!

 Carlinha adorava me chamar pelo apelido, Benny. Ela dizia que chamar "só" de Ben era muito chato. Sentei no chão ao lado dela e perguntei:

— O que você está desenhando?

— Estou desenhando minha família e meus amigos! Olha! — ela estendeu a folha para mim. — Tem você aqui também!

Olhei o desenho que ela me mostrava e na minha representação constavam, fielmente, meus cabelos negros e bagunçados. Mas o que havia ao meu lado no desenho retornou o frio à minha espinha.

— Quem é este, Carlinha? — perguntei, apontando para o que parecia ser um imenso bode com vários chifres e patas tortas, que posava ao meu lado.

Carlinha mudou sua expressão completamente e puxou o desenho da minha mão.

— Ele não gosta de você! — ela disse, de repente.

— Quem? — perguntei.

— Ele não gosta de você! Não gosta de você! — ela começou a repetir. — Ele disse que você é igual a ele. Não gosta. Não gosta. Não...

De repente, da mesma forma que ela começou a falar, parou. E voltou a desenhar. Eu respirava meio fora de compasso, ainda tentando entender o que estava acontecendo desde a noite anterior. Sem aviso, ela falou:

— Ele é a escuridão. E a escuridão está chegando.

— O quê, Carlinha?

— A escuridão está chegando. Já levou a mamãe. — ela disse e virou para trás, olhando em direção à porta. — Oi, mãe.

Assustado, olhei para trás a tempo de ver que a tia Julia passava pela porta. Mas era definitivamente impossível. Ela estava deitada na cama havia quase dez meses, praticamente desde que mudaram-se para aquela casa. Levantei de um salto e fui até a porta, mas não vi ninguém. Desci as escadas correndo, procurando desesperadamente algum sinal que provasse que eu não estava ficando louco. Quando finalmente eu desisti de procurar, subi as escadas, com a mente completamente confusa. Lá fora, o que parecia ser um dia escuro começava a se formar e, dentro da casa, o ar estava pesado. O que estava acontecendo?

Quando cheguei ao último degrau, vi que a Carlinha estava parada em frente à porta do quarto de sua mãe. Ela olhava para a maçaneta fixamente. Com certa lentidão, abriu a porta, mas o que quer que ela tenha visto a fez gritar muito alto e tombar para trás. Ela se levantou, correu na minha direção e jogou-se nos meus braços.

— Muito medo! Muito medo, Benny, muito assustador! — ela chorava. Mas, logo em seguida, parou e olhou vidrada para o meu rosto. — A escuridão está chegando.

Atrás de mim, um bizarro barulho de cascos subindo as escadas se iniciou. Acima, a viga rangia assustadoramente.

E, assim, o medo se apoderou do meu coração. Segurei a Carlinha no colo e corri desabalado para o quarto.

Horror na Colina de Darrington [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora