Sentei-me para escrever com ajuda do ar fresco da noite. Estive me sentindo estranha, relembrando coisas que, na verdade, deveria ter esquecido. Era o passado fazendo presença novamente no meu dia a dia e como esquecer o quase incurável?
Eis então a cena: Quatro horas da manhã, o sol nem sonhava em nascer ainda. Fazia bastante tempo em que eu não pensava tanto sobre esse assunto e talvez isso fosse um sinal, talvez fosse paranoia ou mesmo um mal inacabado. Dessa vez, o que me perturbava era não a falta, não a saudade, mas sim a preocupação. Mesmo após tê-lo perdoado e também ter me perdoado, seu fantasma aparecia na minha mente e às vezes não me deixava dormir. Foi um típico final de filme trágico que, supostamente, se espera uma continuação. O que não era o meu caso.***
O sol brilhava lindamente naquele dia e as árvores ao meu redor pareciam ainda mais verdes, possuíam ainda mais cor. Dizer apenas que eu estava feliz pois iria vê-lo não era o bastante, eu estava eufórica, tremendo, mãos suando e aquele recorrente friozinho na barriga. Era horrivelmente lindo. Já passava da hora do almoço e eu tinha aula nesse dia, que obviamente, faltei - ATENÇÃO: não recomendo a prática de ficar faltando aula para ver o boy magia, no final, isso pode acabar dando muito errado, mas fazer o quê se todo mundo faz?
Nos encontramos numa praça perto da minha antiga escola e passamos a tarde ali conversando. Seja dito de passagem que nada muito sério e ousado acontecia: nós conversávamos, nos olhávamos e eu me encolhia com vergonha. Foi necessário em torno de treze encontros desse para que acontecesse o primeiro beijo e hoje em dia eu não consigo entender porque aquele cara gostava de mim naquela época. Eu era tola, uma criança de apenas exatos treze para catorze anos.
Quando nos encontrávamos, era mágico pra mim e eu era muito feliz. Certo dia, minha mãe descobriu que eu gostava dele e fez um caos dizendo que ele deveria vir em nossa casa no dia seguinte, senão, algo de ruim aconteceria, algo que não me lembro agora. Incrivelmente ele foi e até jantou em nossa casa. Hoje, consigo entender que ele se sentiu meio deslocado ali, mesmo eu estando perto dele.
Algum tempo depois, eu comecei a namorar um menino em casa. Não era o mesmo, não era ele, ele sumiu. Eu pensava naquela minha paixão por ele quase todos os dias e só digo quase para não parecer exagero. Eu simplesmente o deixei pra lá, "segui" minha vida, deixando aquele amor de dois anos para trás.
Meu novo namoradinho era um escroto: era machista, homofóbico, racista e mais algumas coisas que já dão pra imaginar. Depois de um ano namorando ele, os dias começaram a se tornar um verdadeiro inferno e ele sabia que estava sendo a causa disso. Mesmo que ele morasse longe, era possessivo e tentava me controlar pelo celular. Era realmente horrível. Nessas horas eu me lembrava do outro e como ele se importava com os meus problemas, às vezes me ajudava quando podia e era meu ombro amigo quando eu precisava. Minha mãe acabou não indo muito com a cara dele quando ele foi em nossa casa, mas "prometemos" continuar juntos mesmo assim nós acabamos quebrando essa promessa.
Depois de um tempo, ele conseguiu achar uma rede social que eu tinha e falar comigo. Comecei a relembrar algumas coisas e ele havia pedido para nos vermos, porém, sempre que chegava na data marcada, ele nunca podia. Certo dia, liguei para seu celular e esperei alguém atender pois não sabia se ele ainda estava com o mesmo número. Sentindo o coração na mão, enfim, ouvi uma voz feminina me responder. Pedi corajosamente para falar com ele dizendo que era urgente e depois que eu me identifiquei pra ele, fingiu que a ligação estava falhando e desligou. Ainda tentando digerir tudo aquilo que havia se passado em tão poucos segundos, repentinamente, a mulher retorno. Perguntou do que se tratava e ali me vi diante de duas decisões: a primeira era mentir sobre o motivo da ligação, me desculpar e desligar assim como ele fez; a segunda era dizer a verdade e relatar o que havia acontecido dele ter me chamado pra conversar de novo. Fiquei uns trinta minutos conversando com ela, descobri que ele tinha dois filhos com ela. Descobri que ela era a mulher dele, digamos assim, pois acredito eu que ele nunca se casou oficialmente e me lembro também que ela tinha um nome bizarro.
Por algum motivo, deixei isso pra lá gradativamente. Doía no fundo da minha alma, eu sabia que havia amado ele o bastante pra estar sentindo aquela dor daquele jeito. Os anos se passaram e consegui esquecer. Algumas vezes, pensei ter visto ele na rua e isso trazia à tona as minhas lembranças, os sorrisos, os beijos e até mesmo as brincadeiras. Meu coração me trazia a presença confortante dele nos meus momentos mais obscuros, mesmo tendo acontecido aquilo comigo.
Chega, era hora de finalmente esquecer. Não foi simples, mas foi necessário. Minha vida seguiu, me tornei uma pessoa mais forte e claro que nada disso foi de um dia pro outro, foi uma evolução gradativa, até que um dia, recebi uma mensagem:"Vejo que você mudou bastante nesses últimos anos..."
Sim, era ele. Me perguntei o que ele queria naquela altura do campeonato e desacreditei ser possível que ele ainda estivesse me procurando. A raiva me subiu a cabeça e comecei a dizer várias coisas, quais não me lembro agora. Ele se esquivou e incrivelmente, me pediu desculpas. "O que está acontecendo..." - esse foi o meu pensamento. Ele disse que tinha se arrependido de ter me magoado, que gostava da minha amizade e que estava disposto a "avisar" aos caras que eu conheceria dali em diante pra que não fizessem comigo as mesmas coisas que ele fez. Surpreendente.
De um jeito mais consciente, perguntei como ele estava, ele me disse que muita coisa havia mudado. Era estranho porque era ele, mas ao mesmo tempo, era uma pessoa totalmente diferente. Mais tarde, confessei que tinha sido algo bom ele ter retornado e confessado aquilo. Mesmo depois de tudo, isso deu um certo alívio no meu coração, sabe? Saber que ele estava bem e mais consciente de si e de seus atos. Me deixou tranquilamente feliz. Nessa fase da minha vida eu estava ciente demais pra, enfim, compreender que naquele tempo em que ele havia tentado fazer contato comigo, foi pra saber se eu estava bem e talvez dizer alguma coisa, mas acho que não estávamos prontos. Acho que foi isso.
Finalmente, minha mente conseguia relaxar ao pensar nisso, ao pensar sobre ele. Talvez você não entenda, mas não te culpo por isso. Não é todo dia que alguém simplesmente volta pra nossa vida.
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A Ligação e outros contos
Short StoryContos biográficos com um pouquinho de ficção no meio pra deixar tudo saboroso, mas de um jeito triste e reflexivo... E bem triste.