CAPÍTULO CI
Foi nesse estado que o veio achar a notícia da morte do Freitas Chorou uma lágrima às escondidas; tomou a si custear as despesas do enterro, e acompanhou o defunto, na tarde seguinte, ao cemitério A velha mãe do finado, quando o viu entrar na sala, quis ajoelhar-se aos pés dele; Rubião abraçou-a a tempo de impedir-lhe o gesto. Esse ato do nosso amigo fez grande impressão nos convidados. Um deles veio apertar-lhe a mão; depois a um canto, baixinho, contou-lhe a injustiça da demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa de intrigas...
— Imagine V. Ex.a que aquilo é (com perdão da palavra) um covil de patifes...
Chegou a hora de sair o enterro; as despedidas da mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações, tudo de mistura, e lancinante. As mulheres não conseguiram arrancá-la dali- foram precisos dous homens e o emprego de força; ela gritava e teimava por tornar ao cadáver meu filho! meu pobre filho!
— Um escândalo! insistia o demitido. O próprio ministro dizem que não gostou do ato; mas V. Ex.a sabe, para não desmoralizar o diretor...
— Pan... pan... pan... soavam os martelos surdamente, pregando o caixão.
Rubião acedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das argolas, e deixou o demitido. Fora, alguma gente parada; os vizinhos, às janelas, debruçavam-se uns sobre os outros, com os olhos cheios daquela curiosidade que a morte inspira aos vivos. Ao demais, havia o coupé do Rubião, que se destacava das caleças velhas Já se falava muito daquele amigo do finado, e a presença confirmou a notícia. O defunto era agora apreciado com certa consideração.
No cemitério, não se contentou Rubião com deitar a pá de terra, ato em que foi primeiro, por solicitação de todos- esperou que os coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do ofício. Tinha os olhos úmidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros, e, à porta, com uma só chapelada para a direita e para a esquerda, saudou a todas as cabeças descobertas e curvas. Ao entrar no coupé, ainda ouviu estas palavras, a meia voz
— Parece que é senador ou desembargador, ou cousa assim...
CAPÍTULO CII
Era noite entrada. Rubião vinha por ali abaixo, recordando o pobre-diabo que enterrara, quando, na Rua de S. Cristóvão, cruzou com outro coupé, que levava duas ordenanças atrás. Era um ministro que ia para o despacho imperial. Rubião pôs a cabeça de fora, recolheu-a e ficou a ouvir os cavalos das ordenanças, tão igualzinhos, tão distintos, apesar do estrépito dos outros animais. Era tal a tensão do espírito do nosso amigo, que ainda os ouvia, quando já a distância não permitia audiência. Catrapus... catrapus... catrapus...
CAPÍTULO CIII
Ao sétimo dia da morte de D. Maria Augusta, rezou-se a missa de uso, em São Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; três dias depois, meteu-a no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas horas da tarde. Maria Benedita fora visitar as amigas da vizinhança, que a tinham acompanhando nos primeiros dias de aflição; Sofia estava só, vestida para sair.
— Mas, não importa, disse ela convidando-o a sentar-se; fico ou saio mais tarde.
Rubião retorquiu que a demora era curta; vinha dar-lhe um papel.
— Em todo caso, sente-se; também se pode dar um papel sentado.
Estava tão bonita, que ele hesitou em dizer-lhe as palavras duras que trazia de cor. O luto ia-lhe muito bem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, via-se-lhe metade do pé, sapato raso, meia de seda cousas todas que pediam misericórdia e perdão. Quanto à espada daquela bainha, — assim chama à alma um velho autor,— parecia não ter gume nem campanhas; era uma ingênua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquejar; a primeira palavra arrastou as outras.