Capítulos de 1 a 10

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CAPÍTULO I

Rubião fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cortejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.

"Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas", pensa ele. Semana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral.

Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça...

CAPÍTULO II

Que abismo que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha... — Bonita canoa!

— Antes assim! — Como obedece bem aos remos do homem! — O certo é que eles estão no céu!

CAPÍTULO III

Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. Prata, ouro, eram os metais que amava de coração; não gostava de bronze, mas o amigo Palha disse-lhe que era matéria de preço, e assim se explica este par de figuras que aqui está na sala, um Mefelistófeles e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolheria a bandeja, — primor de argentaria, execução fina e acabada. O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas, e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, foi degradado a outros serviços.

— Quincas Borba está muito impaciente? perguntou Rubião bebendo o último golo de café, e lançando um último olhar à bandeja

— Me parece que sim.

— Lá vou soltá-lo.

Não foi; deixou-se ficar, algum tempo, a olhar para os móveis Vendo as pequenas gravuras inglesas, que pendiam da parede por cima dos dous bronzes, Rubião pensou na bela Sofia, mulher do Palha, deu alguns passos, e foi sentar-se no pouf, ao centro da sala, olhando para longe...

"Foi ela que me recomendou aqueles dous quadrinhos, quando andávamos, os três, a ver cousas para comprar. Estava tão bonita! Mas o que eu mais gosto dela são os ombros, que vi no baile do coronel. Que ombros! Parecem de cera; tão lisos, tão brancos! Os braços também; oh! os braços! Que bem feitos!"

Rubião suspirou, cruzou as pernas, e bateu com as borlas do chambre sobre os joelhos. Sentia que não era inteiramente feliz; mas sentia também que não estava longe a felicidade completa. Recompunha de cabeça uns modos, uns olhos, uns requebros sem explicação, a não ser esta, que ela o amava, e que o amava muito.

Não era velho ia fazer quarenta e um anos, e, rigorosamente, parecia menos. Esta observação foi acompanhada de um gesto; passou a mão pelo queixo barbeado todos os dias, cousa que não fazia dantes, por economia e desnecessidade. Um simples professor! Usava suíças, (mais tarde deixou crescer a barba toda), — tão macias, que dava gosto passar os dedos por elas. E recordava assim o primeiro encontro, na estação de Vassouras, onde Sofia e o marido entraram no trem da estrada de ferro, no mesmo carro em que ele descia de Minas; foi ali que achou aquele par de olhos viçosos, que pareciam repetir a exortação do profeta. Todos vós que tendes sede, vinde às águas. Não trazia idéias adequadas ao convite, é verdade; vinha com a herança na cabeça, o testamento, o inventário, cousas que é preciso explicar primeiro, a fim de entender o presente e o futuro. Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba.

Quincas Borba (1891)Onde histórias criam vida. Descubra agora