CAPÍTULO QUATRO

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A esposa, Dona Munda, espera no corredor. A obediência está escrita na curva das suas costas. Contudo, há na sua voz um travo de impaciência: — Eu não disse?
— Nem me deixou auscultar…
— O senhor estudou doenças. Eu aprendi foi na doença.
— O sofrimento é sempre a nossa escola maior.
— Não falo disso. Falo desse homem, ele é que foi a minha doença, Doutor Sidonho.
Mais nova, escutava as outras lamentarem-se do destino, elas que estavam na flor da idade. Nunca lhe doeu tanto uma inveja. Porque, a ela, nenhuma idade tinha sido de flores. Amarelecida a idade, esbateu-se o sonho de ser pétala, simples lembrança da fragrância.
— Veja o que esse estupor me fez, deu-me cabo da idade, agora sofro de rugas até na alma.
— Você ainda é muito bonita, Dona Munda.
— Deixe esses elogios para a minha filha Deolinda.
Dona Munda tem cinquenta anos. Sabe a idade. Mas não parece ter a certeza de estar viva. Certa está da sua antecipada viuvez. Na Vila a conhecem por “semiviúva”. Daí a casa sempre obscura. O luto já arrumado poupa nas improvisadas urgências: está-se antecipando o desevento. E não é a opinião contrária do médico que lhe rouba a certeza: o marido não tardaria a definitivar-se. — Bartolomeu falou de pagamentos. Ele sabe de alguma coisa?
— O fulano nunca sabe nada. Quem não sabe de nada sempre desconfia de tudo.
— Eu já disse, Dona Munda, o que eu faço aqui, convosco, não é um serviço. Não quero ouvir falar em pagar.
— Agora, o fulano começou com a mania que eu tenho de parar com o meu trabalho de lavadeira.
Desde há muito que Munda ganhava a vida lavando roupa para o pequeno hospital da Vila. Mas agora, que eclodira a epidemia, o marido se opõe a que roupa contaminada dos tresandarilhos entre no quintal de sua casa. Não importa que esses lençóis venham já desinfectados.
— Você sabe do que falo, Mundinha — argumentou Bartolomeu. — Desinfectam-se micróbios. Não se desinfectam espíritos…
A ordem acabou sendo negociada: a esposa lavaria apenas a roupa que não provinha da enfermaria onde os tresandarilhos estavam confinados.
— Veja as minhas mãos, Doutor Sidónio. Acha que estão doentes, as minhas mãos:
O médico contempla a mulher e avalia das suas parecenças com a filha, Deolinda. Dona Munda é mulata. Na região não se conhece uma outra mestiça que tenha casado com um negro. Ela deu o passo com coragem. Teve que romper com a família que a acusou de “fazer a raça andar para trás”. Bartolomeu Sozinho também foi obrigado a cortar laços com os seus. Trazer uma mulata para o seio familiar era uma ousadia, mais que isso: uma traição. “Mas ela é quase negra”, ainda argumentou. “Os mulatos são pretos só quando lhes convém”, foi a resposta.
No dia em que o jovem Bartolomeu Sozinho, envergando o melhor fato do seu melhor amigo, se apresentou perante a família da noiva, ele proclamou com solenidade: — Não sou preto!
— Então?
— Sou extremamente mulato.
Apesar de tudo, a chamada raça, ao contrário das previsões, não tinha “retrocedido”. Deolinda era de pele clara, mais clara que a própria mãe. Para não falar dos tons de pele que se ocultam nas resguardadas partes do corpo.
— É verdade, ela é toda muito clarinha — confirma Sidónio.
— Como sabe?
— Sou médico, não esqueça, Dona Munda — responde sem pestanejar. Rapidamente dá outro rumo à conversa:
— A propósito, fiquei com a impressão de que o nosso Bartolomeu está bem mais humorado, bem mais desperto.
— O fulano — é assim que refere o marido —, o fulano continua a paspalhar-se na janela para as meninas…
No fundo, sente pena dele. Desde há anos que Bartolomeu se babuja a contemplar as meninas da rua. Um dia, quando abrisse a porta e lhe surgisse uma moça de vistosas carnes, o fulano quedaria petrificado.
— Homem que baba não morde.
Esse antecipado falhanço tem, para ela, um sabor de vitória. O médico sente nesse vaticínio a consumação de antiga vingança.
Sidónio encosta o guarda-chuva a um canto para depois seguir a dona da casa até à cozinha. O objecto, para ele corriqueiro, é estranho naquele contexto. Ali ninguém se proteje da chuva. Esperase simplesmente que a chuva passe. Na Vila só existe o guarda-sol. Vale a pena abrigar-se do astro rei nos dias límpidos. Não vale a pena esperar é que o nevoeiro passe nas manhãs que nascem sombrias. A neblina — que deu o nome à Vila — é a fuligem das nuvens. E em nenhum outro lugar do mundo há tanta nuvem ardendo.
— É verdade que o seu marido saiu sete vezes de casa? — Eu não conto as saídas. Conto só as vezes que ele voltou… — Está certo.
— E lhe digo, Doutor: não fiquei a perder. Porque ele voltou mais vezes do que saiu.
— Bom, há maneiras curiosas de fazer contas…
— Para mim, o meu marido me chegou sempre multiplicado…
Enche a peneira de arroz. Vai catando os grãos, com a lentidão de uma carícia. Escuta-se o ribombar de um trovão, as cigarras suspendem o canto. O silêncio, num segundo, fica maior que a savana. Depois, aos poucos, os insectos regressam ao estridente concerto.
— Desculpe a curiosidade, são motivos profissionais, mas nessas sete saídas não houve registo de doenças que ele tivesse apanhado?
— Ele partia já doente, o partir era mesmo a doença dele.
— Mas com essas outras mulheres…
— Outras mulheres? Quem disse que havia outras mulheres?
— Mas, então, ele não saiu de casa?
— Saiu por outras razões. Existem outros motivos neste mundo, nem sempre são mulheres…
— Desculpe, Dona Munda, não me intrometo nessas coisas. Mas eu sou médico, preciso saber de doenças passadas. Incluindo, devo dizer, as doenças venéreas.
— Meu marido sempre me foi fiel. Ele dormiu com outras mas nunca me traiu.
— Desculpe, não entendo.
— Quando ele foi infiel, eu fui infiel junto com ele.
— Continuo sem entender.
Estratégia que ela congeminara para pastorear os devaneios sexuais do seu companheiro. De noite, o homem já dormido, ela lhe sussurava ao ouvido maliciosos convites, disfarçando a voz, fazendo-se passar por outras mulheres. E o incitava com picanterias, jogos de apimentar o nervo e arrepiar as carnes. Fazia isso para que ele sonhasse livremente com as mais diversas amantes. E se contentasse assim, basto e bastante, nos sonhos. No real da vida, o marido se guardava só para ela. — Ele foi infiel, sim. Mas só com as inexistentes.
— Agora, entendo.
— Eu fui, sempre, as putas dele.
— Esperteza sua, Dona Munda. Tiro-lhe o chapéu.
O sorriso ralo é, em seu rosto, o florescer do capim. Nenhum orgulho, nenhuma bandeira de vaidade.
— Me putifiquei tanto, Doutor — vai repetindo. Mas não é um lamento. Simples constatação. E suspira, em conclusão: — Para a mulher há dois momentos felizes na cama: o primeiro, quando o homem se atira para cima dela, e o segundo, quando o homem sai de cima dela.
Faz saltar o arroz na peneira para separar as impurezas. Depois, vence-se a si mesma, para chegar à confidência:
— Posso dizer uma coisa, Doutor? Essas vezes que fui puta, foram os meus únicos momentos de prazer.
Esse tempo, porém, teve fim. Agora, já nem esposa nem puta. Há anos que o casal se apartou, cada qual em seu quarto, cada qual em seu sonho.
— Agora, somos como o dedo e o anel: não nos fazemos falta, mas não vivemos longe um do outro.
Parece aceitar o peso do destino. Ao menos, no final de tanta ingloriosa batalha, lhe resta esse único despojo de guerra: a culpa. No resto, Mundinha partilha a condição das demais mulheres da Vila: envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber morrer. — Posso perguntar-lhe uma coisa? Por que razão vocês passaram a dormir separados?
— A vida é um rio, Doutor: a água junta e separa.
— Você é feliz, Dona Munda?
— Não é que seja infeliz. Eu não sou é feliz.
E explica: a ausência dupla de felicidade e infelicidade é ainda mais penosa que o sofrimento.
O verdadeiro castigo não é o inferno com as suas chamas devoradoras. A punição maior é o purgatório eterno.
— Uma coisa aprendi na vida. Quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser feliz.
E sorri, acariciada não se sabe por que lembrança. Depois sacode a cabeça, apoia o braço no joelho para se erguer. Por fim, enfrenta o médico olhos nos olhos. — Fora isso, Doutor, agora vamos ao assunto próprio.
— Que assunto?
— Trouxe o remédio?
— Que remédio? O seu marido já não precisa de mais nada.
— Oh, Doutor, já esqueceu? Eu quero um remédio para ele ficar pior, um remédio para ele ficar pioríssimo… para ele… bom, já disse…
O médico português rodopia pela sala, a conversa passou, de súbito, a sofrer de um insuportável peso.
— Esqueça isso. Comigo não, Dona Munda, eu sou médico, curo pessoas…
— Pois cure-me a mim. Bartolomeu está tão doentíssimo, ele já é mais doença que pessoa. — Sou médico…
— Ele está doente mas sou eu quem sofre as dores dele. Sempre fui. Não quero mais.
Munda deposita a peneira no chão para rodear, com sofreguidão, as mãos do médico. Ainda há pouco era o velho Bartolomeu Sozinho que lhe apertava os dedos como se quisesse aprisionar a alma do visitante. Agora é a esposa que suplica por uma morte tão limpa e leve que nem arranhão causaria na memória. Que aquilo não era imoralidade nenhuma. No fundo o marido já estava falecido, o remédio era só para ele, Bartolomeu, se lembrar de que estava morto.
Com gestos bruscos, Sidónio se liberta das mãos dela. Ao erguer-se, ele tropeça na peneira e o arroz se espalha pelo chão. O médico, atabalhoado, se desculpa e, com passo célere, se afasta, rua afora.
A porta de rede fica batendo como se prolongasse a insistência de Munda:
— Não esqueça, Doutor Sidonho. Não esqueça do remédio.

VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO)Onde histórias criam vida. Descubra agora