Sidónio Rosa está sentado na escadaria do posto com as malas espalhadas pelos degraus. Aguarda pela viatura que o vai levar para a cidade. Contempla a Vila, devagar: esta é a última vez desse olhar. Como em sais de prata, sorve a imagem desse lugar onde nunca chegou verdadeiramente a entrar. A descoberta de um lugar exige a temporária morte do viajante. Sidónio Rosa receava essa total disponibilidade. Estava preparado para ser chamado de Sidonho. Mas não estava habilitado a ser Dotoro Sidonho.
E pensa: aquela Vila tem o viver de um rio. Manso e vagaroso, mas com fatais enchentes. Ele não quer nem remanso nem correnteza. Apenas o repouso de se sentir alheio, sem raiz nem semente. É assim que vai partir, despido de memória, isento de saudade.
A carrinha dá entrada na praça, levantando uma nuvem de poeira. Do ventre atafulhado do veículo desembarca o Administrador. Vem combalido, mas caminha pelo seu próprio pé, sem abdicar da vaidosa postura. Pode já não ser a autoridade, mas a vaidade, num caso destes, não pode baixar os ombros, a mostrar-se despromovida. As asas da borboleta não são a borboleta toda inteira?
Um moço se aproxima para lhe entregar um bilhete e o ajudar a carregar as malas até à escadaria do posto. Suacelência passa os olhos pelo papel e entrega uma moeda ao miúdo que se afasta correndo. Depois, contempla com estranheza o português e dirige-se-lhe com respiração difícil como se ele tivesse carregado a bagagem.
— Doutor, assim sentado nas escadas do posto, parece que lhe aconteceu o mesmo que a mim: foi despromovido.
— Vejo que voltou recomposto.
— Graças a si, não fosse os primeiros cuidados que recebi. Mas essa estrada deu cabo de mim.
— Nunca esteve tão mal.
— Tenho pena que seja a única — lamenta o Administrador.
— Não sei se há que ter pena. Quanto mais estradas, menos visitamos os outros.
O médico não se ergue para saudar Suacelência, mas ajuda-o a acomodar-se a seu lado, ocupando todo um degrau da escada. Assim ficam, desabados e vazios, o Administrador fazendo coro com o silêncio do português. Suacelência limpa os suores tão meticulosamente que se percebe que está aguardando que o médico fale. O português corresponde e se explica: — Uma coisa queria esclarecer, esses pós de veneno, não fui eu quem os enviou para si.
— Eu sei — responde o Administrador.
— Não tenho nada a ver com essa história.
— Eu sei quem foi.
Suacelência faz uma pausa e prossegue num tom expedito:
— Munda não quer acreditar nas evidências.
— E que evidências são essas?
— A causa de tudo está fechada naquele quarto. Chama-se Bartolomeu Sozinho.
— Porquê ele?
— Deolinda desistiu de viver por causa dele.
— Afinal, não morreu de um aborto?
— A história é bem diferente.
— Administrador: conte-me tudo. Por favor, conte-me a verdade. Eu estou tão confuso… — Eu já não sou administrador. Os meus companheiros de viagem é que me deram a notícia.
— Também ouvi dizer.
— No seu país também é assim?
— Assim, como?
— Usar pessoas e deitá-las fora como cascas de fruta?
O que tinha ocorrido era simples, no dizer de Suacelência. Ele se tinha oposto ao descontrolado abate de madeira, sem saber que o negócio era desenvolvido por uma empresa de um político poderoso.
— Não seremos nada enquanto governarmos o país como se fosse um quintal e dirigirmos a economia com se fosse um bazar. Sabe quem disse isto?
— Não sei, nem quero saber. Agora quero saber de outras coisas…
— Mas sobra-me uma compensação, meu amigo: agora já posso beber em público. Agora já posso embebedarme e falar tudo o que me vier ao coração.
— Desculpe, Suacelência, mas eu só tenho cabeça para Deolinda, não posso sair daqui sem entender o que se passou com Deolinda.
— Tem tempo?
— Estou à espera da camioneta. Acho que vai demorar.
— Tem paciência para escutar?
— Em África aprendi a escutar e não apenas a falar.
— Escutar também é falar.
O Administrador encosta-se para trás enquanto, com mil cautelas, vai ajeitando o lenço no bolso da balalaica. Só depois é que retoma as falas: — Foi Deolinda que matou Bartolomeu.
— Bartolomeu está vivo.
— Por pouco tempo. Foi ela que lhe passou a doença.
— Doença? Que doença?
O Administrador prossegue como se não escutasse a pergunta. Deolinda regressou enferma a Vila Cacimba e usou a própria doença como arma para se vingar do velho que, em menina, a tinha violentado.
— É isto: a gente nasce sem pedir e morre sem ter licença.
Acontecera assim: depois de ter regressado da cidade, Deolinda tinha sido, de novo, objecto de assédio por parte de Bartolomeu. Só há um meio de se sair do Inferno: é nos convertermos em diabo. Foi isso que a bela filha fez: seduziu o mecânico e convocou agonias do passado. Feridas da boca curam-se com a própria saliva. — Bartolomeu sabia de tudo.
— De tudo o quê?
— Sabia que Deolinda estava doente e de que doença ela sofria. Aquilo, para mim, foi um suicídio — rematou Suacelência.
E repete: o velho mecânico estava certo de que iria ser contaminado, mas, mesmo assim, preferiu o abraço fatal daquele corpo.
Ninguém na Vila tinha conhecimento da completa história a não ser ele e o velho casal dos Sozinhos. Bartolomeu fechara-se no quarto. Fazia o luto por Deolinda e por ele mesmo. E Munda? Ela diz que vai chorar para o rio, mas não é verdade. O que ela vai fazer é visitar a campa, ou melhor dizendo, a última sombra de Deolinda.
— A doença de Deolinda, caro Doutor, é essa mesmo que o senhor sabe, mas em fase terminal. Não está com receios de si?
— Bom, em Lisboa, nós protegemo-nos.
O Administrador sacode a cabeça, com sábia tolerância. A palma da mão acaricia o vasto ventre. Quem, como ele, é depositário de segredos acaba sendo dono do passado.
— Então, agora já sabe, foi assim que tudo sucedeu…
— Peço desculpa, caro Administrador, mas eu tenho escutado tantas versões que já não acredito em mais nada.
Acreditar é para quem desperta, acreditar é para quem chega. E ele estava de partida, estava fechando a alma com os mesmos cortinados que escureciam a casa dos Sozinhos.
— O senhor não acredita, mas ainda lhe conto o que se passou nos dias finais de Deolinda Sozinho.
Na realidade, o final não era muito diverso do início: o destino nunca protegeu a bela Deolinda. Já muito doente, ela veio ter com Suacelência, e pediu que a levasse ao Zimbabwe para consultar um curandeiro. Voltou ainda pior. Nem sequer completou a viagem de regresso a Vila Cacimba. Desceu no apeadeiro anterior e solicitou que chamassem a mãe para vir ter com ela. Albergou-se no pequeno cemitério dos alemães, onde o preconceito não deixava ninguém chegar. Ali morreu em poucos dias. Não precisou sequer que o coração parasse. O corpo perdera toda a substância e os ossos tinham emagrecido tanto que, após o desfecho, não havia mais nada para enterrar.
— Mais uma outra coisa, Doutor…
— Pode falar, eu já não escuto. Já não sei mais escutar.
— Bartolomeu não violou a própria filha.
— Vá falando, os meus ouvidos já seguem para além da estrada.
— Deolinda não era filha, era cunhada dele.
Fossem postos os pontos nos iis: Deolinda era a irmã mais nova de Munda. Quando chegaram à Vila, os Sozinhos trouxeram a menina embrulhada nessa falsa identidade. O casal vivia traumatizado com a ideia de não poder ter filhos. Exibiram a irmãzinha de Munda como sendo filha. Aqui ninguém os conhecia, ninguém questionaria.
Essa era a explicação para as querelas entre os dois velhos conterrâneos. A disputa entre Bartolomeu e Suacelência, toda essa recíproca raiva, não era por razão política: ambos amavam Deolinda.
— Quero que saiba uma coisa, Doutor: eu nunca toquei em Deolinda, nunca toquei nem na mãe nem na dita filha… O senhor acredita em mim?
— Munda disse-me exactamente o contrário. Disse-me que Deolinda até abortara, grávida que estava de si.
— Tudo mentira. Munda inventou isso e agora ela está convencida de que sou culpado. O senhor não acredita em mim?
— Não acredito em ninguém. Eu acreditava em Deolinda. Só queria que ela estivesse aqui…
O médico abre a mala e retira o álbum de fotografias. Folheia página por página, enquanto Suacelência espreita sobre o seu ombro.
— Vou levar Deolinda comigo, nestas imagens… Assim posso vê-la todas as noites. Veja esta fotografia, veja como ela está tão menina…
— Desculpe, Doutor, mas essa não é Deolinda.
— Como não é Deolinda?
— Essa é Munda.
— Não pode ser.
— É Munda, eu sei. Fui eu que tirei essas fotos.
O médico sorri, a incredulidade roça a desfaçatez. Volta a arrumar o álbum, fecha lentamente a mala e ergue-se para perscrutar o horizonte. Procura pela viatura que o levará para longe. Não há sinais dela.
— Dei ordens para que fossem buscar combustível — diz-lhe o Administrador.
Era, possivelmente, a última ordem que ele dava. Obedeceram-lhe sem nenhuma hesitação. Depois de levar o médico à cidade, a carrinha tinha de regressar e dirigir-se para a costa. Missão urgente, inesperada.
— Sabe o que a carrinha vai fazer? Vai à foz do rio para alugar um barco. Meto aquilo no camião e carrego para aqui.
— E por que precisamos de um barco em Vila Cacimba?
— Estou satisfazendo um pedido de Bartolomeu. Espere, eu já lhe mostro…
Suacelência retira do bolso o bilhete que o miúdo lhe havia dado ainda há pouco e entrega-o a Sidónio:
— Leia este bilhete que me mandou o meu velho Bartolomeu Sozinho…
O médico recebe o amarfanhado papelinho e lê, também ele, a esborratada mensagem. O deposto administrador espreita o rosto do português e pergunta, queixoso:
— Já leu? Agora tenho que gastar o meu último dinheiro…
Teria que desviar uns fundos que tencionava despender na campanha eleitoral. Que seriam, agora, gastos no aluguer de um barco.
— Bartolomeu é maluco. Já viu? Pedir que, no enterro, levem o corpo dele num barco…
Era um pedido louco, mas Suacelência iria cumprir. Caso ainda sobrasse dinheiro, talvez comprasse umas tintas e pintasse no casco do barco o nome Infante D. Henrique. Quem sabe nem valesse a pena o artifício, tão fraco de vista estava o seu antigo rival. — Então já terminou esse antigo ódio entre vocês os dois?
Suacelência não responde. Sorri, circunspecto. Sacode a poeira que se acumulara sobre a bagagem e apoia a perna numa das malas. O médico ergue-se, determinado:
— Suacelência me desculpe, mas eu agora tenho que ir… tenho que ir a um certo lugar.
— Eu sei que lugar é esse.
— Posso pedir que guarde as minhas malas?
— Vá, meu amigo, eu mando alguém ficar aqui a vigiar. E escute uma coisa, escute com todo o coração: a culpa não é sua.
— A culpa de quê?
— De tudo isto.
— Tudo isto, o quê?
— Tudo o que aconteceu aqui, consigo, com Deolinda, com Munda, com Bartolomeu. Não podia ser de outra maneira. É a vida que não tem remédio.
O português desce apressadamente os degraus da escadaria. Precisa de cumprir uma última urgência. Não pode sair sem visitar o lugar onde Deolinda está enterrada. — Vou dar uma volta, regresso já.
Mente, o português: diz que se vai despedir da Vila, essa sua pequena África. Acena um adeus ao
Administrador e faz de conta que se dirige para o mercado. Quando se sente fora do alcance de Suacelência, toma a estrada que sai da Vila e corre até chegar à tabuleta do primeiro apeadeiro. Depois, envereda por um atalho em direcção ao rio. Só se detém quando vilsumbra as primeiras campas. Sidónio Rosa está em pleno cemitério dos alemães, o interdito lugar que agora ele transgride em atabalhoado passo. — Eu sabia que o senhor viria.
A voz de Munda não parece assustar o português. A presença dela era apenas a confirmação de uma suspeita. A mulata está sentada sobre uma pedra, junto a uma cruz de metal. Quando se aproxima, Sidónio percebe que, na realidade, se trata de uma velha âncora. O português pensa: esta deve ser a campa de Deolinda e a âncora deve ser um crucifixo improvisado pelo velho Bartolomeu.
O português senta-se ao lado de Munda e escuta para além do limite do cemitério, o escorrer vagaroso do rio. No fundo do vale, o rio se espreguiça num remanso gordo. Chamam o lugar de “umbigo da água”, nenhum habitante de Cacimba enterraria os seus mortos em terras molhadas, num lugar tão próximo de um curso fluvial. Aquele só pode ser um cemitério para estrangeiros, esses mortos que enlouquecem por nunca mais encontrarem o caminho de regresso a casa. — Aquela campa lá é do meu bisavô Germack.
— E esta é a campa de Deolinda? — pergunta Sidónio, apontando para a enferrojada âncora.
— Não. Esta será a campa de Bartolomeu.
— E onde está enterrada Deolinda?
— Eu já lhe disse, Deolinda não mora na terra. Ela é uma sombra.
— Diga-me: qual é a campa dela?
A resposta borboleteia sem pouso: a pessoa que amamos está enterrada em todo o lado. O mesmo é dizer: não desce nunca à terra. Assim falou Munda para depois se calar. De novo, o silêncio cria oceânicas lonjuras entre o visitante e a mulata. O médico vinha dizer adeus, mas não encontra palavras. É Munda quem o salva do embaraço:
— Eu não tenho coração para adeuses. Nem tenho maneira de dizer como lhe estou grata.
— Não fiz nada de mais.
— Você me devolveu Deolinda.
O médico, por um instante, se desequilibra. Apoia-se no braço de Munda. A sua mão demorase no corpo dela.
— O senhor me olhou com desejo, Doutor Sidónio. O senhor me fez nascer mulher, tantos anos depois.
Nas últimas semanas ela se surpreendia pintando as unhas, passando uma cor pelos lábios, ressuscitando os espelhos a vestir e despir enfeites.
— Bartolomeu estava fechado no quarto, eu estava fechada dentro de mim.
A voz dela é mortiça: tudo o que fala parece ser já passado. A antiguidade das coisas está no desejo de as esquecermos. E ela sabia que os adereços em seu corpo e os brilhos em sua alma já não eram mais do que ténues lembranças.
— Falei-lhe das vezes em que imitava amantes para o meu marido?
— E porque me pergunta isso?
— Porque me aconteceu algo semelhante consigo.
Sucedera assim: de tanto fazer de Deolinda, de tanto escrever cartas de amor para o futuro genro, Dona Munda acabara ficando cativa de uma envergonhada vertigem. — Eu o desejo muito, Sidónio.
O português permanece em silêncio, respiração contida. — O senhor me deu o maior remédio. Eu voltei a sonhar.
— E sonha com quem?
— Eu já sonho comigo mesma.
Resta pouca luz ao dia. As cigarras estão-se calando, as rãs iniciam o seu turno. A primeira coruja rabisca voos na cegueira do escuro. O português confessa: — Tenho inveja da coruja que é capaz de ver de noite.
— Eu não quero ver de noite — responde ela. — Eu quero ver a noite.
Sorri, envergonhada, como se se desculpasse.
— “Eu quero ver a noite”, é como diz a canção… — Que canção?
— Uma. Você não conhece.
Trauteia uma música em surdina. Depois a mulata soergue-se e corrige as rugas do vestido.
— Eu não queria que fizesse amor comigo. Bastava que me observasse uma noite e me visse despir. Como diz a canção: eu, nua, sob a Lua.
Sidónio alisa a areia com os pés. É como se as palavras da mulher tivessem tombado no chão, escavando, sob os seus pés, fundos precipícios. Munda encosta-se no corpo do português e assenta um dedo sobre os lábios dele.
— Não tem que falar nada, Doutor. Apenas me prometa uma coisa.
Ele ergue o rosto e, de repente, não sabe que mulher lhe surge por detrás dessa voz que lhe pergunta:
— Se o meu marido não despertar, amanhã, se ele adormecer de vez, promete que espera por mim?
Pareceu-lhe que ela tinha acrescentado: “Você espera, meu anjo-da-guarda?”. Pareceu-lhe. Quem pode saber? Afinal, tudo começa num erro. E tudo termina de mentira. — Suacelência me contou muita coisa.
— Imagino.
— Coisas muito tristes.
— As mentiras podem ser tristes, sim.
— Não sei. Eu acreditei.
— Pois precisa esquecer. Precisa esquecer tudo o que lhe contaram.
— Esquecer, porquê?
— Porque são mentiras, esta terra mente para viver.
Munda recolhe flores brancas que crescem entre as campas. Traz uma mão cheia de pétalas e entrega-as ao português.
— Sabe como se chama essa flor?
— Não.
— Pois nunca mais se vai esquecer. Chama-se “beijo-da-mulata”.
A mulher não quer apenas que o português toque e cheire a flor. Pretende que ele faça como ela está fazendo: que mastigue umas pétalas e sinta o seu sabor adocicado.
— Este é o remédio para saudades e tristezas, essas que não têm cura — diz Munda.
Os fragéis dedos dela introduzem as corolas brancas entre os lábios do homem. Olhos fechados, o médico recebe aquela profana hóstia.
Nessa noite, Sidónio Rosa adormece profundamente entre campas com nomes ilegíveis. Desobedece à interdição maior que é dormir num lugar onde todo o sono é eterno. Talvez por isso ele, ao adormecer, tenha escutado vozes que diziam: “Neste cemitério não foram enterrados apenas europeus. Aqui foi enterrada a Europa inteira”. E talvez tenha sido por isso que Sidónio percorreu, durante toda a noite, o território dos sonhos, como se o sonho fosse a única fronteira que o separava dos defuntos.
O sonho do estrangeiro é tão real e intenso que ele mesmo desconhece se está dormindo ou se está delirando desperto. Grita por Munda, ninguém responde. Sidónio sente-se flutuando: persegue-o a ressaca das mastigadas flores? Atacado por maus agoiros, ele se apressa a retirar-se do cemitério. A neblina é tão intensa que ele tem que arrastar os pés para encontrar o trilho que o conduz à estrada. Se o vissem agora, diriam que ele era mais um dos tresandarilhos.
Escuta a camioneta a imobilizar-se no apeadeiro e sente que alguém desce vagarosamente do veículo. O ruído do motor afastando-se vai esmorecendo até se aplacar em silêncio. Depois, um vulto ganha contornos e acaba esbarrando aparatosamente no português. Uma brisa dissipa o cacimbo e Sidónio Rosa tem pela frente uma mulher magríssima, envergando um vestido cinzento que roça pelo chão. O médico repara que a mulher está grávida e do braço esquálido lhe pende uma mala de cartão. A moça brancoleja os olhos e pergunta: — Sabe onde posso encontrar Dona Munda?
A voz era de pessoa? Um arrepio sacode o português.
— Dona Munda? — sussurra. Deixa que a pergunta ecoe no vazio da alma apenas para ganhar tento. Quer responder, mas as palavras prendem-se na garganta. Apenas aponta para o carreirinho que desemboca no cemitério. — Venho da cidade — diz a aparecida. — Trago uma carta para entregar a Dona Munda.
— Uma carta? — estremece o português.
E a mulher se afunda no nevoeiro. Sidónio Rosa deixa, então, de se ver a si mesmo. E ele se recorda do que lhe disseram à chegada: “Em Vila Cacimba faz tanto nevoeiro que os homens, por vezes, não são mais que nuvens”. É o que ele é, neste momento: um etéreo floco suspenso. Uma espécie de brisa o faz progredir na direcção da mensageira.
— Moça? Espere, eu mostro onde é a casa dos Sozinhos…
E avança, solitário, pela nublada estrada. Fosse pelo denso nevoeiro, fosse pelo seu estado interior, o médico não reconhece a Vila. Duvida: “Será que estou chegando pela primeira vez a este lugar?”. Em frente da residência dos Sozinhos uma voz o saúda: — Ainda bem que veio, Doutor, a casa está morrendo.
Por isso ele tinha sido convocado; por isso, desembarcara na povoação. Não eram os habitantes que padeciam de enfermidade. Era a casa que tinha adoecido. Sidónio sentiu, de facto, que o edifício estava febril, prestes a sofrer de convulsões.
Era o que tinha acontecido com os restantes edifícios da Vila. O mesmo mal, a mesma epidemia vitimara todo o casario. Aquela era a última casa, a única sobrevivente. De súbito, entre as vozes distantes, lhe pareceu escutar Deolinda:
— Salve a minha casa, salve as minhas lembranças…
O médico acariciou o aro da porta de entrada como se tomasse o pulso da construção. O que sucedeu a seguir, sem que ele pudesse evitar, foi que as paredes da casa estremeceram a ponto de se dissolverem. Não desabaram como num sismo. Ascenderam no espaço vertidas em poeira para depois se evaporarem nos céus. Como uma asa avulsa, restou o tecto, vogando suspenso, semelhando uma ave cega que rodopiasse sobre o antigo ninho. Desse flutuante tecto escorria um fio de água e Munda se banhava sob essa cascatinha. A mulher se tinha despido para chorar. — Agora que a casa voou, já não preciso sair à rua para chorar.
Durante toda a vida, ela sempre tinha saído para derramar tristeza. Chorar faz-se longe de casa, onde ninguém escute nem veja: esse era o mandamento na família. A lágrima não pode tombar no soalho. Caso contrário, a pedra se torna carne e a casa pode sair voando, até não ser mais do que nevoeiro entre nevoeiro.
Trôpego, o médico pensou em encostar-se, mas não havia encosto. O homem resvalou no chão e sentiu a areia junto ao rosto. Não se ergueu. Perdera as forças, perdera a ideia do próprio corpo.
Ele era o chão inteiro: para quê separar-se da sua própria substância?
Até que uns braços femininos o ajudam a levantar-se, apoiam a sua marcha e, de novo, o conduzem entre sombras. Escutou alguém, levemente familiar: — Agora pode chorar, Doutor.
O médico sente que a voz ecoa num difuso túnel. Depois, ele se vai aclarando e percebe que é Dona Munda que o apoia nos braços e sussura ao ouvido: — Chore no meu peito, Doutor Sidónio.
Estará ainda no cemitério? A audição já regressou, mas a visão está ainda toldada. O português sacode a neblina que lhe tolda a consciência. A mão limpa os grãos de areia no rosto e faz tombar uma pétala que ainda lhe pendia da boca. — Onde estou?
— Está na camioneta, o senhor está quase a ir embora.
— Embora?
— Sim, esta é a nossa despedida — disse Munda. — Está triste?
— Eu?
— Pareceu-me ver uma lágrima escorrendo no seu rosto.
Munda tinha-o amparado até ao banco traseiro da camioneta e, por derradeiros momentos, ela partilha o assento que o português ocupa. A mulata retira da bolsa um envelope e usa-o como um abano para refrescar o rosto do médico. A Sidónio parece que aquele envelope é o mesmo que vira nas mãos da estranha moça do sonho. — Essa carta, essa carta…
Não chega a formular a pergunta. Do lado de fora alguém bate na janela. É o Administrador que acena, sorrindo:
— Uma bela ressaca, caro Doutor. Foram precisas duas pessoas para o trazerem até à Vila.
Suacelência aponta as malas sobre o tejadilho da viatura. Estava tudo arrumado, tudo completo e pronto para a saída. Depois, Sidónio volta a mergulhar no silêncio. O médico contempla as casas, a praça, o posto de saúde. Não se despede. Apenas confere se as habitações não tinham levantado voo.
— Vejo-o tão triste, Doutor. Ainda dá tempo para uma lagriminha rápida, ninguém vai notar… — Uma lágrima?
— Chore no meu peito, Doutor. Aqui, no meu peito, é a campa de Deolinda.
Chorar? O pranto pede corpo e Sidónio, naquele momento, não possuía peso nem realidade. A camioneta está partindo, Munda retira-se sem olhar para trás e o fumo escuro envolve a multidão que se despede.
O português segue pela estrada esburacada como se flutuasse sobre as ondas de um rio. Lentamente, a savana vai desfilando, ondulante como líquidas labaredas. O médico espreita pelo vidro de trás, mas a Vila deixou de ser visível. Uma espessa neblina a tornou interdita a olhares e lembranças. Há nessa poeira o sabor de um tempo suspenso. Como se a viagem de Sidónio não tivesse partida nem chegada. Talvez por isso, em lugar de acácias e imbondeiros, ele assista ao vagaroso desfilar do casario da sua Lisboa. Afinal, Sidónio Rosa apenas agora está saindo da sua terra natal.
De súbito, surge-lhe a perturbante visão: na berma da estrada, a mensageira do vestido cinzento.
Está sentada sobre a sua própria bagagem. Afinal, a esquálida moça nunca chegou a sair do apeadeiro do cemitério. O médico acena, mas ela não responde. Não pode fazer outro uso dos braços: no colo, ela ampara molhos imensos de flores brancas. São beijos-da-mulata, as flores do esquecimento. Plantam-se junto aos cemitérios para que os mortos se esqueçam de que, em algum momento, foram viventes. O autocarro pára, acreditando que a rapariga queira embarcar de regresso à cidade.
— Suba depressa — ordena o cobrador.
— Podem ir, eu fico por aqui — explica a aparecida.
— Fica aqui, no cemitério? — interroga-se o motorista.
— Eu vim semear estas flores. Tirei-as do cemitério e vou semeá-las por aí, vou semeá-las em toda a Vila Cacimba.
VOCÊ ESTÁ LENDO
VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO)
RomanceBartolomeu Sozinho é um velho mecânico naval moçambicano aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora em seu escuro quarto de doente terminal. Ele é atendido em domicílio por Sidónio Rosa, médico portug...