Na praça, por entre a multidão, Munda vislumbra o médico, sentado na traseira de uma camioneta de caixa aberta. Motor ligado, fumos tingindo o ar, a viatura já se prepara para partir. Mãos apertando a capulana, Munda corre a abordar o português: — Vai-se embora, Doutor?
— Vou à cidade. Não aguento mais ficar aqui à espera, de braços cruzados. Vou procurar Deolinda.
Ela amarra, desamarra e reamarra o pano na cintura, como se ajustasse as palavras ao corpo. — Escolheu bem a altura, Doutor.
— Para mim, esta é a altura certa. Tem que ser agora.
Aquela era a altura certa, repete como se necessitasse de se convencer. Já tinha controlado o surto de meningite, ainda ontem tinha desmantelado as tendas da enfermaria. O que mais o prendia ali? — Escolheu bem a altura — insiste Munda. — Pois é exactamente hoje que Bartolomeu está muito pior.
— Muito pior?
— Quando voltar da cidade já o vai encontrar morto.
— Dê-lhe o remédio que está em cima da cómoda.
— Bem sabe que ele não aceita que eu lhe dê remédios.
— Não entendo. Ainda ontem à noite ele me assegurou de que estava bem melhor.
— Ele está a morrer. Não passa de hoje.
— Não posso voltar lá a casa, Dona Munda. Ele não lhe disse?
— O quê?
— Não lhe disse que não sou médico?
— Mentira. Você é muito médico e ele é ainda mais doente.
O motorista buzina, impaciente. O tempo é dinheiro. Uns trocos, sim, mas, aqui, uma ninharia é uma fortuna. O condutor acelera o motor, os fumos adensam-se, as mulheres tossem e agitam as mãos para dissipar os oleosos ares.
— Por favor, Dona Munda, trate dele enquanto não volto. Agora tenho que ir.
— Vá, Doutor, vá. Talvez ele sobreviva, talvez Deus ainda tenha um pouco mais de paciência.
O pé nervoso volta a pisar o acelerador, a paisagem é engolida por um último manto de fumo. Dona Munda retira-se, vagarosa. Desliza em passo fúnebre como se os olhos do médico ainda a espreitassem para confirmar a transição de pré-viúva para viúva efectiva.
Ao chegar à sua ruela, Munda é surpreendida por uma voz familiar:
— Pronto, aqui estou…
— Doutor Sidónio! Afinal, não foi?
— Vamos lá ver o marido, se é que o estado dele se agravou tanto assim…
Ele mesmo abre as portadas e toma a dianteira com passo lesto. Avança apressadamente, gesticulando para reforçar o tom justificativo: “Era apenas um dia, lá na cidade, amanhã já estava aqui outra vez…”. Seguindo-lhe a peugada, Munda coloca-o ao corrente: um agravamento súbito tinha ocorrido, o velho Bartolomeu vomitara como um esganado a noite inteira. — Diga-me, Dona Munda: a senhora administrou-lhe algum… algum remédio?
— Administrar? Gosto dessas palavras: administrou… — Falo a sério, Munda. Deu alguma coisa ao seu marido?
— Ora, Doutor: a cobra morre de veneno?
A pergunta marca o fim da conversa. Logo de seguida, a dona da casa vira costas, afastando-se, de regresso à cozinha.
O médico entra, sem bater, no quarto de Bartolomeu. O velho está sentado na borda da cama, uma bacia de metal entre os pés. Olha o médico com o cansado espanto de quem encontrou a chave mas não sabe da porta.
— Agora é que já cheguei ao meu desparadeiro — a voz envelhecida é quase sumida.
— Vai ter que esperar, meu amigo — sossega o médico.
— Sou filho de camponeses. Passei metade da vida esperando — e remata. — Quem aprendeu a aguardar pela chuva, sabe esperar pelo céu.
“Engano seu”, pensa Sidónio. Há esperas que nunca se aprendem. Mesmo sob o dilúvio, continuaremos aguardando a chuva. É de outra água que esperamos.
O médico toma-lhe a temperatura, mão sobre a testa. Bartolomeu cede, cabeça tombando como se fosse uma carícia. Num instante, porém, os braços, repentinas serpentes, se cruzam sobre o ventre. Uma cólica o faz dobrar.
— Estou a ser comido pela minha própria barriga.
— Deixe-me ver o que se passa.
As mãos profissionais percorrem o redondo do ventre. O velho reage: tenta erguer-se, cambaleia e tomba, pesado, no sofá.
— Isto hoje é que está uma tempestade… Tudo balança, já voltei ao Infante D. Henrique.
— Você tem de beber muitos líquidos.
A negação é veemente: o médico que não pensasse em introduzir-lhe estranhezas no corpo.
Retirasse-lhe, ao invés, excessos e excrescências, peçonhas que lhe malfaziam os fígados. — Há muito que o Doutor não me espreita o sangue. Já não quer vampirar-me?
— O sangue só se tira quando necessário.
O velho ri-se. Sabia por que razão não lhe tiravam os sangues. As suas veias tinham ficado mais duras que qualquer agulha. Todas as entranhas se tinham convertido em matéria mineral, as artérias em osso e as veias em pedra. Por dentro, ele já estava sendo enterrado.
— Doutor, preciso que me avise quando estiver mesmo chegando a minha hora.
— Está certo. Eu digo.
— É que eu tenho uma confissão grave a lhe fazer.
— Pode falar agora.
— Eu só falarei quando as coisas estiverem a dar para o morto.
— Torto. Dar para o torto.
— Corrija-me o sofrimento, Doutor. Não me corrija a gramática. Que eu, modéstia à parte, fiz estudos nos tempos coloniais.
Depois remata em tom irónico:
— E não foram apenas umas cadeiras, como fizeram outros que eu bem conheço… — Disse que tinha uma confissão, estou à espera.
O mecânico demora-se em esgares, a tornar visível que, sobre a carga das dores, vai pesando a decisão de falar. Por fim, voz tremente, confessa: — Faz dez anos que Deolinda foi violada.
— Deolinda? Violada?
Ela tinha quinze anos, era uma menina. Desenvolta, sim, mas uma menina. — E quem a violou?
— Ela nunca lhe disse nada?
— Quem?
— Munda.
— É a primeira vez que ouço falar nisso.
— Esse é um medo meu, Doutor. O medo que ela se queira vingar em mim.
— Desculpe, ela quem? Deolinda ou Munda?
— A minha mulher.
— Mas o que é que o senhor tem a ver com isso?
— Ela pensa que fui eu. Por mais que jure que não, não desfaço esse fantasma.
— Não sei o que dizer. Meu Deus, Deolinda, violada…
— É por isso que não gosto de vos ver juntos… — Juntos? Quem?
— Você e Munda.
Quando surpreendia o português e Munda a bichanarem muito juntinhos, sempre lhe vinha à cabeça que andavam combinando modos de ajustar contas com ele. — Munda nunca me falou nisso.
— Ela vai-se vingar, eu sei.
Um indevido remédio, uma dose excessiva, um doce veneno: silenciosos e perfeitos modos de o eliminar do mundo dos viventes. Ou quase viventes. Era esse o plano malvado que lhe roubava o sono.
O velho ergue-se, remexe na cómoda, acende um cigarro e aspira longa e ruidosamente. A tosse que se segue nem sequer é cavernosa. Dentro dele já não resta nenhum vazio. O peito dele já se fundiu com as costas.
O médico retoma as falas: — Vou ter que sair.
— Onde vai?
— Ainda hoje vou à cidade.
— Vai fazer o quê?
— Tenho coisas urgentes a tratar.
— Não vá, Doutor. Estou a dizer-lhe: não vá!
— Desculpe, mas há coisas minhas em que nem eu posso mandar.
— Pois eu lhe vou dizer uma coisa, chegue-se aqui que é um segredo.
O português se aproxima, atónito. Debruça-se sobre o hálito ácido do doente. — Tome cuidado, Doutor.
— E porquê?
— Porque eu sei quem você é. E outros podem ficar a saber.
— Está a ameaçar-me, Bartolomeu Sozinho?
— Não sei se sabe o que aconteceu ao português que esteve aqui antes de si.
— O que vivia na pensão?
— Assaltaram-lhe o quarto e, não fosse Suacelência, tê-lo-iam morto à pancada. Acusaram esse outro português de ser traficante de órgãos.
— Que nós aqui — disse o velho —, nós aqui não temos senão corpo.
Sidónio está pálido, sobre ele recaem os mitos de um continente pleno de imprevisíveis perigos.
-— É o que nos resta: órgãos — repete Bartolomeu.
— Acha que alguém me pode confundir com um traficante de órgãos?
O outro não responde. O médico decide retirar-se, mas a sua decisão é lenta. Fecha a porta, fica encostado à parede do corredor. Escuta, no quarto, a surda tosse do velho. Fecha os olhos e sente algo a roçar-lhe o rosto. Esbraceja, assustado, derrubando um vaso que se quebra, deixando que a terra se espalhe pelo soalho. O médico apanha o feto já seco, sacode as raízes e transporta-o, sem entender porquê, para fora de casa.
— O que faz, Doutor? — inquire Munda, surpresa.
— Esta planta está morta, Dona Munda. Os mortos não ficam dentro de casa.
— Essa planta pertence a Deolinda.
— Eu sei, ela falou dessa planta numa carta.
— Esse feto não morreu por falta de luz. Morreu de saudade de Deolinda.
Enquanto pousa as folhas amarelecidas na pedra fria do pátio, o português pensa que nunca na vida semeou uma planta. Talvez ele fosse o único adulto, em toda Vila Cacimba, que nunca criara esse laço com a terra. Essa distinção o marcava mais do que uma raça. — Nunca semeei nada na Vida.
— Vai semear.
— Vou semear o quê?
— Não é “o quê”. É “quem”. Vai semear Barto.
Munda adverte: afinal, nós somos todos plantadores de ossos. Urbanos, rurais, brancos, pretos:
todos semeamos os mesmos mortos no mesmo chão.
Depois, a dona da casa faz menção de retirar o feto das mãos do visitante. Contudo, os dedos do médico mantêm-se cruzados e é com dificuldade que Munda consegue libertar a planta. — O que se passa, Doutor?
— Não paro de pensar em Deolinda. É verdade que ela foi violada?
— Há assuntos que não posso lembrar.
— Está-me a responder que sim.
Ela retira um torrão de areia junto das raízes. Esfarela os grãos com raiva entre os dedos.
— Está morto, até à raiz — afirma. Lança a desbotada planta para longe, varre a sujidade espalhada no pátio. Fala sem dar repouso à labuta:
— Só quer saber de Deolinda? Não quer saber de mim?
A Sidónio escapa o sentido da pergunta. O compasso da vassoura raspando o chão é um pulsar tenso, o raspar de unhas no dorso da terra. — Noutro dia, você disse que eu era bonita.
— Disse e volto a dizer.
— Eu fui bonita quando tinha alegrias. Mas o senhor, sendo médico, nem reparou que não há só um doente nesta casa.
— A senhora nunca se queixou.
— Um bom médico escuta as dores mesmo antes de o doente as sentir.
— E de que sofre a senhora?
— Veja o meu peito, às vezes me aperta aqui entre os seios. Veja que hoje nem uso soutien.
O médico se atrapalha, entre excitação e hesitação. Ergue o braço para evitar que Munda continue desabotoando a blusa. A mulher encara-o com enfadada rispidez:
— Pois eu lhe pergunto: o senhor não se pergunta o que fazia uma mulher nova, bonita, esperando anos que pareciam séculos?
— Não sei, Dona Munda. E o que fazia essa mulher?
Munda abana a cabeça em reprovação. Aposta que o médico se interrogou sobre o que fazia Bartolomeu nas suas andanças pelo mundo. Que lhe adivinhou e invejou amores entre portos e adeuses.
— Mas eu também tenho corpo, ou será que nunca reparou?
— Reparei — responde ele constrangido.
— As mulheres não esperam tanto como vocês, homens, pensam.
— E com quem é que não esperou, Dona Munda?
— Não vai acreditar.
— Diga.
— Não posso.
— Agora vai ter que dizer.
— Pois confesso: eu traí Bartolomeu com o meu pior inimigo.
— E quem é?
— Alfredo Suacelência.
— Com Suacelência?
— Na altura, ele não era assim, tão cheio de ombros. Era bem diferente.
— E quando deixaram de se encontrar?
— Quando ele, em pleno acto, deixou escapar o nome dela.
— Dela?
— De Deolinda.
— Desculpe, não acredito. A senhora disse que isso tinha sucedido com o seu marido… — Engano seu.
— Disse, disse. Afirmou que o seu marido, em pleno namoro, sonhou alto com Deolinda… — Nunca disse isso.
— Disse sim, disse que deixaram de dormir juntos quando ele deixou escapar o nome dela.
— Não me referia a Bartolomeu. Falava de Suacelência. Foi ele que falou no nome de Deolinda.
Tinha ocorrido assim: Munda e Suacelência se encontravam, às ocultas, até ao fatídico dia em que ela percebeu que o seu amante era amante da sua própria filha. Foi então que ela avaliou a mentira em que vivia. E passou-se o seguinte: em vez de culpabilizar Suacelência, ela lançou sobre o marido todas as possíveis retaliações. Para ela, era Bartolomeu que merecia castigo. — Nunca mais me deitei com ele.
O médico retira-se com a convicção de que uma rede de mentiras se havia entrançado em seu redor. Por mais que Munda jurasse, como jurou, havia demasiado enredo para pouca personagem.
— Você olha para Cacimba e parece-lhe muita gente. Mas nós, mulatos e pretos assimilados, somos menos que os dedos.
Poucos e desamparados, partilhando secretas cumplicidades e sofrendo de um mesmo sentimento de orfandade. A cultura que os criou está longe, noutro tempo, noutro universo. A mentira é o único remédio que lhes resta contra essa solitária lonjura. Como diz Munda: apenas um mortal pecado pode curar a doença de viver.
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VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO)
RomanceBartolomeu Sozinho é um velho mecânico naval moçambicano aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora em seu escuro quarto de doente terminal. Ele é atendido em domicílio por Sidónio Rosa, médico portug...