CAPÍTULO QUATORZE

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— Dona Munda esteve aqui.
A enfermeira recebe com estas palavras o médico português à porta do posto de saúde. Tão pouca coisa acontecia na Vila que a mais pequena novidade assumia a dimensão de uma revelação cósmica. Rosto arredondado pela alegria de ser dona de um assunto, a enfermeira adianta mais detalhes:
— Acabou de sair há pouco. Deixou este bilhete para o senhor.
O médico lê o papel rabiscado e, num ápice, o seu semblante se transtorna. Volta a despir a bata que acabara de colocar sobre os ombros. — Onde foi ela?
— Foi para casa, directamente. Levou a caixa das injecções e foi para casa dela.
— A caixa das seringas?
— Sim. Disse que o doutor lhe pediu para levar o material lá para casa dela.
O médico sai correndo. Noutra altura ele teria reparado no luar. Naquela noite, o luar invadia as ruas vazias da Vila como a maré enche o mar. “É o tempo da Lua”, diziam, como se o luar fosse um fruto de estação.
Desta vez, porém, o médico aproveita a luz coada apenas para estugar o passo. Quer evitar o crime. Entra de rompante pela casa dos Sozinhos, depara com a mulher na cabeceira do marido que jaz despido sobre o leito. — O que é que a senhora fez?
— Ele é que me fez a mim, veja o que estava na gaveta dele.
Exibe uma fotografia de uma bela moça, mulata. É uma imagem de uma cerimónia de formatura, a moça enverga uma toga negra que contrasta com o adolescente sorriso. — É ela! — insiste Munda.
Era ela: uma menina-amante, uma dessas com quem há muito o velho sonhava. O médico contempla a fotografia e lhe vem à ideia a condição dos meninos soldados: um mesmo mortífero destino aproxima os pequenos mercenários e as jovens prostituídas.
— Eu sempre suspeitei, Doutor. Sempre. Quando Deolinda se queixou, eu tomei a defesa dele. Não foi por convicção, foi por medo de aceitar a verdade.
Bartolomeu contorce-se e geme, arriscando tombar do leito. O médico senta-se a seu lado, ausculta-lhe os sinais vitais.
— A senhora deu uma injecção ao seu marido?
— Não me lembro, Doutor.
A respiração do velho, num instante, parece esvair-se. Esse entorpecimento dá lugar, depois, a uma conturbada agitação.
— Deixe-me ficar com ele. Eu quero ficar a sós com o meu marido.
— Não sei, Dona Munda. Eu devo acompanhar o estado dele, é meu dever.
— Esse homem não tem estado nenhum. Veja bem a seringa, está intacta. Eu não lhe dei nenhuma injecção.
O médico, desconfiado, olha o frasco à transparência. Mesmo depois da inspecção, ele guarda cautelosa reserva.
— Por favor, me deixe a sós com Bartolomeu — insiste a esposa.
— Diga-me, não terá consigo uma outra seringa?
— Não tenho. Não lhe quero fazer mal. Deu-me uma vontade de matar, mas passou-me…
Bartolomeu, entretanto, desperta. Os olhos mortiços vagueiam pelo recinto. E dirigem-se para a foto da moça que está pousada no colo da mulher. O homem se apercebe do tema de conversa entre o médico e a esposa. Munda ergue-se e, com mil cuidados, depõe a fotografia junto ao rosto do marido.
— Fique com ela! — sentencia a mulher.
Dá uns passos em direcção à porta. Antes de se retirar, vira-se para trás para, de olhos desafinados, fixar longamente o marido. Há nesse olhar um imperceptível adeus? — Mulher, venha aqui — suplica o marido.
— Não me chame de mulher. É um nome demasiado sagrado para a sua boca.
Ele ergue-se arrastando consigo a roupa da cama e caminha com os pés presos entre os lençóis. A fotografia dança na sua mão esquerda, parece um profeta enlouquecido:
— Munda: essa moça é Isa…
— Não quero nomes! Não traga nunca o nome dessa mulher para dentro desta casa…
Saber do rosto e do nome de uma mulher rival: eis uma faca cujo punho é a mais afiada lâmina. Como desencravar da alma esse punhal sem se ferir ainda mais? Talvez, por isso, o inesperado salto dela, roubando a fotografia das mãos dele e rasgando-a com raiva. O homem permanece impassível, vendo a imagem destroçar-se em estilhaços. A lágrima espreita na voz, a baba lhe escorre da tremura dos lábios:
— Essa moça é minha filha!
O quarto fica suspenso no anúncio: mesmo os pedaços da fotografia rodopiam pelo espaço como súbitas mariposas.
— É minha filha — repete.
Ambos se sentam, incapazes de suportar o fardo da revelação. A mudez, naquele momento, não era a ausência da fala. Bartolomeu quer, de uma assentada, falar todas as línguas. Fica assim sem nada dizer até que, atabalhoado, começa a desenrolar as penas do seu passado. Aquela moça era a razão por que ele suportava as longas ausências, as humilhações de racismo no exterior, as amargas acusações de Suacelência.
— Eu ia visitar a minha filha.
E visitou-a de todas as vezes que o barco rumou para Lisboa até que, em Abril de 1974, ao sair de São Tomé, o navio recebeu a notícia da queda do regime colonial português. Ficaram à espera de mais notícias, inventaram uma paragem por motivos “de ordem técnica”. Bartolomeu foi chamado ao comandante junto com os chefes da casa das máquinas. As instruções do capitão foram lacónicas:
— Estamos parados por causa de uma avaria. Entendem?
Não entendiam. Não havia avaria nenhuma. O que avariara tinha sido o regime dos poderosos. O semblante do comandante traduzia esse luto. De regresso ao fundo do barco, Bartolomeu cruzou com passageiros e marinheiros que festejavam, em absoluto contraste com a solenidade fúnebre da sala de comando.
— É um fascista, o cabrão do comandante! — rematou um colega.
Na casa das máquinas comemorava-se entre risos, cantos e bebidas. — Venha dançar, Bartolomeu. Venha festejar.
— Eu tenho que ir para o meu posto.
— Você não entende? Toda esta merda vai acabar, o seu posto, este barco, estas viagens, tudo isto vai terminar…
Toda a noite se festejou. Na solidão do seu pequeno cubículo, porém, Bartolomeu Sozinho se afundou em tristeza. Sabia que nunca mais veria a filha. Quando, dois dias depois, desembarcou em Lisboa ele não foi logo à Amadora. Demorou-se pelas praças e ruas onde multidões desfilavam entoando palavras de ordem. No Rossio, Bartolomeu roubou cravos vermelhos que pendiam das portadas. Levou-os à filha, em sinal de um último adeus.
Aquela era a história que ele escondera anos a fio. A sua revelação deixou-o exausto.
— Entende agora, Mundinha? Eu ia e vinha, nesse maldito barco, agora percebe porquê? Eu ia visitar a minha filha…
— Como se chama?
Ele não responde, receia a tempestade. Munda renova a pergunta: — Diga o nome dela… dessa, de sua filha?
— Isa… Isadora.
A mulher fica balbuciando o nome entre dentes. Repete-o como se o quisesse erguer contra o esquecimento. Bartolomeu ganha coragem: — Você me perdoa?
— Nunca!
— Eu sei o que você pensa. Mas essa mulher, a mãe dessa menina, nem existiu, Munda.
E explica-se: a mãe de Isadora tinha sido o caso de uma única vez. Ela morrera logo a seguir. Bartolomeu soube-o na viagem seguinte quando a avó de Isadora o foi esperar ao cais, com a miúda ao colo. Ele, o pai, que fosse, tranquilo: a menina tinha um colo e um tecto. — Essa mãe nunca existiu — repete o mecânico.
— Não perdoo, não posso perdoar — insiste Munda.
— Eu lhe amei apenas a si, só a si. Nunca houve outra mulher.
— Você é mesmo estúpido, marido.
— Pode-me insultar.
— Você não entende, Bartolomeu? Eu não quero saber de mulheres que você teve. Eu não lhe perdoo foi me ter roubado uma filha.
Fez uma pausa, como se lhe custasse emparelhar palavra e sentimento.
— Você me tirou essa menina.
Retira-se, com solenidade de rainha, repetindo como uma reza: Isadora, Isadora, Isadora. Envolto nos lençóis, Bartolomeu parece um monarca destronado quando ergue o braço acusador: — Essa mulher é feiticeira!
O médico ajuda-o a regressar à cama. O velho ajeita-se no leito, puxando o lençol até ao queixo. Assim, de relance, parece não haver corpo debaixo do pano branco. Bartolomeu permanece assim, sem vida nem aparência, para, depois, de um sacão, repuxar o lençol e chamar: — Doutor?
Os olhos chispalhudos cravam-se no português e, com rouquidão que ainda lhe sobra, o velho dispara:
— Eu sei que você não é médico!
— Como?
— O senhor não é médico. Anda a mentir, só mais nada.
— Você viu… Devolva-me a minha pasta!
— O senhor não é médico e toda a Vila vai saber disso. E vai ser expulso daqui num abrir sem fechar de olhos… — Eu apenas não terminei o curso… faltam-me cadeiras… — Não é médico.
— Peço desculpa, eu apenas queria…
— Se fosse o inverso, pense bem, se fosse o inverso: o que sucederia a um africano que fosse apanhado na Europa com documentos falsos?
— Os meus documentos não são falsos.
— Tem razão, os seus documentos dizem a verdade. Você é que é falso.
O médico acha que já ouviu tudo. Terá de enfrentar essa ameaça pendente, não há remédio para essa vergonha que atrapalha até o passo com que se retira do quarto. — Onde vai? — pergunta ao médico em tom subitamente adocicado.
— Vou para a pensão, não sei mais o que dizer.
— Não precisa ir embora.
— Eu já não tenho nada a fazer aqui.
— Esqueça o que lhe disse. Eu também esqueço o resto.
— Não sei, não posso.
— Tudo isto não tem importância: você não é verdadeiramente médico, eu não sou doente.
Não era saúde que lhe faltava, estava morrendo por saudade da Vida. O mecânico inspecciona os nós dos dedos. As mãos, mais que o rosto, deviam ser preservadas desses sinais do tempo. Porque é nas mãos que nos iniciamos humanos. Das mãos ele se iniciou mecânico. Agora, só com muita dificuldade conseguirão cruzar-lhe os dedos sobre o peito, quando ele estiver no leito fúnebre. E, de novo, retoma a palavra:
— Não tenha receio, fica um segredo entre os dois. Você, para todos nós, será sempre doutor. O meu doutor privado.
— Não sei o que dizer.
— Apenas uma coisa, nunca mais me pergunte o que me dói.
Como podia descobrir o que lhe doía se todo ele era uma dor, a aflição de ser pessoa, num mundo sem lugar para pessoas?
— O meu medo não é de morrer. O meu medo é ter de nascer de novo.
Apenas por isso ele não dava azo a ter um fim. Deixava-se existir, com a mesma inércia que o crescer das unhas.
— Eu lhe perdoo ter mentido sobre o seu curso. Não me posso esquecer é de outra coisa.
Ergue-se a custo e retira do armário a esquecida pasta do médico. Aparatosamente deixa tombar todo seu conteúdo. Envelopes diversos se espalham pelo chão.
— Você nunca enviou nenhuma das minhas cartas. Esta é que é a grande mentira!
— Eu estava à espera de ir à cidade.
— Pois agora vai jurar que envia esta carta, a minha carta de despedida de Isadora.
— Prometo que envio.
— Estes são os meus últimos cravos vermelhos.

VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO)Onde histórias criam vida. Descubra agora