— Mandei chamá-lo, caro Doutor, porque há assuntos que pedem o sossego de um lar civilizado.
O administrador Suacelência sublinha a palavra “mandei”. Ele é autoridade, dá ordens sobre nacionais e estrangeiros. Não há, aliás, outro estrangeiro sobre o qual possa fazer descer sentenças. O médico está sentado no cadeirão da sala, sem cruzar as pernas como se espera de quem exibe os devidos respeitos.
— Pois mandei chamá-lo — repete enfaticamente o anfitrião — para conversarmos sobre a situação da Vila. E tinha que ser aqui, no conforto da minha casa.
O conforto é regrado, mas o cenário é o mesmo das outras casas da administração de todo o país: um sofá de napa castanho, com paninhos bordados na cabeceira, um pesado armário de madeira escura com vidros e espelhos. Embalagens vazias de whisky decoram as prateleiras. Suacelência parece seguir o olhar do visitante, pois, nesse exacto momento, dá ordens: — Esposinha, traga um whisky aqui para o nosso doutor.
— Não vale a pena, não bebo.
— Eu não bebo outra coisa, para mim whisky é a única bebida que existe.
Dona Esposinha traz uma garrafa numa bandeja de plástico preta com incrustações a imitar madrepérola. Depois de servir um copo, a mulher ensaia uma ligeira genuflexão e retira-se sibilando um prolongado “dá licença”.
— Deixe a garrafa que a noite ainda vai baixa.
O Administrador estala a língua ruidosamente a aprovar a qualidade da bebida. Os pobres podem não gostar dos ricos, mas o que eles realmente odeiam são aqueles que são ainda mais pobres. A urgência de demarcação desses outros, os ordinários cacimbenses, está patente no mínimo gesto e palavra de Suacelência.
— Essa doença misteriosa que se espalhou por aqui: o senhor já tomou as providências?
— Eu acho que se trata de meningite.
— É uma doença, digamos, que encomendável?
— Não entendo.
— Pergunto se alguém… digamos, um inimigo político, poderia ter encomendado.
— É uma doença que ocorre sobretudo nas pessoas que se concentram em recintos fechados. É por isso que os soldados são mais atingidos…
— As pessoas pensam que é um mau-olhado.
— As pessoas não pensam…
Suacelência adivinha a retórica do europeu. Ergue o braço autoritário, mas abre mão à paciência para que o estrangeiro entenda.
— Pode ser doença. Mas doença que provoca convulsões, aqui, em Cacimba, passa a ser outra coisa.
Os rumores tinham-se espalhado como fogo em capinzal. Nunca se tinha visto coisa igual: homens adultos vagueando, febris, sujos e maltrapilhos. E era como o Administrador explicava: as pessoas, em Cacimba, podem ser pobres mas andam limpas e cuidadas. Apenas os loucos andam sujos.
— Os maus espíritos vestem-nos com o lixo deles. E eu mesmo, que não sou massa popular, eu acredito que há… como direi… uma maldição do cemitério.
— Como assim, uma maldição?
— Viajar é muito bom, mas as pessoas deviam morrer no sítio onde nasceram.
— Não vejo relação entre uma coisa e outra.
— Veja o cemitério dos alemães. São falecidos confundidos, não reconhecem o lugar onde suspiraram.
— O mundo mudou, as pessoas hoje vivem e morrem longe dos lugares onde nasceram.
— Não sei, o senhor sabe mais do mundo. Voltemos à epidemia, Doutor. Eu quero é resultados, quero anunciar o controlo da situação.
— Mandei vir vacinas e antibióticos da cidade. É preciso iniciar uma campanha de limpeza e isolamento. Noutras palavras, é preciso o senhor mandar fechar o quartel.
— Não posso.
— Por uns tempos. O quartel deve ser o foco desta epidemia.
— Mas eu não mando nos militares.
— Falo como médico, é preciso arejar e desinfectar o quartel.
O anfitrião levanta-se e chama pela mulher. Reconhecer que os seus poderes são limitados o tornou tenso, precisa de se reabastecer de álcool. O médico faz tenção de se erguer e reencher o copo para o dono da casa, mas este ordena que se detenha. A esposa estava certamente acordada e cumpriria a sua doméstica obrigação.
— Parece-me que Dona Esposinha já adormeceu…
— Ela acorda, ela acorda — e o homem grita, num tom marcial: — Esposinha!
Silêncio. A casa dorme. Suacelência apoia-se, esforçadamente, nos joelhos e vai gemendo enquanto se aproxima da mesa. Serve-se generosamente e, mais generosamente ainda, emborca, de uma assentada, um copo inteiro. Volta a encher o copo, ao mesmo tempo que desaperta o cinto e esfrega a barriga deixada a descoberto. Um poderoso arroto mistura-se com a voz e o administrador é forçado a repetir a fala:
— Sabia que eu posso mandá-lo prender?
— Sei.
— Fica preso e ninguém sabe de nada. Aqui em Vila Cacimba é muito longe, não há embaixadas consulados, jornalistas…
O português baixa o rosto, em silêncio. A ameaça é tão real que ele não encontra resposta.
Suacelência continua afagando a pança e retoma o discurso em tom mais suave: — O que é que o faz tanto ir a casa de Bartolomeu Sozinho?
— Ele está muito doente.
— Há dezenas de pessoas muito doentes, com toda a prioridade política que eu já lhe expliquei. Ou será que é outra pessoa que o chama àquela casa?
— Por amor de Deus…
— Fique sabendo de uma coisa: o senhor é Doutor, com o devido respeito, mas eu mando em si e não vou permitir desobediências. Ficamos entendidos?
— Entendi.
De novo, um arroto faz estremecer um silêncio que se pretendia solene. Suacelência cerra os olhos, parece atacado por uma súbita melancolia. — A minha vida não é muito feliz, o senhor sabe?
O dono da casa inicia a fase queixosa: ele só podia embebedar-se em privado. Porque em estado alcoólico ele dizia a verdade, toda a verdade e apenas a verdade. — Sabe o que acontece no final? Acabo dizendo mal do meu partido.
Mais um trago, mais uma confissão. Olhos postos no copo, vai apalpando o assento da cadeira: — Eu gosto de vocês, portugueses, até porque foram portugueses que me salvaram.
— Salvaram como?
— Do naufrágio. Foram pescadores portugueses que me tiraram da água. Bartolomeu não lhe contou?
— Não.
— Nunca lhe falou do Infante D. Henrique?
— Sim, já me contou mais que uma vez.
— Mas aposto que não lhe disse a verdade. Não lhe disse que estávamos juntos eu e ele. Eu conto-lhe, agora, a verdadeira verdade.
Suacelência e Bartolomeu eram amigos de infância. Cresceram juntos na aldeia de Murebwé, nas imediações de Porto Amélia. No dia em que vieram buscar apoio para reparar o Infante D. Henrique, eles embarcaram juntos no pequeno bote. Na viagem até ao navio, ambos cuidaram de não voltar o rosto para trás. Eles queriam que o cais ficasse sem despedida. Para que fossem livres para nunca mais voltarem.
Foram os dois adoptados pelo comandante do navio. Mas, logo na viagem para a capital, Suacelência foi atacado por vómitos, e de tal modo se sentiu indisposto que foi deixado na capital. Quando o navio abandonou o porto de Lourenço Marques rumo a Lisboa, Suacelência ficou em terra, acenando com o mesmo lenço que o iria acompanhar por toda a vida.
O jovem Suacelência demorou-se na capital e, quando regressou à sua terra natal, trouxe consigo uma versão heróica da sua passagem pelo navio. Que ele tinha sido expulso do transatlântico por razões patrióticas. Ele, Suacelência, filho e neto da linhagem Susiweia, tinha capitaneado uma revolta à moda do assalto do Santa Maria, por Henrique Galvão. A revolta abortara — em parte pela conivência de Bartolomeu para com os portugueses — e Suacelência tinha sido lançado ao mar.
Salvara-se graças à ajuda de uns pescadores que o trouxeram para a praia.
Meses depois, quando voltou de Lisboa, Bartolomeu Sozinho já estava classificado como mentiroso, traidor, colaborador. O que quer que ele dissesse sobre o passado de Suacelência seria entendido como uma intencional falsidade.
— Tudo mentiras desse decorativo do Bartolomeu…
A bebida escorre pelo copo, pinga na alcatifa, mas Suacelência, voz pastosa, está demasiado ocupado no relato do passado. A narrativa volta ao início, enroladas que estavam palavras e ideias:
— Foram pescadores portugueses que me salvaram…
Os pescadores eram portugueses. Todavia, já tinham sido ingleses, italianos, franceses e russos. A nacionalidade mudava consoante as conveniências do relato e a identidade do interlocutor. — Nós aqui gostamos muito dos portugueses.
— Ainda bem.
— E fique sabendo: eu gosto de si, meu Doutor.
— Agradeço-lhe. Eu também gosto de si.
— Você é diferente do padre daqui da Vila.
— E porquê?
— Os padres, eu conheci-os muito bem, tratam a alma como uma árvore: podam-na. O senhor, não. O senhor trata, digamos, do corpo espiritual.
Despedem-se. O Administrador abraça o visitante e o amplexo demora mais do que Sidónio desejaria. Por um instante, ainda nos braços do outro, estranhos pensamentos o assaltam. Teria Suacelência adormecido, no morno amparo do seu corpo? Ou, pior, estaria retirando libidinosos sabores daquele contacto?
O anfitrião, por fim, se separa, amparando as mãos nos braços do interlocutor e pergunta: — O que é que eu ia a dizer?
— Não sei — responde o médico, desviando-se do hálito empestado do Administrador.
— Ah, é verdade. Não esqueça do remédio, Doutor.
— Do remédio?
— Para a transpiração, não se lembra?
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VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO)
RomanceBartolomeu Sozinho é um velho mecânico naval moçambicano aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora em seu escuro quarto de doente terminal. Ele é atendido em domicílio por Sidónio Rosa, médico portug...