Prólogo

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 Nós só acreditamos que exista um fim quando ele chega. Só acreditamos que ninguém é eterno quando ela se vai. Só entendemos como é a verdadeira dor quando experimentamos o seu sabor.

Quando ela partiu, senti como se minha alma estivesse morrido. Então, a partir daquele dia, decidi que não mais viveria, mesmo tendo meu corpo de pé toda manhã.

.oOo.

  Era a quinta vez que visitava o hospital em menos de um mês, mas era incontáveis as vezes em que entrei em inúmeros deles no decorrer da minha vida, desde que tínhamos onze anos.

  O que leva uma criança de treze anos a atentar contra a sua vida? Eu sempre me indagava e procurava desesperadamente uma solução para a sua cura. Mas por mais que eu me esforçasse ao máximo, por mais que eu trabalhasse nisso durante horas da minha vida, nada surtia o efeito desejado. No fim das contas ela sempre estava lá, com sua carne exposta, com seu corpo pedindo socorro, com sua vida implorando pela morte.

  As vezes eu reparava profundamente em seu rosto. Ela era linda, tanto por fora quanto por dentro. Sua pele era alva, tão branca quanto a porcelana. Sua cor preferida era materializado em seu cabelo, num rosa pastel que lhe dava um acabamento diferenciado, específico, como se ela fosse única. Seus olhos esverdeados e brilhantes aparentavam alegria na maioria das vezes, mas apenas eu sabia como eles eram realmente. Apenas eu podia enxerga-la sem sua máscara.

Você realmente acha que um dia eles irão me perdoar?

  Ela sempre repetia essa frase, todas as vezes em que íamos ao terraço e olhávamos o céu estrelado.

  Sakura era órfã. Havia perdido seus pais em um massacre do qual sua maior culpa havia sido se esconder no meio de tanta chacina. Meus pais resolveram criar uma casa de apoio, afim de abrigar todas os sobreviventes do atentado na Coreia do Norte. O público era tomado por adultos feridos e despedaçados, mas enquanto eu caminhava pela cena do terror, pude ouvir um choro baixinho dentro de um armário, e então eu havia a encontrado. Era a única criança no meio daquele horror, além de mim.

   Minha família pertencia a outro país, mas vez ou outra visitava lugares remotos ou de grande calamidade para oferecer ajuda, mesmo que isso custasse nossas vidas algum dia. Eu estava em zona de risco, mas tudo o que passei não chegava aos pés do que ela havia passado. Meu coração havia se enchido de compaixão, e então decidi que a levaria comigo, de algum modo.

   O resto vocês já podem imaginar.

   Sakura passou o resto da sua vida ao meu lado. Aparentemente muito doce e medrosa. Ela era a pessoa que, ironicamente, me trazia alegria e me dava uma razão para viver. Desde quando nos tornamos próximos, quando ainda eramos meras crianças, eu nutria um desejo decisivo de me casar com a garota que a vida havia me presenteado. No meio de tantos pesadelos, fruto de vivências horrendas em nossas viagens de teor altruísta, ela foi quem me acalmou durante as madrugadas e me ensinou a ser forte, quando nem mesmo ela havia sido. Eramos como unha e carne, como a tampa da panela, a cama e o colchão. Nós nos completávamos, ou ela ao menos me completava.

     Com dezoito anos, eu já não tinha mais tanto tempo para estar ao seu lado. Eu havia arrumado um emprego e a faculdade sugava muito de mim. Nossos encontros passaram a ser mais curtos e nossos abraços menos longos. Eu já não participava tanto da sua vida e ela se isolava cada vez mais. Repentinamente uma barreira havia se formado entre nós dois, e quando menos percebemos, já havíamos nos tornado meros estranhos que moravam dentro da mesma casa.

      Meus pais já não ficava mais conosco. Suas viagens haviam aumentado assim que a ONU decidiu apresentar-lhes como bases do altruísmo e solidariedade. Eramos apenas nós dois, e então nos tornamos distantes quando deveríamos estar juntos.

    Talvez essa seja a minha maior culpa.

     Eu havia chego em casa próximo a madrugada. O silêncio havia se tornado comum, rotineiro, parte de nós. Sakura sempre estava em seu quarto quando era meu horário de retornar, mas naquele dia havia sido diferente. Senti sua presença adentrar o cômodo e meus olhos cintilavam ao olha-la tão deslumbrante. Sakura vestia um lindo vestido preto. Era o seu aniversário de dezoito anos. Caminhei lentamente em sua direção, com um sorriso estampado em meu rosto. Eu ao menos disfarçava o quanto ela mexia comigo, mas Sakura parecia não se importar.

Comprei vinho sozinha dessa vez. — Sorriu — Enfeitei o terraço para nós dois. Se importa de ficar comigo e dormir mais tarde hoje?

     Ela sorria tão docemente que seria maldade negar-lhe tal pedido. Aquela havia sido uma das melhores noites que já havíamos passado na companhia um do outro. Seu sorriso estava mais aberto e seus olhos mais brilhantes. Sua postura, normalmente tão fechada e misteriosa, já não mais fazia jus aos momentos vividos naquele dia.

Eu gosto de você. — Disse de repente, enquanto encarava as estrelas. Olhei rapidamente para o seu rosto assustado, mas ela apenas fixava seu olhar ao céu, como se sua mente estivesse tão distante quanto o infinito. — Eu sou eternamente grata por você ter me salvado. — E estão virou seu pescoço em minha direção, enquanto sorria com seus olhos levemente fechados pelo levantar de suas bochechas tão redondas.

     Uma lágrima escapou dos seus olhos, escorrendo rapidamente pelo seu rosto. O que para mim soava como felicidade, para ela era apenas uma lágrima de despedida, uma lágrima de medo, uma lágrima de dor. Eu devia ter reconhecido, eu devia ter entendido o recado, mas fui bobo o suficiente para sorrir galanteador, quebrando nossa troca de olhar.

Se você não gostasse de mim, eu daria um jeito de te fazer ser minha. — Falava abobado. — Nós iremos nos casar, e então teremos uma família e seremos muiiito felizes. — Olhei seus olhos, que neste momento se banhava em lágrimas mais corriqueiras e pesadas que outrora. — Não precisa chorar, Danone. Eu também estou emocionado, mas olha só pra mim! — Apontei para o meu rosto seco.

      Uma risada fugiu dos lábios dela, e então em um movimento rápido, se jogou em meu colo, me beijando desesperadamente.

       Eu sempre havia sonhado com aquele momento, mas nunca imaginaria que seria daquele jeito, daquela forma, naquela hora. Ela me beijava com urgência, com fogo, como se fosse a primeira e a última vez. — e de fato havia sido — Com os hormônios aflorados, apertei sua pele sobre meus dedos, contornando sua cintura, vivenciando aquele momento com a mesma intensidade pela qual ela vivia.

        Aquele havia sido nossa primeira noite juntos. Nos amamos como loucos, fizemos júrias de amor, sorrimos e jogamos conversas fora. Tudo parecia perfeito, mas quando acordei ela já não estava mais lá.

       Me levantei sonolento, procurando pela sua presença entre os cômodos, mas tudo o que pude receber em troca havia sido o silêncio, o rotineiro vazio.  Foi então que, no meio de uma manhã feliz, uma notícia triste mudaria toda a minha vida.

O suicídio - HIATUSOnde histórias criam vida. Descubra agora