Seus dedos formigam, tremem, suam. Sente como se não fosse possível controlá-los, embora seja esse o momento em que devessem se comportar, deveriam respeitá-lo. Respire fundo, pensa. Então, num instante, o ar é sugado por suas narinas, estufando seu peito até o limite. Ele segura, conta até três e vagarosamente começa a soltá-lo enquanto sente os músculos de seu peito aos poucos relaxarem. Novamente, suga o ar, conta até três, solta. E, novamente.
"Chega", pensa. Do outro lado das cortinas pessoas começam a falar. "Devem estar entrando, falando como matracas, será que vieram conversar?", pensa. Dedos trêmulos. Senta-se no banco preto lustrado, ajusta-o para que seus braços estivessem confortáveis quando precisasse deles. Levanta a tapa e aprecia a infinidade de teclas que, agora, servir-lhe-iam para encantar a multidão de pouco mais de cem pessoas que o aguardavam.
Mais conversas, mais pessoas. Conforme o falatório tomava devastava do auditório, um estranho frio na espinha tomava conta do protagonista. Uma sirene. Algumas vozes se calam. Inspira, segura, expira. Novamente. Levanta-se, estica os braços diante do corpo, entrelaça os dedos e se alonga. Em seguida, faz o mesmo com os braços esticados para o alto. Inspira, segura, expira.
Segunda sirene. Um burburinho ainda soa nas cadeiras. Uma mulher ri histericamente, alguém manda ela se calar. "Shiiii", faz a voz. Dormência. Ele caminha em direção às cortinas enquanto seus joelhos teimam em vacilar; seus pés formigam. Sua nuca gelada, transpira e arrepia-se. Ele para alguns centímetros da cortina. O bastante para que não enroscasse em seu paletó. Espera. Fecha os olhos enquanto escuta a última sirene. As luzes se apagam, dando espaço para o breu natural do auditório e ao silêncio, até que um facho de luz irrompe o vácuo e atinge a cortina na direção do protagonista.
Ele sente o círculo vermelho no veludo das cortinas fechadas o acalentando. Inspira, segura, expira. O circulo começa a se dividir na sua frente, dando espaço a duas metades que se tornam cada vez memores ao passo que o deixam em evidência. Ele é o círculo vermelho daquele universo, é o porto seguro que vieram buscar. Uma maré de palmas começa a surgir e, aos poucos torna-se uma onda acaloradas de aplausos que o atinge. É a hora do show.
Curva-se diante da escuridão que o ovaciona e, em seguida, dirige-se em direção ao piano, senta-se e, então, soa a primeira nota, que nasce quente como o fecho de luz em forma de sol que irradiava expectativa na cortina de veludo instantes antes; quente como as memórias dos beijos de sua amada; forte como a força que se abraçavam e, ao mesmo tempo, suaves como o sabor da pele dela; como acordar e vê-la dormir ao seu lado.
Permanecem assim por minutos, revelando a infinitude dos instantes. Até que, aos poucos, vão se pondo, tornando-se mais ermas, como a noite. Mistério invado o espaço quente abandonado; pedras na janela; frio. Não há mais nada. Só toques fortes. Concatenados. Cada vez mais rápidos. Como se não respirasse. Não há mais nada. Vazio. Silêncio.
Algumas palmas esparsas ecoam. Além delas não se ouve sequer uma respiração no auditório. Um, dois, três. Inspira. Segura. Doces notas reiniciam o ciclo, florescendo delicadamente, ganhando forma e completando o espaço com flores, que flutuam sobre a plateia; as colore novamente e as embriaga com seu perfume. Escuta-se risos alegres. Expira.
Mais notas; outros tons, uns frutados outros em dó menor. Um sujeito flutua de sua poltrona e regressa ao seu passado, lembra-se de sua avó chamando-os para comer, seus primos correm. Querem chegar primeiro. O pai reclama. Lembra-se do cheiro de sua infância, do perfume de sua avó.
Noutro canto do auditório um casal vislumbram seu futuro, veem-se juntos; pensam nos momentos que ainda não tiveram; nos filhos que ainda não foram concebidos. Até que, num átimo, a primavera de sons é obstada por duras notas que fazem com que todos retornem em si. Todos, menos Eva, ela estava lá o tempo todo, fixada nos movimentos do pianista. Seu sonho estava ali, fazendo a plateia flutuar e a fazendo suspirar.
Endurecidas, as notas seguem seu ritmo fúnebre até a morte da canção. O protagonista levanta, sem se afastar de seu banco, olha para plateia e, mesmo no breu a vê por um instante, até que a multidão se levanta para aclamá-lo.