O vento fez cócegas nonariz de Ayanna. Ela sempre gostou do som dele, pois acreditava que o próprioBrytgeor, Senhor dos Céus e Tempestades, que, como aprendera, tinha seu lugarentre as quinze maiores divindades, sussurrava canções e poemas através dascorrentes de ar.
A menina o ouvia diariamente. Será que está apaixonado? Era o que pensava. Então, ria sozinha, imaginando-o de mãos dadas com uma linda moça. Ela não sabia como era o rosto de Brytgeor, mas, por nenhum motivo especial, supunha que seus cabelos eram muito longos.
A grama também fez cócegas nos pés de Ayanna. Ela amava andar descalça, para sentir as folhinhas compridas se enroscando em seus dedos, que ficavam gelados quando chovia, exatamente como agora.
A menina adorava o som da chuva. Será que está dando banho na terra? Ayanna tentou imaginar a cena, mesmo sem saber como a água ou o chão se pareciam.
Ventava e chovia naquele dia.
Quando o tempo estava assim, seus pais costumavam proibi-la de sair de casa. Se os dois já não paravam de reclamar com a menina presa entre quatro paredes, o que diriam se ela desobedecesse e botasse só um fio de cabelo para fora da janela?
No entanto, para sua surpresa, o pai a levou para passear na floresta sob a chuva. Andaram bastante, mais do que andariam em qualquer outro passeio; Ayanna raramente passeava.
O pai parou de repente.
— Não saia daí — disse ele, largando a mão da filha.
— Por que não, papai? — perguntou Ayanna.
— Porque é melhor assim. Você consegue se virar sozinha.
A menina ouviu os passos dele, que se afastavam cada vez mais. Depois, não havia mais nada. Só vento e chuva.
...
CINCO DAS SETE linhagens de Mãe Dharnuana, da raça dos drakar, também chamados Reis de Feras, habitavam as Terras de Brasa desde o despertar de seus anciãos. Lá, dividiam espaço com o povo Ignar, os Nascidos do Fogo, gigantes cujos corpos eram feitos de rocha e magma.
Mãe Dharnuana tinha um companheiro: Pai Nargonth, o Incêndio. Os dois despertaram na mesma época, mas ele fora morto por humanos, e ela passara a se recusar a deixar a própria toca desde o ocorrido. Não fosse por seus filhos, e pelos filhos de seus filhos, que, por compaixão e devoção à matriarca, traziam-lhe alimento diariamente, Dharnuana teria morrido de fome.
Com o passar do tempo, mais fraca e mais deprimida ela ficava. Raiva, tristeza e saudade se uniam, criando um sentimento corrosivo do qual não conseguia se livrar. A família temia o que já parecia inevitável: embora Dharnuana fosse resistente, um dia, a dor da perda a consumiria por inteiro.
— Que a Mãe de Todas as Mães, escamosa Vorn, guarde seu espírito quando a matriarca fraquejar pela última vez — em privado, era isso que os descendentes dela desejavam, e os das linhagens de outras matriarcas também.
Quando chegasse o momento, restaria lamentar e relembrar quem Dharnuana fora em vida.
A raça dos drakar, por opção, não era numerosa. Eles nem sequer tinham necessidades iguais às dos humanos, que se deixam conduzir pelo estúpido desejo de espalhar parentes pelos quatro cantos do Mundo.
Um Rei de Feras era suficiente para marcar presença em dez territórios diferentes. Por qual razão, então, almejariam centenas de filhos? As vidas deles não possuíam prazo de validade. Enquanto a terra existisse e pudesse sustentá-los, eles também viveriam. Se seus números aumentassem desenfreadamente, a comida ficaria escassa. Por isso, só os mais velhos dentre os Rödrakar — os vermelhos — tinham companheiros, enquanto os mais novos se preocupavam em criar algazarra.
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Vermelho: Histórias de Ërda (Universo Världen) | DEGUSTAÇÃO
FantasyOBRA VENCEDORA DO THE WATTYS 2019 NA CATEGORIA FANTASIA! Vermelho é uma fantasia cujo protagonista não é o escolhido, nem a criança da profecia. Não é um rei, um mago ou um guerreiro. Essa história é protagonizada por duas figuras completamente opos...