Capítulo 3: Mãos quentes

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— Por que você não quer que eu te diga o meu nome? — perguntou Ayanna, quebrando o silêncio que se instaurara entre ela e seu mais novo amigo desde que partiram do campo florido.

A menina não se sentia confortável em ser carregada daquela forma, presa aos dentes do drakar pelo vestido, que estava sujo e cheirando a mato. Por isso, para tentar se distrair, quis iniciar uma conversa e, de quebra, livrar-se daquela dúvida. Afinal, achava muito estranho que alguém se recusasse a saber o nome da pessoa com quem estava conversando.

— Esqueceu da parte em que te disse para aprender a abrir a boca só quando eu quiser te escutar? — Maldryr repreendeu-a, mas não demorou a responder. — Não quero saber como se chama porque nomes geram apego, e eu não quero me apegar a você. — Sua fala soou engraçada. Era difícil conversar enquanto carregava uma coisinha tão pequena na boca.

— Mas eu já sei o seu nome. Ouvi quando disse ontem — observou a menina. — O que é "apegar"?

— É quando você gosta muito de uma coisa. Tanto que não quer se livrar dela. — Pelo jeito, as poucas horas dormidas foram suficientes para o Rei de Feras arranjar mais paciência para lidar com a pequenina. Achava que estava se saindo muito bem nisso.

— Eu gosto de você — concluiu Ayanna. — Vou apegar?

— Não deveria.

— Por que não?

— Porque, quando te deixar com a sua gente, não voltarei para fazer visitas — respondeu o drakar. — E porque isso não faria sentido. Somos diferentes demais.

A menina sentiu uma dorzinha aguda no peito, como uma alfinetada, bem onde ficava o coração. Seria isso o tal "apegar" de que ele falava? Uma coisa que dói somente por dentro? Ayanna não se atreveu a perguntar. No entanto, de uma coisa já tinha certeza: por mais ansiosa que estivesse para descobrir os sons e cheiros da cidade, não queria perder seu primeiro e único amigo, mesmo que ele fosse um sujeito rude.

Ayanna gostaria muito de poder enxergar o rosto dele, se é que havia um. Se ele me leva na boca, deve ter um focinho, mas sem pelinhos fofos, que nem os dos gatinhos, pensou. E será que ele tem mãos, com dedos grandes e fortões?

Também queria ver como era a cor da qual Maldryr havia lhe falado, o vermelho, e saber o porquê de o corpo dele ser tão grosseiro e áspero, como os dos lagartinhos que já tivera a oportunidade de segurar. Será que um drakar é uma lagartixa gigante? Será que ele tem rabo? Perguntou-se. Eu acho que tem.

A menina também desejava entender como o bafo de Maldryr pôde secá-la e aquecê-la. E precisava saber, principalmente, o porquê de ele não desejar "se apegar" a ela. Será que "apegar" é uma coisa ruim?

— Resolveu se calar, enfim? — indagou o drakar, após vários minutos de quietude, interrompendo os devaneios de Ayanna.

— É que não sei mais o que devo dizer — respondeu ela.

— Não? — Maldryr riu. — Mas você nunca para de falar! É isso que chamam de milagre?

Ayanna pôs-se a pensar, buscando na mente todas as coisas que poderiam gerar uma boa conversa. Então, ao não encontrar nada sobre o que valesse a pena conversar — exceto as dúvidas que teve receio de externar —, optou por ceder à própria curiosidade.

— Você já viu a cidade?

— Não com detalhes. Nunca estive dentro dela, só vi de longe — confessou Maldryr.

Percebendo que a menina estava prestes a abordá-lo com uma cascata de perguntas, o jovem Rei de Feras decidiu mudar o jeito de carregá-la durante o trajeto — que, por enquanto, continuava exclusivamente a pé, porque Maldryr ainda não pensara numa forma segura de carregá-la quando estivesse voando.

Vermelho: Histórias de Ërda (Universo Världen) | DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora