Maldryr odiava ficar encucado com algo. Na maioria das vezes, acabava cedendo a uma vontade completamente inversa à de seus princípios.
Deitado sobre a pedra favorita, de olhos fechados e com a cabeça apoiada nos braços, o jovem drakar batia a pontinha da cauda na superfície escura da rocha. Quem o visse daquele jeito acreditaria que Maldryr queria continuar descansando; no entanto, ele só estava pensando no encontro do dia anterior. Pensando muito, por mais que quisesse evitar.
O momento de reflexão foi interrompido por uma voz esganiçada e animada.
— Ei, ei! Malzão! Vamos lutar? — indagou um drakar nanico, o mesmo que lançara a ameaça em tom de brincadeira à matriarca. Ele era primo de Maldryr. — Quero te mostrar um truque novo!
— Não estou com vontade — respondeu o drakar mais velho.
— Puxa, mas por quê? Você adora lutar!
— Não estou com vontade — repetiu Maldryr com aborrecimento.
Botando o rabo entre as pernas, o nanico vermelho não cometeu a tolice de abrir a boca novamente. Ele recuou, de cabeça baixa, e saiu à procura de algum irmão ou primo desocupado que quisesse conhecer o tal truque.
Maldryr soltou fumaça pelas narinas e voltou a pensar.
As palavras de Ozirith faziam muito sentido para si, mas o jovem Rei de Feras não conseguia parar de remoer a imagem soturna da menina abandonada, chorando, que infestara seus sonhos. Parecia real, palpável, e, talvez, tivesse sido uma visão ou coisa parecida.
Teria seu espírito saído do corpo, enquanto ele dormia, para observar a criança que permanecia à mercê dos males da vida selvagem? Não... Bizarro demais.
Os drakar vermelhos só precisam ingerir quantidades abundantes de carne uma vez a cada dois ou três meses. Os humanos, por outro lado, se alimentam mais de uma vez ao dia, e isso denotava o quão superior o povo de Maldryr era quando comparado à raça dos homens.
A menina devia estar, literalmente, morrendo de fome, e ninguém a ensinara a se virar sozinha.
A diferença de idade entre ela e Maldryr era pequena. A diferença entre a maturidade dos dois, por outro lado, era gritante. Ela não passava de um filhote de homem, e o jovem Rei de Feras se tornara adulto ao completar o quarto ciclo.
Em sua arrogante concepção das coisas, Maldryr acreditava que filhotes eram puros, independente da raça.
É melhor que aquela ratinha morra de vez, ou, quem sabe...
— Ah, porcaria! — rosnou alto, soltando fogo pelas ventas.
Maldryr odiava ficar encucado com algo.
...
A chuva veio de novo, mais intensa, mais demorada.
Ayanna continuava sentada no mesmo canto, do mesmo jeito. Sentia frio e fome, mas o medo fazia-a esquecer-se do resto.
Chorava, porque estava sozinha; chorava porque, apesar de ser tão nova, o motivo de ter sido abandonada já era claro em sua mente, perfurava-a como os ferrões dos insetos que insistiam em picá-la.
Nunca conseguira ajudar nas tarefas de casa. Quando tentava, acabava fazendo algo errado, e os pais se aborreciam por isso, principalmente quando um prato terminava estilhaçado no assoalho.
Quase todos os dias, Ayanna ouvia os dois conversando sobre como, apesar de terem a vantagem de estarem livres de impostos, era horrível morar longe dos reinos fixos. Eles lamentavam as longas viagens a pé que precisavam fazer quando aparecia a necessidade de algo que só poderiam encontrar numa cidade, e reclamavam de como ficava cada vez mais difícil encontrar carne na floresta para alimentar todas as bocas da casa, principalmente agora que viria o novo bebê. Outras vezes, escondida atrás da porta, Ayanna também ouvia quando os dois diziam que ela era uma inválida, um prejuízo com pernas, uma criança amaldiçoada, e que precisariam fazer uma escolha...
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Vermelho: Histórias de Ërda (Universo Världen) | DEGUSTAÇÃO
FantasyOBRA VENCEDORA DO THE WATTYS 2019 NA CATEGORIA FANTASIA! Vermelho é uma fantasia cujo protagonista não é o escolhido, nem a criança da profecia. Não é um rei, um mago ou um guerreiro. Essa história é protagonizada por duas figuras completamente opos...