A alma

Ainda nos resta esperança?

Não sabiam aonde ir. Presos e feridos, se aparecesse algum caminho teriam de segui-lo fielmente até descobrirem (de novo) que dava em mais um abismo em formato de cubículo brilhante que encolhia pouco a pouco.

A tristeza lhes inchava os rostos, as mãos passavam a alisar as faces dormentes e úmidas pelas gotas que sumiam no quarto. Tinha escapado da memória de Cris qualquer pensamento bom e ainda teria de chegar no trabalho com um sorriso de orelha a orelha para fornecer bens aos outros e sustento para si. Frustração lhe descrevia minimamente; tinha em seu coração um medo de nunca mais encontrar paz, mas viver com os limites assombrosos; medo de nunca mais poder ser como era: feliz, atuante, imparável, a morte não lhe era um desejo, mas uma consequência que poderia vir em qualquer minuto pois a alegria era incircunstancial. Ah... E Agora? Teria alguma restituição?

Aquele foi o primeiro a olhar. Admirou-se com o pedestal que apareceu na frente deles. Chamou a atenção da nova refém para mostrar-lhe o livro que surgiu ali. Com os olhos arregalados ela atendeu ao chamado; num susto de faces rubras, sem hesitar, aproximou-se, seguida por ele.

Na capa, igual à que estava sobre a estante, recebendo poeira, os dizeres, numa caligrafia caprichosa, cheia de cachos e em dourado: "Bíblia Sagrada".

Há semanas Cris não tinha posto o Livro em mãos. Seus olhos brilharam de emoção e o sentimento de culpa e felicidade surgiram como fogos de artifício em seu coração; nunca mais o sentira; tamanha paz, tamanho amor! Sim! Eis a salvação!

- O que tem escrito? - Aquele quebrou o clima.

Cris respondeu mostrando os dentes, seus olhos viraram linhas de tanta alegria! Sim! Sim! Finalmente a solução! Minhas lágrimas e erros não podem resistir ao meu arrependimento e Seu perdão! Eu lembro que Ele é Bom!

Ela riu um pouco mais depois, não por causa da Palavra de Deus, e sim pelas lembranças que vieram com o comentário.

- Sabe...? - Olhou para a frente, cruzou as pernas e prosseguiu: - Quem diz a mesma coisa é meu marido - E sorriu tristemente, à moda de Aquele. - Ele diz: se querem que eu leia e seja salvo, por que não projetam algo mais simples na capa?!

E por falar nas recordações, elas eram muitas; todas repletas de um prazer imensurável, provocador de alegria, impagável; enquanto o filme passava na mente de Cristina, uma tristeza ainda maior lhe invadia. O revestimento das bênçãos que recordava a acusavam novamente, com muito mais fervor.

Tantas coisas boas que havia perdido, quantas coisas que sobrepuseram os amores que verdadeiramente a satisfaziam. Cristina tinha encontrado prazer em situações que a graça se perdia rápido ou inexistia; ela começou a priorizar seu bem estar no lugar de confiar que ao amar a seu Deus de todo o coração teria suas necessidades supridas e edificação real. Ah! E quando fez-se ouvir a voz do Espírito para obedecer?! Quando ela olhou para si e suas roupas, suas contas, seus problemas e se sentiu completa ao lembrar do versículo que diz: "A minha graça te basta."?!

Cristina já não via mais sentido naquelas palavras, nada além de expressões que ela ingeria sem entender.

Mas, estranhamente, o que foi esquecido teve o melhor momento para ressurgir em sua mente. Tudo se encaixava numa bagunça infinita (ou muito grande) que não demonstrava resolução pelos seus próprios esforços, seu orgulho não era suficiente pra vencer a si mesma. Percebeu que estava vivendo a parte ruim de sua história e que tinha uma melhor podendo ser provada! Sim! Cris precisava se lembrar, e depois de anos, ela quis da alegria que um dia sentiu ao amar e ser amada!

- Que esperas?! - Aquele perguntou com um desespero incomum. - Desculpe, mas podemos abrir logo este livro e lê-lo?! Não aguento mais!

Com uma compaixão que sentiu falta, Cristina sorriu, apesar dos espinhos (se bem que eles pareciam ter perdido o efeito). Agarrou as escrituras e abraçou-as com carinho, sentindo o cheirinho de livro novo que exalava ali, ainda que tivesse anos de posse.