Um - Fria, vazia, escura

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Será que alguma pessoa na Terra vive a vida do jeito que se deve fazer? Digo, dando aos singelos detalhes, valor; vazando do peito, pela boca, o que está preso; engolindo a seco, o orgulho. Sempre me perguntava isso quando eu não estava satisfeita com o rumo que as coisas tomavam.

Faziam três semanas e dois dias desde a festa de noivado. Eu estava voltando de Catskill Mountains, onde havia ido entrevistar um dos turismólogos da área. Era para um trabalho da faculdade. O lugar era bem afastado da cidade e as estradas fazem isso com a gente: nos faz refletir. A cada milha, nós nos questionamos, nos repreendemos, nos permitimos lembrar de fatos passados e imaginamos futuras possibilidades pelo menos umas dez vezes, eu receio.

Era pouco mais de seis horas da noite, eu comia de um pacote de biscoitos de manteiga que segurava junto ao volante e escutava minha estação favorita enquanto era perturbada pela minha própria voz interior. Acontece que naquele dia, antes de sair de casa, eu e Jamie tivemos uma discussão um tanto quanto conturbada. Na verdade, estávamos afiando aquela briga como um amolador afia a faca há meses, então uma hora teria de cortar algo ou alguém.

9:24 da manhã,
na casa de Rosalie

A escova ía da raíz às pontas do meu cabelo úmido, penteando-o. Eu, sentada com as pernas cruzadas na cadeira da penteadeira, observava Jamie entrar no quarto com seu cinto nas mãos.

— Achei. Estava na cozinha — comentou ele, se posicionando atrás de mim de forma que conseguisse ver perfeitamente seu reflexo no espelho. Começou a vestir a peça enquanto eu respondia:

— Bem... parece que vamos ter alguns problemas quando finalmente morarmos juntos — eu parei por um segundo para o dizer e soltei uma risada antes de finalizar — Você é um daqueles...

Jamie terminou de acertar seu cinto e cruzou os braços, encarando-me pelo espelho com um olhar atrevido.

— Daqueles como?

— Daqueles que são relaxados — finalmente levantei da cadeira, tirando o roupão de banho. Assim, eu estava apenas com as roupas de baixo.

— Vou fingir que não me insultou — antes de eu virar as costas para caminhar até o guarda-roupas, eu rolei os olhos num riso simples para sua resposta.

Com um jeans claro e uma blusa rosa salmão de manga média em mãos, retornei à cama, onde larguei a blusa e comecei a vestir a calça. Jamie já calçava os sapatos sociais.

— Sabe, Ro... Recebi um e-mail do Hamilton ontem. Deixei pra falar hoje de manhã... — ele começou receoso e eu, com o rosto fora do alcance de sua vista, fechei os olhos e respirei fundo. Ouvir minha insatisfação em forma de silêncio o fez levantar e sentar na beira da cama. Já com a calça no corpo, virei para pegar a blusa e olhei sem reação para o moreno.

— Não vai dizer nada? — questionou ele, levando os braços para trás de seu corpo, apoiando-o assim.

— Você que ia dizer alguma coisa... — eu não estava feliz com aquela conversa na qual eu seria obrigada a entrar. Hamilton era o superior de um colunista amigo de Jamie... da Inglaterra. Ele falava pouco disso, porque eu nunca teve muito o que falar, visto que tudo era questão de esperas e burocracias até haver uma conclusão.

Quando começamos a sair, Jamie falava com muita frequência sobre querer trabalhar para o The Guardian, um jornal inglês muito conceituado. Ele via a oportunidade de chegar à TV por meio daquilo, já que muitos funcionários do jornal têm ligação com a televisão. Não que eu tenha aversão a ingleses, mas tenho uma vida e uma familia em Nova Iorque, além de uma faculdade a terminar. Sempre fora mais fácil para pessoas desenraizadas toda essa coisa de mudança, não é? Então enquanto ele dizia que queria muito tentar contato com Josh – aquele amigo – eu dizia que nunca fez parte dos meus pensamentos sair da América.
Acontece que naquela época eu não me importava com muito do que ele dizia sobre sua vida porque eu tinha total crença de que não sairíamos do sexo casual. Uma hora nos apaixonamos e Jamie não tocava muito no assunto, pois o que tínhamos era maravilhoso. Até cheguei a pensar que ele havia desistido, mas sempre que ele tocava nesse nome - Hamilton -, eu me calava e tentava não pensar naquele assunto.

Era escancaradamente perceptível que estávamos sendo imaturos em não termos aquela conversa. No entanto, eu não cederia e acho que Jamie também não...
No mínimo, aquele diálogo nos faria pensar em ceder às diferenças e decidir que seria ideal cada um ir para seu lado. Cometemos muitos erros técnicos, um desses erros foi empurrármos com a barriga e o pior deles foi nos tornarmos noivos sem antes termos levantado o tapete e varrido toda a sujeira lá escondida. E na manhã de um dia abarrotado de compromissos para ambos, tivemos que levantar aquele tapete. Brigamos... feio. Ele perguntou asperamente, enquanto me tinha contra a parede, o porquê de eu ter aceitado ser sua noiva e eu o empurrei rebatendo com quase a mesma pergunta: se ele sabia que éramos tão diferentes em opniões fundamentais, por que insistiu e ficou?

Perdemos quase quarenta minutos sem sair dos gritos e acusações até que o silêncio só se fez presente quando Jamie bateu a porta da sala e saiu arrancando com o carro.

Eu saí de casa sem saber se pela noite, eu ainda seria noiva daquele homem.

18:08 da noite,
em algum lugar pela estrada

No banco do carona, eu tinha meu celular e minha mochila com as coisas do trabalho. Eu estava insatisfeita com tudo o que estava ali dentro, já que não consegui me concentrar em momento algum no trabalho. Quando os biscoitos acabaram, amassei o pacote com a mão que o segurava e deixei o plástico pelo compartimento da porta do carro. Em questão de segundos depois, o celular começou a tocar e, conectado com o bluetooth do painel, pensei por alguns segundos antes de pressionar o botão "Atender à chamada".

Eu estava prestes a passar por uma pequena ponte sobre um rio quando ouvi a voz amuada de Jamie.

— Ro, eu sinto muito pela briga de mais cedo. A que horas você volta pra Nova Iorque?

— Eu est...

— Olha, eu não quis dizer aquelas coisas. Eu acabei de chegar em casa e durante o dia todo eu não consegui tirar aquela briga da cabeça — o homem do outro lado da linha me interrompeu, ansioso. Eu fechei os olhos apenas por um segundo, sentindo meus olhos pesarem — Eu te amo, a gente precisa ter essa conversa mais calma e...

Minhas mãos apertaram ainda mais o volante e minha respiração tornou-se falha quando a buzina estridente e a luz extremamente forte vindo em minha direção invadiu meus sentidos. A sensasão era que eu havia saído do meu corpo por alguns segundos, pois eu sentia como se tudo em mim fosse feito de vazio. Um vazio frio. Milésimos depois, minha mente percebeu que eu ia bater no caminhão descontrolado se não tentasse desviar, foi quando gritei e girei o volante para a direita e com tudo.

— Rosalie!!! — a exclamação desesperada do meu noivo foi a última coisa junto com o barulho da colisão que eu ouvi antes de eu sentir as pancadas e a água gelada me engolindo até que a força da pancada da minha cabeca contra o banco fez com que eu perdesse a consciência.

É dolorosamente fria.

Sufocantemente vazia.

Incrívelmente escura.

Assim eu posso definir a morte...

Quando SubmersaOnde histórias criam vida. Descubra agora