Escrevo... não... melhor... Materializo esta memória justamente num período junino, na madrugada do dia 25 (antes era 24, dia de São João, mas varei a meia-noite), época do ano que marcou minha infância de várias formas.
Joseph (mudei o nome para evitar processo) era um meninozinho com quem eu trocava revistas. Trocador de revistas era um ofício para as crianças que aprenderam a ler cedo e gozavam de alguma assinatura semanal ou quinzenal. O periódico poderia ser da Turma da Mônica, alguma revista de jogos, especial de filmes infantis, enfim, qualquer selo que instigasse uma interação fora das casas de terraços altos, típicas do presente bairro. Joseph sempre foi menino de casa: branquinho, gordo, loirinho... E que fedia a cocô. Acho que não se limpava direito. Não chegara até então a conhecer as desventuras nossas nos bairros lá de baixo, como a Coréia de cima e de baixo, Macaúba, Areinha ou aqueles adjacentes à Praça da Bíblia. A mãe o mimava bastante. Morava na casa da frente. Era vizinho de um casal que parecia ter saído daquelas séries dos anos 70, cujo patriarca tinha um bigode à la Seu Barriga, cabelo no estilo Guy Ecker com corte curto (mas ele era mais parecido com Seu Barriga mesmo) e cuja matriarca possuía o típico corte avolumando e esvoaçante dos anos 90. Ela era alaranjada como acerola também.
Vila Passos não era um bairro nobre, mas de todo mundo ali, Joseph era um raros que tinham um SNES. Aquele aparelho era a alternativa para ele não sair para a locadora de videogames, pelo menos era o que eu entendia.
Quando chegava São João, a maior alegria da gente era ver o boi na rua, estalar bombinhas de murrão, sair correndo por qualquer motivo e, principalmente, acender o fogo da fogueira. Era tão legal sairmos à caça de pedaços bons e secos de gravetos e pedaços de ripas para, no final da tarde, atearmos fogo e ficarmos pulando até as chamas se tornarem uma fraca brasa cinérea, que sujava nossos pés. Havia ali perto uma palhoça que era praticamente um lixão, então catávamos os espólios (garrafas de vidro) dos brincantes para vendermos ao velho do algodão-doce, que ficava por ali quando os grupos de dança chegavam.
Joseph não passara nunca por nenhuma dessas experiências. Mas o lance da fogueira ele quis passar. Eu tentei convencê-lo a não pular. Ele era gordo e poderia se machucar. Ele quis. Pulou uma, duas, três vezes! O menino era danado! Eu e meus primos incentivávamos a continuar. Na quarta vez, ele perdeu a força nas pernas e pulou dentro da fogueira.HAHAHAHAHAHA!
Era essa a risada que eu daria se não visse seu chinelo pegar fogo e ele sair correndo, chorando. A mãe o acudiu e lançou um olhar condenatório para mim. Eu tive a impressão que naquele momento eu fui vilanizado.
Depois desse dia, eu não me lembro se ele saiu novamente para pular fogueiras por aí. Também percebi a constante ausência dele quando eu ia chamá-lo para brincar. Talvez eu tivesse me tornado uma má influência aos olhos de sua mãe. Na minha fase engajada, anos mais tarde, entendi que ali rompia um certo comportamento segregativo. Menino branco, menino preto. O branco se queimou por causa do menino preto. Mas foi fase. Depois cresci mais, esqueci essa bobagem e toquei a vida.
Voltando àquela época de infância, deixei de me preocupar com esse afastamento por um bom tempo: minha vó adoeceram e estava debilitada. Passei um tempo longe da Vila Passos e só voltei nos últimos dias em que ela permanecera em terra, até Deus a levar embora.
Uma das últimas memórias que tenho desse menino foi no dia da morte de minha avó. Já não tinha forças para chorar. A mãe cochichou qualquer coisa para ele e ele veio apenas me abraçar. A singela amizade dava ali um ar de despedida fúnebre. Depois disso, nunca mais vi esse menino. Mas até hoje ele representa uma das minhas primeiras interações de letramento fora da escola. A primeira amizade de livro e um elemento de memória desse mês junino. O menino branco que quase não saía de casa e que quase se torrou para experimentar as coisas que a proteção materna o privara até esse saudoso dia. Naquele momento éramos iguais: éramos cinzas.
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