CAPÍTULO 4

17 0 0
                                    

Na sexta-feira, acordei com a cabeçadoendo um pouco. Não estava de ressaca,mas tinha bebido o suficiente para deixara boca travando e o pensamento maislento.Fui até a cozinha e encontrei a Ruth.— Já cozinhando? — perguntei, tirandoa garrafa de água da geladeira.— Você sabe que horas são, menino?— Ela pôs uma das mãos na cinturaenquanto mexia a panela com uma colherde pau. — Quase meio-dia.— Hum. — Eu me sentei e fiqueiolhando a panela. Estava faminto, e ocheiro era convidativo. — Onde está omeu pai?— Foi até a escola organizar tudo parao início das aulas.Balancei a cabeça e encostei o copogelado na testa para aliviar os efeitos dacerveja. A sensação foi boa, mas Ruth viuaí a deixa para chamar a minha atenção.— Seu pai está preocupado com você.— Comigo? O que foi que eu fiz?— Ele disse que você saiu ontem.Andou bebendo.Virei os olhos. Apesar de tudo, semprefui um filho exemplar, nunca deipreocupação para os meus pais comdrogas, brigas. Bebia socialmente, umporre aqui, outro ali, como todoadolescente, mas nada alarmante.— Não fiz nada. Fui ao Tavares, comotoda quinta-feira.— Acredito em você. — Ela sorriucom cumplicidade.— O que o velho precisa é de umanamorada.Ruth soltou uma gargalhada.— Não consigo pensar no seu pai comalguém.— Infelizmente, nem eu. Mas ele temque largar um pouco do meu pé. Se elenão tivesse o trabalho na escola, euestaria ferrado.— Você é a pessoa mais importante navida dele.— Eu sei. E sei também que sou aúnica, por isso ele pega no meu pé. Maspreciso de uma folga. Mal cheguei deviagem e ele já está me vigiando.— Não é vigiando, ele só ficapreocupado.— Mas eu não dou trabalho! — eudisse, talvez um pouco alto demais.Nesse instante, meu pai chegou em casae encerramos a conversa.— O cheiro está bom — comentou ele,dando uma olhada dentro da panela queRuth mexia.— Já está quase pronto, senhorCampos.— Ótimo — disse ele, parecendo notarminha presença ali. — Acordou agora?Respirei fundo e contei até dez.— Pai, hoje é sexta, meu último dia deférias.— Só fiz uma pergunta. — Ele sedefendeu e ficou uns segundos meolhando. — Bom, vou lá no quarto deixara pasta e lavar as mãos para almoçar.E saiu da cozinha, enquanto Ruth ria demim.Eram onze da noite e eu estava sentadona cama do Caveira, esperando eleterminar de levantar o cabelo com umquilo de gel.— Que horas o Juca vem mesmo?— Onze e meia.— E por que você me falou onze?— Pra você não se atrasar.— Eu nunca me atraso — protestei.Caveira se virou e me olhou.— Que tal?— Sei lá. Está a mesma coisa desempre. — Dei de ombros.— Você é péssimo pra dar opinião.— Não sou especialista em saber se umcara está bonito com gel ou sem gel.Pergunte pra uma mulher.— A única mulher que tem aqui emcasa é minha mãe. E opinião de mãe nãovale, ela vai dizer que estou lindo, mesmonão estando.— É verdade. — Suspirei, aindapensando no interrogatório que meu paifez sobre a noite anterior. Ele sabe quetoda quinta-feira vou ao Bar do Tavares,mesmo assim tinha de perguntar tudo.— O que foi?— Meu pai, cara. Não me dá umafolga!— Hum, dureza. Pelo menos minha mãenão me enche. — Caveira se sentou nochão, encostado no armário, enquantoesperava o Juca chegar.— Sorte a sua. — Eu me encostei nacabeceira da cama. — O velho precisa deuma namorada, viu?Caveira começou a rir.— Seu pai, namorando? Acho que issosó vai acontecer no dia de São Nunca.— A Ruth falou mais ou menos amesma coisa. Mas é sério, precisoarrumar uma namorada pra ele, já que elenão arruma.— E você acha que consegue?— Tenho que tentar. Ele precisa dealguém pra preencher as horas dele e ovazio que minha mãe deixou, esquecer umpouco de mim.— Hum... — Caveira ficou algunsminutos pensativo. Tempo demais, paraser sincero.— O que foi?— Estou aqui pensando... Minha mãeanda muito sozinha, sempre fica em casanos fins de semana, e eu não gosto de vê-la assim.Arregalei os olhos.— Você está pensando a mesma coisaque eu?Caveira balançou a cabeçaafirmativamente. Seu pai tinha falecidohavia uns quatro anos, e desde então suamãe não teve mais ninguém. Comecei avisualizar o casal que ele imaginava. Amãe dele ainda estava inteirona, erabonita, embora ultimamente não searrumasse tanto.— O que você acha, Cadu? Seu pai eminha mãe?— Você acha que pode dar certo?— Não custa tentar. Ela é viúva, seupai está divorciado. Os dois estãosozinhos, são amigos. Acho que pode darcerto sim. E seríamos irmãos. Já pensou?Moraríamos na mesma casa! — Caveiracomeçou a ficar entusiasmado.— Essa seria a parte ruim — brinquei,e ele jogou uma almofada na minha cara.— É sério, acho que não custa tentar.Você tenta de lá e eu daqui, a gente armaalguma coisa.— Armar o quê? Eu não sou bomnessas coisas de relacionamento.— Você pelo menos já teve umanamorada.— Isso não me deixou diplomado noassunto. — Fiquei quieto, pensando maisum pouco. Poderia dar certo sim, e issoresolveria os meus problemas, o do meupai e o da mãe do Caveira.Escutamos a buzina do Juca lá fora enos levantamos.— Amanhã a gente começa, viu? Voufalar do seu pai pra minha mãe.Balancei a cabeça. Esperava que essaideia desse certo, mas ainda tinha minhasdúvidas.Chegamos rapidamente ao local da festaem Rioazul. Olhei aquela multidão naporta tentando conseguir um convite e mesenti um felizardo. Com certeza estariaboa, a julgar pelas meninas que estavamali fora.— Nossa, acho que vou ficar aquimesmo, olha quanta gata! — comentouCaveira, fechando a porta do carro.— Espera pra ver lá dentro — disseJuca. Ele logo encontrou a namorada, quemorava ali na cidade. — Nos vemos lá.— Acenou e se afastou.— Hoje vou me dar bem, Cadu.— Imagino que sim.— É sério, cara. Minha história depobre menino que perdeu o pai e agoraestá sem rumo na vida sempre funcionaaté com a mais durona das garotas.— Você não devia usar a morte do seupai pra conseguir mulher — censurei.— Qual é, ele aprovaria a tática.Pior que era verdade.Fomos em direção à entrada, passandopelos reles mortais que não conseguiramconvite. Os caras nos fuzilavam com oolhar, como se a culpa por nãoconseguirem entrar fosse nossa.A festa acontecia em uma espécie deporão, de tão baixo que era o teto e tãoesfumaçado que estava. Meus olhosdemoraram a se acostumar com aescuridão, e Caveira logo foi para o bar.Fui atrás, reparando nas meninas queestavam perto, mas sem olhar muito.Minha timidez nessas horas era violenta.— Vamos sentar e observar.— Caveira, essas suas estratégias deataque são uma furada.— Furada nada, você vai ver.E eu sabia que veria. Caveira podianão ser o cara que mais chamava aatenção das meninas, mas de nós três erao que mais se dava bem. Estava semprerodeado de garotas, podia escolher. Alicedizia que a aparência de garoto carenteque ele tinha deixava a mulherada empolvorosa. Beto também não tinha do quereclamar, afinal ele também podiaescolher a menina que quisesse, mas, aocontrário do Caveira, tinha fama decafajeste na cidade porque cada diaestava com uma diferente. Ele não ligava.E eu... Bem, eu não era muito de trocar degarotas, porque minha timidez me impediade conversar direito com elas, além dofato de vir de um namoro longo comTalita.O barman estava bastante ocupado,então fiquei alguns minutos tentando pedirduas cervejas. Foi um custo ele meatender com tanta mulher bonitapendurada no balcão, além de o barulhoalto da música atrapalhar quando ochamava. Uma garota ao meu lado seofereceu para conseguir as bebidas e euaceitei, afinal de contas o cara só estavaatendendo as mulheres. Ela me olhavacomo se fosse me devorar. Não era feia,mas lembrava demais minha ex-namorada,e isso não estimula nenhum cara. Agradecie virei de costas, dando uma de canalhamesmo.Quando me virei com a cerveja paradar ao Caveira, já o vi conversando comduas garotas. Balancei a cabeça.Definitivamente, ele não perdia tempo.— E este é o meu grande amigo Cadu.— Ele me apresentou para as duas, masnão consegui entender o nome denenhuma. Logo Caveira engrenou um papocom uma delas e deixou a outra na minhafrente.— Fique aqui. — Ofereci o banco altoque ocupava na frente do bar. A menina sesentou, sorridente.Ela era bonita, tinha o cabelo escuropreso em um penteado no alto da cabeça,o que realçava seu rosto redondo. Seusolhos pareciam claros, mas não dava parater certeza por causa das luzes.— Você também é de Rio das Pitangas?— perguntou ela, bem perto do meuouvido, encostando a bochecha na minha.— Sou — disse, sentindo seu perfume.— Desculpe, qual o seu nome? Nãoconsegui entender quando o Caveira falou.— É Rosângela. — Ela sorriu. — Oseu é Cadu, não é?— Isso. Carlos Eduardo, mas só meuspais me chamam assim. Você é daquimesmo?Ela fez que sim com a cabeça. Ficou meolhando por um tempo e me aproximeimais um pouco dela.— Quer beber algo?— Ah, um guaraná seria bom.Pedi o refrigerante para o barman, queme atendeu com a maior boa vontade, jáque não havia mais tantas garotas pedindobebida.— Mas e aí, Rosângela, o que vocêfaz?— Estou no último ano do colégio aquiem Rioazul.— No último ano? Quantos anos vocêtem? — Eu me assustei porque pensei quefosse mais velha, talvez pela tonelada demaquiagem que tinha passado.— Tenho 17. E você?— 20. Faço Direito na UFRP.— Legal.Ela manteve o sorriso no rosto e,enquanto falava, olhava para meus lábios,não para meus olhos. Saquei o convite eme aproximei dela devagar. Fingi que iafalar algo em seu ouvido e, quandocheguei pertinho, virei o rosto e a beijei.

A Namorada Do Meu AmigoOnde histórias criam vida. Descubra agora