Duas batidas de leve, a porta se abrindoe uma voz ressoando pelo quarto:— Levante-se logo, Carlos Eduardo,que temos um convite para almoçar.Foi assim que acordei no sábado, commeu pai entrando no quarto, abrindo ascortinas e saindo, claro que deixando aporta aberta.Eu me sentei na cama, esfregando osolhos. Minha cabeça latejava. Olhei orelógio e eram exatamente onze e vinte esete da manhã. Que saco! Caveiramadrugou para convencer a mãe a fazerum almoço para nós? Estava mesmodisposto a juntá-la com meu pai.Pensar na comida da tia Matilde meanimou a levantar e tomar um banho. Sóassim consegui acordar de verdade. Vestiuma calça jeans velha e a primeira camisaque vi no armário, afinal de contas quemprecisava estar bem era meu pai.Pensando nisso, fui atrás dele e oencontrei na cozinha, com uma xícara decafé na mão. Ele a estendeu para mim.— Foi boa a festa?— Foi. — Peguei a xícara e esperei osermão sobre bebidas e chegar tarde emcasa, que não veio. — Planos para oalmoço? — Tentei mostrar totalindiferença, como se não soubesse aondeíamos.— A Ivone ligou nos convidando e euaceitei. Melhor do que ir ao Senzala, nãoacha?Fiquei parado, com a xícara a meiocaminho da boca. Olhava meu pai,incrédulo.— Ivone? A mãe da Juju?— Ela mesma. — Meu pai cerrou osolhos por segundos. — O que foi? Nãovai me dizer que já está de implicância denovo com a menina.Coloquei a xícara na pia e corri para omeu quarto. Em um minuto troquei deroupa. Como ele não me avisa que oalmoço era na casa da Juliana? Meu paiapareceu na porta do quarto.— O que foi? Por que está trocando deroupa?— Aquela calça está velha demais.— Sei. E a camisa?— Esta é mais bonita. — Fui para obanheiro ajeitar o cabelo. Meu pai foiatrás.— O que você tem, Carlos Eduardo?Nunca te vi assim.— Não tenho nada, pai. Só estou mearrumando um pouco melhor, afinal decontas eles são nossos amigos.— Sei. — Meu pai me olhou comdesconfiança. — E aonde você pensouque íamos?Eu o olhei e fiquei mudo. Não tinhacomo responder aquilo.— Não sei. — Dei de ombros, como senão fosse importante.— Você está agindo de um jeitoestranho. Parece uma... — Ele parou e mesegurou pelo braço quando tentei passarpor ele. — Uma pessoa apaixonada?— Que é isso, pai? Está louco?Eu me soltei e fui para o quarto, comele ainda atrás de mim. De repente, ficousério.— Espera aí! Você está interessado nanamorada do seu amigo?Ele devia estar espantado, pelo tom davoz. Não consegui encará-lo.— Claro que não! — disse, sem sermuito convincente.Ele se aproximou de mim e me fezolhar para ele.— Você está agindo de modo estranho asemana toda e agora está aí, todopreocupado com a roupa que vai usar.Nunca te vi assim; você nunca ligou pararoupa.— Você está delirando. Não estouinteressado em ninguém. — Eu me senteina cama para calçar o tênis.— Como não percebi antes? Você estáestranho desde que voltou. Está enfurnadoneste quarto ou então aéreo. E essa suaatitude agora, de trocar de roupa... Éclaro, você está interessado nela. Nãodigo que estou feliz por você, afinal decontas ela é namorada do Beto. — Elebalançou a cabeça e foi saindo do quarto.— Vou avisar a Ivone que não poderemosir.— Não! — Eu corri e o segurei. —Nós vamos.Ele me olhou e mais uma vez balançoua cabeça.— Você quer mesmo?— Quero. Quero muito — respondi,sem graça.— Ela tem namorado. Que por sinal éseu melhor amigo.— Eu sei. — Baixei a cabeça. —Aconteceu pai, não posso fazer nada.— Pode tentar esquecê-la.— Não sei se quero. — Eu o olhei. —Eu penso nela todos os dias, tento nãopensar. Não sei se consigo esquecer aJuliana, mas quero pelo menos ter aamizade dela, se é o máximo que possoter.— Você é quem sabe. — Ele tinha umolhar de piedade, que fez com que eu mesentisse ainda pior. Ia sair do quarto, masantes me abraçou. — Espero que você nãosofra, meu filho.— Já estou sofrendo.Chegamos à casa de Juliana rápido, já queficava duas ruas acima da nossa. Meu paifoi o caminho todo falando do perigo degostar da namorada do melhor amigo e mepedindo para ser cuidadoso. Era o que euprecisava para começar meu dia.Ivone abriu a porta e nos levou até asala, onde Manuel assistia TV. Assim quenos viu, ele desligou o aparelho ecomeçou uma conversa animada com meupai sobre a cidade e suas mudanças.Fiquei ali sentado, olhando os dois eesperando Juliana aparecer. E ela nãodemorou.Usava um short jeans e uma blusinhapreta, rabo de cavalo e chinelo. Estavasimples e linda.— Oi, Cadu — disse, me dando umforte abraço.Eu me perdi em seus cabelos, fechandoos olhos como se ajudasse a sentir melhorseu perfume. Ela olhou para seu paiconversando com o meu e me puxou paraa cozinha. Encontramos tia Ivone, que,junto com a empregada, terminava dearrumar as coisas para o almoço.— Precisa de ajuda, mãe?— Não, querida, pode ir conversar como Cadu. — Tia Ivone sorriu e ficou decostas para nós, enquanto arrumavaalguma coisa de aparência boa em umatravessa.— Vem.Juliana saiu me puxando pela mão, e ocontato com a pele dela era maravilhoso.Subimos as escadas e paramos em frente auma porta.— Este é o meu quarto. — Ela abriu aporta e fiquei chocado. Nas paredesestavam colados vários pôsteresrelacionados aos Três Mosqueteiros.— Meu Deus! — Entrei, aindaespantado, observando tudo. Ela sorriu efechou a porta atrás de mim. — Vejo quevocê levou a sério nossa brincadeira decriança.— Eu simplesmente amo tudorelacionado à história dos TrêsMosqueteiros. — Ela me puxou até umaestante. — Tenho vários livros sobre oassunto.Olhei e vi vários títulos de AlexandreDumas, alguns em inglês.— Você leu todos?— Sim, mais de uma vez. Como falei,amo tudo que se refere aos TrêsMosqueteiros.Eu ia fazer uma brincadeira sobre elaagora namorar um, mas decidi ficarquieto. Não queria enfiar o Beto na nossaconversa.— Tenho alguns filmes também. — Elaabriu uma portinha da estante e vi váriosDVDs ali. — O que acha de assistirmosalgum depois do almoço? Se você aindagostar disso, claro.— Vou adorar — respondi, comsinceridade.— Qual você quer?— O que você preferir. — Para mim ofilme pouco importava; eu queria era ficara tarde toda ao lado da Juliana.— Vou pegar então o primeiro, Os TrêsMosqueteiros, mas uma versão antiga; damais recente não gostei. — Ela fez umacareta. — Tenho outros também, como OHomem da Máscara de Ferro e AVingança do Mosqueteiro.— Está ótimo esse. Outro dia assisto oresto.— Tá bom. — Ela sorriu, parecendofeliz.Continuei andando pelo quarto e pareiem frente a um grande painel de metalcom várias fotos da Juliana, algumaspessoas que deviam ser seus amigos emPorto Alegre e... Para minha surpresa,havia uma foto minha, do Beto e doCaveira, os três vestidos de mosqueteiros.— Nossa, você tem esta foto? —Apontei espantado e ela pareceu ficar umpouco sem graça.— Alice me enviou depois de mecontar que vocês usaram a fantasia em umCarnaval. Fiz ela me enviar a foto dequalquer maneira, queria ver como vocêsficaram com a roupa. — Ela se aproximoue olhou para a foto. Devíamos ter uns 14anos na época. — Você ficou muito bem.— Nem tanto. — Sorri, lembrando queas meninas ficaram loucas quandochegamos ao baile vestidos daquele jeito.Repetimos a fantasia mais uns dois ou trêsanos, até não servirem mais e passarmos aviajar no Carnaval.Continuei olhando as fotos. Haviavárias da Juliana, e eu pude ver atransformação daquela menina magrela,chata e sem sal nessa garota linda emeiga. Ela foi comentando algumas atéterminar. Olhou para mim, sorrindo, e eufiquei olhando de volta. Ficamos assimalguns segundos, meu coração disparadodentro do peito, até que ela virou o rosto.— Animado para o baile?— Sim. Eu te pego aqui umas onze emeia, tá?— Alice me disse que os bailes aquisão bons.— São.Nossa conversa foi interrompida por tiaIvone, que bateu na porta nos chamandopara almoçar. Juliana novamente mepuxou pela mão, me levando de volta àsala.O tema do baile era Anos 60, e decidi irvestido de bad boy. Achei que combinariacom o momento, já que desejar anamorada do melhor amigo é umacanalhice das grandes. Coloquei umajaqueta de couro, resgatei uns óculos desol da juventude do meu pai nas tralhasdele e passei meio quilo de gel no cabelo,para fazer um topete. Meu visual nãoestava ruim, e meu desejo secreto eraagradar Juliana. Não tinha comoincorporar melhor o papel.Estacionei em frente à casa dela edesci. Tia Ivone atendeu a porta.— Gostei da produção — elacomentou, enquanto sorri gentilmente.— A Juju vai demorar? — Quando fiz apergunta, vi Juliana descendo as escadas.Ela usava um vestido azul-claro justo atéa cintura e depois caindo em uma saiarodada. O cabelo estava preso em umrabo alto. Linda, como sempre.— Oi, Cadu. — Ela me deu um beijo.— Você está linda — comentei, umpouco tímido.— Você também está bonito. — Elasorriu para mim.— Bom baile, crianças — disse tiaIvone, fechando a porta.Segurei a mão de Juliana e a levei até ocarro, abrindo a porta. Meu coração batiamuito rápido dentro do peito e eu estavaelétrico. A vontade era raptá-la e cair naestrada, mas sem chance de issoacontecer. Nessa noite, eu iria mecomportar.Chegamos ao Pitangueiras, e o salão doclube estava todo enfeitado. Váriaspessoas a caráter dançavam ao som damúsica temática. Encontrei algumas pelocaminho e fui apresentando Juliana.— O que acha de bebermos algo? —perguntei.— É uma boa ideia.Ela me acompanhou até o bar. Pegueidois refrigerantes; não ia tomar cerveja, jáque estava dirigindo e também porqueprecisava ficar sóbrio ao lado dela.Ficamos ali, observando as pessoas econversando até eu ver o Caveiraentrando acompanhado de duas meninas.— Ah, não! — eu disse alto.— O que foi? — perguntou Juliana, sevirando na direção em que eu olhava.Caveira acenou e veio ao nosso encontro.— E aí, Cadu, lembra das meninas? —Ele apertou minha mão e deu um beijo norosto da Juliana. Eu me vi parado defrente para a Rosângela.— Oi — disse ela, com um tommalicioso.— Oi — engasguei. Rosângela olhoupara Juliana e ficou encarando-a. — Estaé a Juju, namorada do Beto, nosso amigo.Rosângela cumprimentou Juliana econtinuou ali na minha frente. A essaaltura, Caveira já tinha sumido, agarradoà menina com quem ficara na noiteanterior.— Não sabia que você viria —comentei, tentando acabar com aquelesilêncio constrangedor.— O Caveira convidou a Martinha e euvim junto. Imaginei que você estaria aqui.Arregalei os olhos com o comentáriodela e percebi que Juliana ia sair do meulado. Rapidamente segurei sua mão paraque ela entendesse que eu a queria ali.— Legal — disse, tentando parecerindiferente a ela. — Espero que você sedivirta.Rosângela ainda ficou alguns segundosali parada, mas finalmente percebeu queestava sobrando e saiu. Agi como umbabaca, mas não estava dando a mínima.Não largaria Juliana sozinha por garotaalguma.— Algum rolo seu? — perguntou elafinalmente, depois de alguns segundos desilêncio.— É. Não. Quero dizer... — Estavasem graça. Não queria explicar nada, masao mesmo tempo não tinha por queesconder. Ela era minha amiga, afinal decontas. — Nós ficamos ontem na festa deRioazul.— Ah.Juliana balançou a cabeça e olhou nadireção da Rosângela, que agoraconversava com um carinha que usavasmoking. Percebi que ainda segurava suamão, e, por mais que quisesse continuarassim, soltei antes que alguém visse efosse falar alguma besteira para o Beto.— Sabe, eu não sou assim, mas é queeu... — Não consegui terminar de meexplicar. Juliana me olhou e sorriu.— Não precisa me dar satisfação denada.— Eu sei. Mas não quero que vocêpense que sou um cafajeste. — Quasecompletei: como o Beto era.— Eu sei que você não é. — Ela deuum longo gole no refrigerante e ficou aomeu lado, olhando para a frente. — Alicesempre me falou de vocês todos.— Ah, esqueci que você tinha umainformante aqui.— Pode-se dizer que sim. Mas é que eunão queria perder nada da vida de vocês.Então já sei tudo, ou quase tudo, queaconteceu enquanto estive fora. Sei comovocê, o Caveira e o Beto agem, ou agiam,com as meninas. — Ela parou e me olhou.— Sei também o quanto Alice gosta devocê.Dei uma gargalhada e ela se espantou.— A Alice não gosta de mim.— Gosta sim.— Ela acha que gosta.— Como assim?— Juju, a Alice cismou comigo porquesou o único cara daqui que ela não podeter.— O Caveira também.— Mas o Caveira já tentou ficar com aEmília, então não conta.— Acho que você está enganado —disse ela e parou. Olhou ao redor e depoisme olhou de novo.— Não estou. Sei que a Alice pensanisso como um joguinho. Se pudesse ficarcomigo, ela não iria me querer. É atentação do proibido — eu disse, e agorafoi a minha vez de parar. Eu a olhei sérioe pensei se ela também não seria a minhatentação do proibido. Talvez sim, talveznão; a verdade é que jamais tinha mesentido assim.— Pode ser. — Ela deu de ombros. —Mas vai dizer que você nunca quis ficarcom a Alice. Ela é muito bonita.Fiquei mudo, pensando no que falar.— Sim, não vou negar. Se pudesse,teria tentado ficar com a Alice algumtempo atrás. Mas, por causa do Beto,parei de vê-la como uma garota bonita.Ela é apenas a irmã do meu melhor amigo.Juliana ficou quieta e eu tentei imaginaro que se passava na cabeça dela.— Acho que isso não tem nada a ver—disse ela. — Se quiser, posso tentar fazero Beto desistir desse pacto.— Deixa quieto.— Mas ela gosta de você.— Eu não gosto dela. — Suspirei. —Não do modo como ela gosta de mim, sefor verdade que gosta. Então não mexecom isso.— Ok.Juliana começou a se balançar umpouco ao som da música, enquanto olhavaas pessoas dançando na pista.— Pode ir lá dançar com suas amigas.Não a acompanho porque minhacoordenação motora me impede.Ela deu uma risada gostosa e balançoua cabeça.— E deixar você aqui solto para aRosângela atacar? — brincou. Fuiobrigado a rir e apontei um casal distante.— Isso não vai ser problema.Juliana olhou e viu Rosângela no maiordos amassos com o tal carinha dosmoking.— Nossa, ela não perde tempo! Ondevocê encontrou essa menina?— Coisas do Caveira.Juliana enroscou o braço dela no meu efalou baixinho:— Não quero dançar não. A conversaestá boa.Ganhei a noite com essa declaração!Ficamos o baile todo conversando e elame contou sobre sua infância em PortoAlegre.
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A Namorada Do Meu Amigo
RomansaA NAMORADA DO MEU AMIGO - Graciela Mayrink Você trocaria seu melhor amigo pelo amor da sua vida? Na cidade de Rio das Pitangas, nada parecia capaz de abalar a amizade entre Beto, Cadu e Caveira. Quando crianças, nenhum dos três garotos gostava da J...