Capítulo 1 - O nascimento de Maria (parte 1)

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Fazia calor naquela tarde de segunda. O sol já ia a pino quando a batalha chegara ao fim. Não que se calcule exatamente quantas horas alguém pode ficar em trabalho de parto, mas por aquela altura já havia passado bem umas 60. As enfermeiras e o obstetra do hospital Miguel Couto ficaram um pouco assustados com a tenacidade daquela senhora ali deitada naquela maca. Todo aquele tempo sem nenhuma anestesia parecia insuportável mesmo para profissionais que lidavam com os extremos provocados pela dor nas pessoas. Brincavam, como quem prognostica aquilo que não pode ver, dizendo que a menina não queria vir pra esse mundo. E é bem possível que estivessem todos certos.

Havia na situação toda algo de incerto. Não que Maria tivesse nascido com algum problema de saúde, afora uma questão menor com a sua respiração oscilante, mas tudo aquilo parecia mesmo prestes a ruir. Em dado momento, a mãe da criança acreditou mesmo que o bebê talvez não saísse de seu ventre para ganhar o reino dos viventes. Tendo sido expelida, ao que parecia, contra a sua vontade, a criança não emitira nenhum sinal. Uma preocupação tomara conta da sala, de forma que o pior parecia se avizinhar daquela desafortunada senhora.

O alívio veio no segundo seguinte. Os batimentos cardíacos estavam normais, mas a criança recusava-se a anunciar, da forma escandalosa como normalmente o fazemos todos nós, sua entrada no mundo. Era negra retinta. Uma pequena bola de carne e melanina criada com todo o afeto que uma mãe, solteira, com escolaridade precária e sem muito apoio familiar, conseguira despender em meio ao caos que se torna a vida de praticamente todas as mulheres negras cuja situação se assemelha a essa.

Em seus primeiros anos de vida, crescera e fora criada pela mãe na comunidade do Jacaré, na Zona Norte do sempre infernal, e quase nunca invernal, Rio de Janeiro. Naqueles primeiros anos o calor parecia penetrar as paredes de tijolos desnudos de sua pequena casa. Sua primeira lembrança era exatamente essa: do suor escorrendo pelas suas têmporas naqueles verões que se estendiam até Julho para recomeçarem em Setembro. A segunda, quase colada e indissociável da primeira, era a palavra crise. Dizia-se naquele tempo que qualquer criança carioca aprendia a dizer calor e crise antes mesmo de poder falar mãe,

Lembrava-se que, na escola municipal na qual estudara houve, certa vez, um daqueles trabalhos mais toscos de colagem com jornais antigos, provavelmente, em que os alunos deveriam fazer um texto através de colagens com as palavras recortadas. Não teria ali muito mais do que 7 ou 8 anos, pois sabe Deus a idade em que essas crianças se alfabetizavam nessas escolas, mas tinha a certeza de que todos os textos, de todas as crianças, tinham a palavra crise. Obviamente, a utilização era equivocada. Pode-se imaginar o que dali surgia; "o natal é crise", "o mercado gosta crise", "a crise é o coelhinho da páscoa" e alguns outros absurdos.

De todo modo, eram sintomas de um tempo muito nosso. Aquela época foi cortada pelo signo da crise. Talvez seja exagerado tudo o que disse até aqui. É possível que as crianças não tenham colado a palavra crise e realmente tenham se restringido mesmo ao Papai Noel ou a Fada do Dente. De qualquer forma, muito nova, Maria desenvolveu a percepção de que aquele mundo não seria fácil para ela.

Um pouco mais crescida tomou ciência do que a crise, mais do que o calor, significava para alguém que morava aonde ela morava. Aqui, como quem conta histórias, e que é aquilo que sou, só posso utilizar a imaginação. Devem ter sido tempos difíceis para as pessoas com a pele negra. Eu nunca o soube, posto que sempre estive do outro lado. Mas a consciência dessa realidade, isso nós a temos sempre. Vimos tudo se tornar escasso e, na medida em que vinha a escassez, recrudescia ainda mais a percepção de que era necessário achar um culpado para aquilo. O peso dessa culpa vinha em lufadas de ódio gratuito; branco.

Ela se lembrava que antes das colagens, na escola ou na rua, estranhos ou mesmo conhecidos, já haviam falado do cabelo ruim, do seu cheiro forte, que era preguiçosa, burra e, da primeira vez que a memória não a trai, abandonando-a no compromisso da fidelidade aos fatos, quando o patrão de sua mãe mencionara, sob o pretexto de preservar seu filho, que "não era adequado eles brincarem juntos porque a criança poderia ter piolhos."

E pensar que o futuro já foi entendido como uma temporalidade histórica na qual esperávamos por algo melhor... A verdade é que pra Maria, pra sua mãe e pra todo o resto daquela gente, nunca fora um direito ter direitos. Aquela criança desde cedo crescera sabendo que a realidade não apenas seria dura, mas também injusta.

E ademais, quem pode viver sem ter o direito de sonhar? Quem pode ser eternamente escravo do presente e permanecer humano aos olhos de si e do outro? Como pudemos fazer isso?

A solução radicalWhere stories live. Discover now