Eu me lembro do barulho estridente, da gritaria histérica e das bandeiras nacionais nas janelas dos prédios misturando-se à sensação de uma redenção coletiva atingida ali por volta do final daquele mês de outubro. Era tudo inacreditavelmente estapafúrdio. Como dizia o agora eleito presidente da república, a grandeza cobra o seu preço e estamos dispostos a pagá-lo. Adiciono que com os respectivos juros.
Por aquela altura já se iam algumas décadas de crise. Governos de esquerda e de direita haviam fracassado no que, aos olhos do homem comum, parecia insolúvel. O que já fora a oitava economia do mundo estava reduzida a ruínas de um passado glorioso, o que gerava um misto de raiva e tristeza cujo caldo tinha um gosto intragável para nós. Os últimos 30 anos tinham sido praticamente a barbárie. Nada havia funcionado. Primeiro foi a agenda liberal. Cortes e mais cortes geraram uma horda de desgraçados para os quais o termo vida parecia ser exagero. Depois daquilo boa parte da população passou a existir, simplesmente.
A revolta popular levou a esquerda ao poder. Vieram os programas sociais e com eles os empréstimos, a irresponsabilidade fiscal em um país já quebrado. Ainda no primeiro mandato o que havia voltado a ser a sombra de uma vida se deteriorou radicalmente, em um sentido no qual as palavras são incapazes de descrever. Na verdade, tudo o que sucede aqui me parece impossível de por em palavras.
Foi mais ou menos nessa época em que o discurso da "solução radical" começou a ganhar força. Nem à esquerda e nem à direita; ambos. A solução era o combate sistemático ao que o futuro governo parecia compreender como o "mal da vadiagem". A proposta era muito simples e sedutora. Colocar a população carcerária a serviço do estado e do setor produtivo. Inteligentemente, algo que atraiu a classe média empobrecida por décadas de uma crise interminável. Não consistia em mero programa para o detento pagar pela sua vaga na prisão. Na letra do projeto de reforma constitucional, dizia-se que "todo detento sob tutela do estado brasileiro deve gerar superavit para o erário".
Nunca ficara claro como até o primeiro ano do presidente eleito. No primeiro ano, começaram a surgir as primeiras parcerias público-privado nesse campo. O agronegócio, nas últimas em função da retração do crédito agrícola e da dura concorrência internacional, precisava baratear ainda mais o custo de produção. A solução era não precisar pagar pela mão-de-obra não especializada. Aí entrava o estado, fornecendo detentos que ficariam sob a tutela dos fazendeiros pelo período de sua pena. Em troca, as empresas regularizavam sua situação financeira e, consequentemente, voltavam a pagar seus impostos. Para isso, uma junta de juízes, sempre que uma parceira era firmada, ia pessoalmente aos presídios selecionar quais detentos iriam para o que muitos descreveram como "o inferno ele mesmo".
No início, não havia muito critério. Era mais barato alimentar um ser humano do que um trator, haja vista que todos os combustíveis fósseis já começavam a rarear e todo ano o barril do petróleo se tornava cada vez mais caro. As colheitas passaram a ser executadas por esses homens e mulheres em jornadas de trabalho que variavam de 12 a 16 horas e os castigos físicos passaram a ser constantes.
No segundo ano, os resultados começaram a aparecer. Com a recuperação do setor agrário-exportador, o PIB voltou a crescer e o caminho se abriu para a barbárie em estado lato. O governo submeteu ao parlamento uma emenda ao chamado "código de contravenção à vadiagem". Era o golpe final. A nova lei mandava "prender todos aqueles sem trabalho ou domicílio fixo". A bancada religiosa, a maior do congresso, aprovara a lei adicionando uma emenda que ficou conhecida como a "cláusula de Cam", sob encomenda de seus aliados do governo.
Recordo-me como se fosse hoje. Na prática, a cláusula de Cam sempre existira. Na bem da verdade, desde o primeiro dia de existência dessa terra. O filho de Noé, amaldiçoado por ver os pais em um momento de ardorosa paixão, cujo filho carregaria a marca desse castigo bíblico: a negritude. Estava feito. Dali em diante, o estado formalizara tudo aquilo que o termo "solução radical" quisera dizer desde o início. Colocar a população negra a serviço das grandes empresas. A "cláusula de cam" simplesmente formalizava na letra da lei o que já ocorria nas juntas judiciais.
Seguiu-se à reforma os grandes expurgos. A população comemorou quando a polícia invadiu, por meses a fio, as comunidades mais pobres para capturar os "vadios". Uma vizinha dera um churrasco quando a favela ao lado de nosso prédio fora destruída pelas forças do governo em um confronto violento entre a polícia e a população civil que, logicamente, entendera finalmente o que estava ocorrendo aquela altura.
***
Hoje pela manhã sai na rua para tomar café. Já são 5 anos da "solução radical". Vou ver se levo algo para Maria comer. Ela merece. Tem sido, em meio a toda essa tragédia, alguém tão boa conosco. Um dia espero que o estado lhe conceda a alforria, embora vá sentir saudades de todas as nossas conversas sobre literatura americana e filmes antigos. Maria deve ter sido uma grande professora em outros tempos.
No entanto, pensar a vida sem Maria é difícil, porque Maria, como vocês bem sabem, a essa altura já é quase da família.
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A solução radical
ContoConjunto de pequenos contos distópicos narrados por um sujeito qualquer sobre um governo recentemente eleito que decide adotar uma política radical para a solução de uma crise contínua em um país não muito distante daqui.