Capítulo 1 - O nascimento de Maria (parte 3)

47 3 0
                                    

O peso da história é sempre acachapante para aqueles que vivem a contemporaneidade. Maria, desde muito nova, bem sabia disso. Recordava-se, detalhe a detalhe, de como fora deixar para trás a meninice típica das crianças para chegar aos anos de mulher em formação. Com Maria, e todos aqueles cuja pele possui a tonalidade da cor de chocolate, essa hora parece sempre chegar antes. Quase como se essa classe de gente não merecesse, aos nossos olhos, o direito à inocência.

Os pormenores sempre me faltam, mas talvez tenha sido por volta dos 10 anos que percebera que os olhares para ela na rua, nos ônibus e na vida se alteraram como que em um passe de mágica. Num daqueles milagres bíblicos que sempre lhe pareceram, durante as aulas da escola dominical que frequentou durante quase todos os domingos de sua infância, meio fora do lugar. Afinal, para que multiplicar o vinho se ao fim e ao cabo todos vão ficar bêbados e, como havia ensinado o zeloso pastor Givaldo, acabarão eventualmente perseguindo o caminho do pecado e abandonando a justeza a partir da qual um seguidor de Cristo deve orientar sua insignificante vida.

O pastor era um homem alto, pardo, com olhos profundos de um castanho bem escuro e com um cabelo sempre muito bem cortado. Sempre usando suas camisas sociais engomadas, dessas que cabem perfeitamente em respeitosos senhores de meia idade, possuía talento na arte do bem falar. Na primeira vez que o vira em frente à igreja, uma casa relativamente simples no número 380 da rua Viúva Cláudia, ficara impressionada com aquela postura ereta e aquele gesticular de pessoa que geralmente sabe o que fala. Givaldo falava com os lábios, mas também com o seu baita corpanzil.

A mãe de Maria procurava para ela, e sobretudo para os filhos, uma nova igreja. Era comum, na vida dela, o que parecia ser um movimento pendular com relação à vida em Cristo. Ora beata, ora mundana. O retorno nunca se dava para a mesma igreja pois lhe parecia imperdoável o pecado de abandonar a igreja quando as coisas estavam transcorrendo mais ou menos bem para ela e para a família. Isso acontecia, embora não fosse nenhum tipo de ciência exata, de ano em ano. Nessas idas e vindas conheceu o irmão Givaldo.

O sujeito era simpático, sempre com um sorriso meio amarelado e uma palavra de conforto para aqueles em sofrimento, invariavelmente lembrando-lhes que Deus tem um propósito para tudo e que é necessário não se desviar do caminho da virtude. Era o que a mãe de Maria precisava ouvir quando não conseguiam jantar no fim do mês, quando precisavam se abaixar embaixo da cama nos dias de operação policial com helicóptero atirando pela comunidade, quando falavam do seu cheiro fétido ou da sua aparência suja. Algumas humilhações, eu e você jamais as conheceremos bem o suficiente para entender o que significam, mas podemos imaginá-las com um pouco de esforço e, sobretudo, boa vontade.

Era um domingo. O culto normalmente ocorria duas vezes no dia, um bem cedo e outro, o principal, na parte da noite. O pastor Givaldo ministrava ambos. Às tardes, funcionava a escola dominical, o equivalente neopentecostal da catequese católica. As aulas que contribuíam para a formação moral e espiritual das crianças eram ministradas, geralmente, pelo grupo de adolescentes que frequentavam a igreja. Mas desde que Maria havia entrado, o pastor Givaldo passara a frequentar mais aquelas reuniões de formação.

Para todos ali presentes, ter o pastor por lá, poder desfrutar de seus ensinamentos e de sua interpretação sobre o evangelho era uma honra. Vez ou outra, quando as atividades da escolinha findavam, Givaldo chamava uma das crianças para conversar. Costumava perguntar como as coisas iam em casa, como estava a escola, se estudavam ou só iam comer a merenda, e se estavam pecando. A sensação de ser convocado, ao final dos encontros, por aquele homem gigantesco e ungido era um misto de euforia e pânico. O chamado de Deus ele mesmo. Às vezes chamava alguém, outras não. Maria lembrava-se da primeira vez que foi chamada. Tinha, por ali, não mais do que 10 anos.

O pastor levou-a para uma sala contígua ao salão de celebrações da modesta igreja. Aquele cômodo não tinha mais do que 3 metros quadrados. No canto possuía escrivaninha de metal enferrujado e, do lado oposto, um sofá de dois lugares creme no qual ele e a menina se sentaram. O coração de Maria já ia em disparada. Um sorriso tímido tomava conta do seu rosto. Sempre ansiara que o pastor lhe desse a benção e perguntasse como as coisas iam. Havia ensaiado esse momento em casa, sozinha, na frente do espelho.

Givaldo toma o seu tempo. Observa a menina cuidadosa e demoradamente. É a primeira vez que Maria vê aquele olhar que, até então, nunca saberia reconhecer. Há algo naqueles olhos castanhos que agora lhe prometiam a salvação da alma desde que soubesse manter um segredo. Um algo que veria ainda muitas outras vezes em sua vida. Aquilo que tem sido, desde sempre, o cimento que junta a obra humana nessa terra.

A solução radicalWhere stories live. Discover now