Essa cicatriz tornou-se, poucos anos mais tarde, o ponto nevrálgico de sua ruptura com a fé. Entre um ponto e outro, os encontros com aquele homem santo continuaram por mais tempo do que uma criança poderia aguentar. O segredo deles parecia amassar Maria como um daqueles gigantescos tornos usados nas indústrias siderúrgicas fazem com o material mais resistente. Lenta mas constantemente esmagando qualquer tipo de ferro até se tornar um bloco disforme de alguma outra coisa. Depois daquilo, Maria havia se tornado, ou melhor, sido impelida a se transformar em alguma outra coisa da qual não conseguiria fugir pelo resto de sua vida.
Parecera, já desde o princípio de sua adolescência, que era impossível romper aquele ciclo. Tremia ao pensar que o domingo estava se aproximando. O pastor parecia brincar com a consciência da menina. Em alguns domingos optava por não partilhar com ela daquele segredo. Em outros, a chamava para aquela que seria a primeira senzala com a qual se veria obrigada a ser confrontada. Como não sabia quando seria convocada ou não, Maria mal conseguia dormir na noite de Sábado. Inventava, para escapar ao seu infortúnio, toda a sorte de desculpas para a sua mãe; diarreia, vômitos, enxaquecas e toda a sorte de males que carecem de meios eficazes de comprovação. Nada convencia aquela mulher que, nesse retorno à vida em Cristo, parecia irresolutamente decidida a salvar os seus filhos da penúria eterna.
Azar da garota. Quando se deu conta de que nenhuma doença a livraria do compromisso com a escola dominical, pensara naquilo que todo leitor deste relato imaginou que faria no lugar dela: contar à sua mãe o que estava acontecendo naquela salinha cujo odor estranho já era parte integrante de sua memória. Notem que utilizei o masculino. Só um homem poderia ter conjecturado que essas coisas são assim simples. As mulheres, e isso quem me ensinou foi Maria mesma muitos anos depois, tem sua palavra desacreditada desde que o mundo é mundo. Denunciar um homem para uma mulher poderia gerar uma série de consequências graves para ela.
A primeira é que Givaldo não era um homem qualquer, mas além de tudo, um homem de Deus. Mesmo que sua mãe acreditasse que os encontros fossem mesmo pecaminosos, provavelmente atribuiria o pecado à menina. Falaria alguma coisa da malícia que toda mulher tem para levar mesmo o mais santo dos homens ao caminho da perdição. A segunda é o fato de que o pastor parecia imbatível. Sua oratória parecia capaz de convencer as pessoas sobre literalmente qualquer coisa. Para Maria, como me confessara muitos anos depois, se ela contasse aquilo para a mãe, certamente Givaldo a convenceria de que a menina era louca, estava possuída ou, no pior dos cenários, ambos.
A salvação de sua alma não era uma preocupação tão grande. Cedo para uma menina de 11 ou 12 anos, Maria percebera um paradoxo da ética cristã: fosse Deus um ser de amor, jamais permitira que Givaldo a tocasse daquele jeito. Não era dos mortos e de Deus que tinha medo, mas dos vivos que erigiam o mundo em nome deles. Dessa gente cujo o espírito é feito de desejo e maldade. Revoltara-se, então, antes contra Deus por permitir que algo assim acontecesse logo a ela, mas depois aceitara o fato de que talvez simplesmente não houvesse Deus e muito menos a possibilidade de se salvar.
Estava decidida que aquilo não poderia continuar. Convencida de que contar a um adulto só lhe traria mais problemas, decidiu então confrontar o ódio que sentia pelo pastor. Sonhara algumas vezes que acordava no domingo de manhã, comia o pão dormido que a mãe trazia da casa dos patrões na noite anterior com o café bem quente, do jeito que sempre gostara, molhando o pão no café para ajudar a descer aquele pão duro. Oferecia-se à mãe para lavar a louça no lugar do irmão mais novo. Limpava tudo lentamente e secava cuidadosamente cada artefato da já velha louça.
A última peça era a faca que utilizavam para cortar o pão. Daquelas bem longas, com serra e uma ponta bem afiadas, capazes de perfurar o pão duro e o intestino de uma pessoa. Ao invés de ir para a gaveta como o resto da louça, a faca era cuidadosamente guardada por baixo de uma camisa larga que Maria tinha, presa à cintura de sua calça jeans. Escondia-a no estrado da sua cama até a hora de ir para a escola, quando colocava-a de volta de baixo da blusa para que ninguém percebesse sua intenção. Nesse momento, sentia um prazer elétrico correr pelo seu corpo. Ficava arrepiada, sentindo um leve calor na base das costas. Assistiu a aula, que passou como um borrão sem sentido em meio à euforia que tomava conta da menina.
Givaldo levantara-se. Com aquela postura sempre ereta mandara Maria vir até a sala sem proferir nenhuma palavra sequer. A menina atravessara a porta que separava a igreja daquele inferno. O pastor encostou a porta lentamente, como sempre, sem conhecer o destino que o aguardava. Logo que girou a pequena chave de metal que os trancava do lado de dentro, sentiu algo cutucar as suas costas , arranhando-o. Antes de se virar para conferir do que se tratava, Maria tomava a dianteira dizendo:
- Você vai ficar parado bem aí... - falou enquanto encarava as costas daquele homem que tinha mais do que o dobro do seu tamanho. Com sua voz sempre passiva e firme, o pastor tentou saber o que estava acontecendo.
- Mas o que é isso minha filha? - disse se dando conta do que Maria apontava para as suas costas naquele momento. Sua expressão não se modificou. Era impressionante como aquele homem era capaz de manter a tranquilidade mesmo nas circunstâncias mais improváveis. Maria, por sua vez, não pareceu sequer ter ouvido a pergunta. Com a voz trêmula, falou bem baixinho.
- Se você não parar com essa merda, eu juro por Deus que eu vou matar você - afirmou.
Nesse momento pressionou a faca contra as costas de Givaldo que sentiu a lâmina cortá-lo o suficiente para rasgar a sua blusa de linho branca. Maria emendou.
- Se você me chamar nessa sala de novo, em qualquer dia, e se contar pra minha mãe, você já sabe." - e concluiu sem deixar o pastor sequer esboçar uma reação
- Agora abre essa porta devagar que eu quero sair. - O pastor obedeceu.
Maria, ao sair da sala e ver a igreja vazia como sempre, guardou a faca e saiu andando calmamente. Sentia as pernas tremerem fortemente, como se sofresse de mal de Parkinson precoce. Ao sair da igreja, o pânico tomou conta da menina. Saberia que teria que voltar lá para o culto da noite e para as outras reuniões da escola dominical. Achara, enquanto caminhava de volta para casa, que havia cometido um grave erro. Quando retornou à igreja de noite, o culto pareceu transcorrer normalmente. Viu ainda sua mãe pedir a benção a Givaldo e sentiu, uma vez mais, o gosto metálico que acompanha o medo em seu estado bruto.
Foram para casa e naquela noite Maria dormiu sem sonhar com nada específico. Um sono tranquilo. A semana passou voando, entre a escola, fazer os deveres de casa e cuidar do irmão mais novo. Quando foi chegando o sábado, a menina se preparava para sofrer o mesmo de sempre. No domingo, pela manhã, a mãe informara que não iriam à escola dominical naquela tarde porque ela tinha um compromisso que duraria o dia todo. Graças a Deus, pensava Maria, sua mãe voltara finalmente à vida mundana.
Naquele momento, abriu um sorriso e pensou que às vezes os sonhos se tornam reais.
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A solução radical
Historia CortaConjunto de pequenos contos distópicos narrados por um sujeito qualquer sobre um governo recentemente eleito que decide adotar uma política radical para a solução de uma crise contínua em um país não muito distante daqui.