Esse tipo de pergunta pareceria ingênua a um narrador mais experimentado. Vários tipos de pessoas fariam essas coisas, bem como muitas outras que mesmo a mais aguçada imaginação ousaria propor. As veleidades humanas normalmente se manifestam antes na forma de atos despretensiosamente ardilosos cuja essência é a maldade. Maria conheceria isso na própria pele retinta.
Nunca me pareceu tarefa simples escrever essa história. Seja porque talvez o relato do que estejamos vivendo não seja factível ou porque para quem está confortavelmente sentado em um portentoso trono de passado, imaginar que as coisas possam desandar no futuro próximo, no tempo de uma ou duas gerações, possa soar absurdo.
Para a criança que foi Maria, conjecturar assombro maior do que uma vida permeada por um mosaico de sofrimentos terrenos haveria de parecer alarmismo. Recordava-se quando, por volta dos 6 ou 7 anos, o governo anunciara o fim do subsídio para famílias em situação de miséria. Naquela época, o Bolsa-família representava algo como 2% dos gastos do governo federal, mas a situação era tão colossalmente drástica que o Partido de Centro-direita no poder decidira por suspender momentaneamente o benefício, alegando impossibilidade de cumprir com os pagamentos.
Ali Maria conhecera a fome. Só quem já sentiu a dor seca na barriga sabe o que é padecer da fome. Uma dor que de tão intensa parece gritar no seu ouvido; nenhuma criança deveria poder explicar o que é a necessidade. Pelo menos não pela experiência da dor. Lembrava-se com carinho de um dos primeiros livros que lera, o quarto de despejo, de uma certa escritora meio desconhecida do século anterior chamada Carolina Maria de Jesus. Uma citação lhe saltava aos olhos: "só poderiam ser políticos aqueles que conheceram diretamente a fome" que bem o sabiam Carolina e Maria, molda de forma indelével o caráter de qualquer ser humano.
Foram anos difíceis. Alguns dias eram melhores e Maria e seu irmão mais novo tinham, para além das refeições da escola, as sobras que sua mãe, diarista, trazia das casas de famílias um pouco mais abastadas como a minha. Em outros dias, era só o café e o almoço da escola. Lembro-me da postura condescendente com que meu pai tratava a mãe de Maria, cheio de penas e lamúrias ao oferecer as sobras de nosso jantar, cumprindo a caridade cristã do bom católico ao mesmo tempo em que, nas suas costas, ressaltava que a má sorte daquela pobre mulher certamente se relacionava com o fato de não ter aproveitado as oportunidades quando nova. Meu pai era daqueles que faziam o ato de caridade mais para si do que para o outro. Acho, particularmente, que assim o é todo caridoso. De toda a hipocrisia do mundo, far-se-á o lar destes gentis senhores.
Na escola, Maria aprendeu a ler com as colagens, com os livros de mulheres como ela e entendeu, até que cedo demais, que naquele mundo era matar ou morrer. Pra uma menina preta, do Jacaré, a única possibilidade de ascensão social era o estudo e o acesso ao mundo que representavam as universidades públicas brasileiras. Um clichê antigo. Mas os clichês assim o são porque de fato procedem. As universidades não foram totalmente destruídas pois representavam o sonho de jovens como eu, pertencentes a uma classe média desejosa por gozar os privilégios do Estado após pagarem caro por uma educação privada de qualidade. Do outro lado desse infeliz mundo de extremos, não acabaram com as cotas porque estavam ocupados demais dilapidando toda e qualquer política de bem-estar social sob a égide da austeridade.
Direta e efetivamente, não era possível negar as disparidades entre negros e brancos. Logicamente, os racistas utilizavam perversamente essa desigualdade para justificar as cotas como medidas para aqueles menos capazes intelectualmente. Inclusive, o atual governo em seu primeiro ano promoveu amplo estudo cujo o objetivo era justificar essa tese. Por outro lado, as cotas geravam o ressentimento necessário, somados à infinita barbárie que é a história de um país que carregou a chibata, orgulhosa e irrefletidamente, por mais de 350 anos, às atrocidades que se seguem.
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A solução radical
Historia CortaConjunto de pequenos contos distópicos narrados por um sujeito qualquer sobre um governo recentemente eleito que decide adotar uma política radical para a solução de uma crise contínua em um país não muito distante daqui.