Asfixia

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      Desperto e procuro saber onde estou, ergo minha cabeça, mas sinto uma dor horrível e levo a mão a minha testa. Pelo que parece, estou no hospital, o que significa que não consegui por um fim em minha vida. Suspiro frustrada, até que a porta ganha minha atenção e vejo August passar por ela. 

      - Eu soube sobre o acidente. – Diz ainda da porta. Ele vestia um suéter vermelho e uma calça jeans. – Eu vim sozinho. – Volta a dizer ao fechar a porta. – Ninguém estava preparado para vê-la.

      - Então por que você está aqui? – Lhe pergunto.

      - O empréstimo que você... – Ele retirou um envelope de trás das costas. – O empréstimo que você pegou foi resolvido com o banco. – Desviei meus olhos dos dele. – Nós estamos dissolvendo os ativos da empresa. Achamos também um comprador para o escritório e vamos pagar o resto vendendo nossos bens pessoais.  – Engoli seco, ele se aproxima ainda mais da cama e volta a dizer.  – O banco nos convocou para o dia 30, todos nós. Já que você é a fiadora é importante que você esteja lá Emma. – Ele coloca o envelope na estante que tem ao lado da cama.  – Emma, eu sei que o banco tomou sua casa. – Continuo sem olhar para ele. – Mas mesmo depois do que aconteceu você ainda pode viver com a gente pelo tempo que quiser. – Ele pega em meu braço.
    
Ele se afasta e vai até a porta, mas antes de sair me olha e volta a se aproximar. Então eu o olho.
      - Por favor! Esteja lá no dia 30. Ao menos uma vez, faça algo pelos outros. – Se afasta novamente e vai embora.

      Não consigo conter as lágrimas que escorriam dos meus olhos. Passo a mão limpando com raiva e me sento na cama. Retiro o acesso do meu braço, olho ao redor do quarto e meu sapato estava no canto. Calço o mesmo e vou até a porta abro e olho para a recepção, como não vejo ninguém, começo a andar depressa até que trombo em alguém e vejo a minha frente a garota da noite passada. Ela parece tão surpresa quando eu.

      - O que você está fazendo aqui? – Dissemos juntas. Assim como eu, ela vestia a roupa do hospital e o pescoço enfaixado.

      Não nos respondemos e cada uma foi para um canto tentando sair do local, mas ao tomar o rumo oposto ao dela vejo enfermeiros vindo em minha direção, dou meia volta e vejo ela saindo pela saída de emergência. A pequena portinha não me deixou passar com facilidade. A saída dava para uma escada de metal e só aí percebi o quão alto estava e o vento frio me fez tremer.

      Começo a descer as escadas e me deparo com a mesma garota, ela olha pra trás e revira os olhos.

      - Por Deus, você está me seguindo? – Volta de descer as escadas.

      - O que posso fazer se você está tão atraente? – Respondo irônica, seguindo-a. – O que aconteceu com você? – Pergunto curiosa.

      - Eu tentei pular da ponte depois que você e a polícia foram embora e caí.

      - E isso foi tudo que aconteceu com você? – Ela solta um muxoxo para de andar e me olha.

      - Eu caí NA ponte e não DA ponte. Eu estava muito bêbada. – E volta a descer as escadas.

      - Você realmente quer morrer? – Pergunto e mais uma vez ela para antes de descer as escadas.

      - Não, eu estava passeando. – Diz com desdém. – E quanto a você?

      - Eu tentei de novo. Pulei na frente de um carro.  – Paramos numa porta que nos impedia de sair.

      - E falhou. – Ela me falou. Não respondo, passando por ela e forçando o portão para que ele abrisse. Descemos as últimas escadas e estamos livres.

      Ela para e me olha com os braços cruzados e eu faço o mesmo.

      - Então, você vai tentar novamente? – Me pergunta.

      - Aham! Você também? – Devolvo a pergunta e ela acena.

      Andamos lado a lado por um beco e quando se aproxima involuntariamente de mim eu me afasto e ela faz o mesmo. O frio me torturando e ela não está diferente, passa uma mão na outra e nos braços para se aquecer enquanto andamos.

      Parei quando chegamos ao final do beco para ver se não está passando alguém que pudesse nos levar de volta ao hospital e ela tromba em minhas costas.

      - O que você está fazendo? Apenas... – Não a deixo terminar de falar e tapo sua boca com minha mão e a encosto na parede.

      - Shiiii!!! – Ela se debate contra mim tentando falar. Dois policiais passavam no momento, mas não nos viram. – Eles vão pensar que estamos fugindo de um hospício com essas roupas. – Digo ainda tapando sua boca, ela me olha dentro dos olhos e só aí retiro minha mão.  – Só mais uma coisa, eu não estou interessada em você de forma alguma. Entenda isso desde já.

      - Eu não sei se devo ficar aliviada ou me perguntar porque você não está interessada em mim. – Olho pra cima pedindo a Deus que me dê paciência. – Não que eu queira que você esteja interessada em mim. – Respiro fundo e saio andando a sua frente.

      - Não sei o que ainda estou fazendo com você.
      - Ei! – Me chama. – Essas roupas de hospital são tão engraçadas na parte de trás, não? – Olho pra parte de trás e vejo que o tecido era aberto na parte de trás, mas é fechado por alguns botões.

      - Que seja! – Digo sem dar muita importância.
      - Eu sou Regina. – Estende a mão.

      - Emma. – Digo sem retribuir o aperto de mão e ela recolhe a mesma sem graça

      - Então, qual é o seu plano?

      - Ouça! Por favor, me deixe sozinha!

      - Quer saber?! Você é muito rude! Mas, eu vou perguntar... – Ela para em minha frente. – Podemos fazer juntas?

      - Isso não é um jogo em dupla para que possamos fazer juntas. – Digo alto e já sem paciência.

      - Estou dizendo isso porque eu quero ter certeza que vai acontecer. Tenho sido muito dependente na vida. – Respira e desvia os olhos dos meus. – Eu sempre precisei de um empurrão. Então, por favor!

      - Okay! Isso é estranho, mas tudo bem. – Ela volta a me olhar. – Como você quer fazer?

      - Nós podemos ir para minha casa.

      - O que?

      - Eu não estou convidando você para nada demais. – Diz alto, ela parece rever o que disse e coça a cabeça. – Que seja! Nós podemos ir para sua casa também.

      - Eu não tenho casa. – Ela iria falar mais alguma coisa, mas ouvimos sons de sirenes, ela sai correndo e faço o mesmo.

      - Aqui, aqui! – exclama ao chegamos a um prédio, onde tinha uma escada de metal. Ela pula para alcançar a ponta da escada abaixando-a em seguida. – Venha, vamos subir!

      - Assim? – Olho para ela.

      - Eu perdi as chaves da minha casa, então tenho que entrar pela janela.

      - Está de brincadeira? – Ela cruza os braços.

      - Eu tenho cara de quem está brincando? Anda logo, está frio.

      - Depois de você. – Digo.

      - Nem pensar! Você é muito esperta. Eu sei porque você quer subir depois de mim. – Ela se afasta colocando as mãos na roupa do hospital.

      - Me poupe! – Reviro os olhos. – Ela me empurra para que eu subisse as escadas. Não sei em que andar estávamos, mas ela se abaixou para abrir uma janela.

      - Eu moro aqui. – Entrou pela janela, mas ficou emperrada por ter aberto pouco, vejo-a se debater para tentar entrar e rio. – Você pode me empurrar? – Grita da parte de dentro do apartamento.

      - Com prazer! – Pego suas pernas e a empurro sem dó, ouço seu gemido quando ela cai no chão.

      - Sua bruta! –Ela falou. Não respondi, apenas abri mais a janela para passar e quando tentei me equilibrar acabei caindo no chão. Castigo penso.

      Me levanto e olho a casa que está uma verdadeira zona, roupas por todo lugar, som ligado, papéis espalhados e caixas.

      - Luzes acesas, música tocando... – Ela diz andando pelo local. – Que diabos! Eu odeio essa música! – Ela retira as botas que usava e desliga a música. Olho a minha frente e vejo um sofá, mas o mesmo tinha roupas em cima, pego elas e Regina chama minha atenção.

      - Desculpe-me! – A olho – O que você está fazendo?

      - Arranjando lugar para sentar. – Ela vem até mim e ri irônica.

      - Não precisa ficar tão confortável. – Toma as coisas de minha mão. – Você não está aqui para ficar. – Ela faz um bico e joga tudo de novo no sofá.

      - Vamos fazer o que temos que fazer. – Passo a mão em minha testa.

      - Okay! – Ela joga os cabelos para trás e olha como se procurasse alguma coisa. – Eu já sei! – Corre um pouco. – Nós temos cordas. – Pega uma corda que precisa ser um cortina. – Podemos nos enfocar.

      - Estas vigas não aguentarão o nosso peso. – Digo ao olhar para cima e ver onde estava preso.

      - Quer saber, você é... – Não a deixo terminar de falar.

      - Você tem plástico filme?

      - O que nós vamos fazer com plástico filme?

      - Você tem? – Refaço a pergunta.

      - Acho que sim. – Vai até a cozinha e volta com um tubo de plástico filme. – Aqui. – Me entrega.

      - Asfixia.

      - As... O quê?

      - Sufocamento. – Ela solta um ‘Oh!’ quase inaudível. – Isto é muito eficaz. – Retiro a ponta no plástico. – Você primeiro! Pega isso e enrola firme no meu rosto e depois eu enrolo o em volta do seu. Então, quando o oxigênio não chegar ao nosso cérebro, em poucos minutos ele vai parar de funcionar. Vamos começar! – Lhe entrego.

      - Vamos! – Me viro de costas para Regina que começa a enrolar o plástico em meu rosto. – Seu rosto é muito longo. – Ela roda em torno de meu corpo cobrindo-o. Depois de umas seis ou sete voltas ela para. – Você consegue respirar? – Nego com a cabeça, na verdade eu não conseguia nem ver direito.

      Ela me entrega o tubo, mas perco a ponta por não conseguir ver direito. Sem conseguir respirar fico agoniada e bato nas coisas que via pela frente, Regina percebe e vem até mim tentando tirar o plástico de meu rosto.

      - Oh meu Deus! Você falhou. – Ela consegue retirar metade o que me fez respirar pela boca. – Você vai morrer e eu serei a assassina. – Ela me empurra depois que retirou todo o plástico.

      - É culpa minha? Você cobriu meus olhos, como eu poderia ver?

      - Você não podia ter dito antes? – Grita. – Se você tivesse morrido, eu teria sido presa. – Continuo ofegante e aliviada por estar conseguindo respirar. – Isso não vai funcionar desse jeito. – Me dá as costas. – Tenho outra ideia e essa com certeza vai funcionar. – Bate no balcão.

      Ela correu até a cozinha e abriu o gás, eu fechei a janela e as brechas que tinham no apartamento, assim como a porta do banheiro e a janela da cozinha.  Ela pega a caixa de fósforo abre e só tinha três palitos.

      - Só tem três. – Me diz como se eu não tivesse visto. – Ok, vamos lá. – Risca o primeiro palito, mas não consegue e acaba quebrando-o. Ela pega o outro e acontece a mesma coisa, ela iria pegar o terceiro e último, mas eu não deixo.

      - Eu posso? – Ela acena que sim e na primeira tentativa consigo aceder o fósforo, mas diferente do que planejamos nada explodiu.

      - Papel!– Dissemos juntas e Regina corre atrás das folhas. Ela trás um e passo o palito no mesmo, mas ao ler o que tinha no papel minha vontade é de matá-la.

      - Regina, quando foi a última vez que você pagou a conta? – Ela para de correr pela casa.

      - Que conta? – Me pergunta com mais papéis nas mãos.

      - Sua conta de gás! – Grito e jogo o papel em chamas no chão apagando o pé. – Sua conta de gás foi cortada há dois meses.

      - Eu nunca cozinhei, como eu iria saber? – Saio de perto dela e vou até a janela.

      - Olha... – Me viro pra ela. – Eu não sei se você pensa que isso é uma piada, mas para mim não é. Se você se apoderou de mim só para se livrar de sua solidão, então vá procurar alguém que esteja pra cima. – Digo tudo gritando. – Vá a algum bar, tenho certeza que vai encontrar alguém lá. Mas me deixe sozinha! – Vejo seus olhos marejados, mas não ligo e lhe dou as costas. – Olha, eu... Eu sinto muito. – Ela suspira alto e frustrada, ficamos em silêncio por longos minutos e ela diz.

      - Eu acho que sei porque isso está acontecendo. – Ela se aproxima de mim. – Ontem à noite nos encontramos na ponte, nós duas. Mas a guarda costeira apareceu, nós duas tentamos separadamente mas falhamos. – Ela vai até a janela onde eu estava e continua a dizer. – Então, nos reencontramos no hospital, e decidimos nos suicidar juntas. Viemos para casa e tentamos duas vezes, mas falhamos novamente. Tantas tentativas num só dia e todas falharam.  – Me olha. – Por quê?  - Volta a se aproximar. – Você acredita em sinais?

      - Que besteira é essa Regina? É você que não quer morrer.

      - Eu tentei tanto quanto você, Emma. Talvez eu ou você tenhamos algo para fazer na vida? – Veio a minha mente o que August tinha me dito hoje cedo no hospital.

      ‘O banco nos convocou no dia 30.’

      ‘Pelo menos uma vez... Faça algo pelos outros.’

      - Ok, está bem! – Sou tirada dos meus pensamentos quando ela volta a falar. – Então, explique-me por que ainda estamos vivas.

      ‘Já que você é a fiadora é muito importante que você esteja lá  Emma.’

      - Isso é besteira! – Nego com a cabeça. – É um absurdo! Eu não acredito em nada disso.

      - Talvez... talvez você tenha razão. – Suspira. – Vamos tentar de novo, vamos fazer do seu jeito. E desta vez, vamos fazer cuidadosamente. – Diz e então eu pego o plástico filme em cima da bancada.

      Começo a enrolar seu rosto com o plástico, não passo muito pelos seus olhos,  logo chega minha vez lhe entrego o tubo e ela começa a fazer o mesmo comigo, seguro a ponta para que não saia do lugar e depois de três voltas ela para em minha frente com a ponta do plástico que tinha acabado. Nos olhamos e tento tirar tudo que estava em seu rosto, pois Regina se encontrava agoniada pela falta de ar, mas logo consigo retirar.

      Vou até sua janela que me dá a visão da ponte onde na noite passada tentamos nos jogar ela para ao meu lado leva as mãos a boca e nega com a cabeça.

       - Eu estou te dizendo Emma. Tantos sinais, deve haver alguma razão, alguma coisa que está nos impedindo.  Será que devemos esperar algum tempo? Dois dias, quatro?

      - Que dia é hoje?

      - Sete, não, oito de novembro...

      - Onze de Dezembro.

      - Sim, onze de Dezembro.

      - Então trinta e um de Dezembro.

      - Temos então, onze, doze, treze, quatorze...- Começa a contar nos dedos.

      - Vinte dias. – Ela volta a contar e eu volta a repetir. – São vinte dias.

      - Certo, então trinta e um de Dezembro. – Então ela me olha.

      - Na noite do ano novo?

      - Na noite do ano novo! – Afirmo, ela se vira para a janela juntamente comigo. – À meia noite do ano novo, nós pularemos da ponte.

      - Isto é um pacto? – Me estende a mão.

      - Mas o que faremos nestes vinte dias? – Ela recolhe a mão.

      - Coisas para fazer antes de morrer. Todo mundo fala das coisas que querem fazer antes de morrer, mas acabam não fazendo nada. Podemos fazer qualquer coisa, nos divertir, sermos espontâneas, verdadeiras. Todo mundo quer desfrutar da vida. Nós faremos para depois morrer.

      - Não, isso tudo é bobagem! Não posso fazer isso. – Saio de perto dela e vou em direção à porta do apartamento, saio do mesmo e desço as escadas o mais rápido possível.

      Lágrimas escorriam de meus olhos por estar frustrada, triste e querendo morrer. Chego em uma praça em frente ao prédio de Regina e me sento num banco olho para um lado e outro e só aí vejo que não tenho para onde ir.

      ‘Você não pode ser uma boa filha  nem um boa amiga'

      ‘Emma, acabou! Isso tudo aconteceu muito rápido.’

      ‘Você estava sempre com pressa de tornar-se grande, não estava?  Você queria ganhar todas as corridas.’

      As lembranças voltam com tudo a minha mente, abaixo a cabeça e desabo a chorar, arrependida. De repente, sinto uma mão em meu ombro e logo levanto a cabeça, Regina tinha sentado ao meu lado e me olha de forma acolhedora.

      Ouvimos o bater do sino na capela à nossa frente e ainda tinha um relógio que contava os dias e a hora que restavam para o ano novo e na parte superior tinha escrito.

      “Apenas uma vida bem vivida para os outros é uma vida que vale a pena. – Einstein” 

      20 dias, 08 horas, 25 minutos e 26 segundos.

      - Então, eu acho que na noite de ano novo. – Digo.
      - Sim, eu acho! – Ela me responde.

      Se não consegue ver o seu destino, feche os olhos por um momento.

      Voltamos para casa já que era noite e estávamos cansadas, ela me indica o sofá e me deito, mas por ser pequeno demais meus pés ficam para fora.
     
     Você muda o seu destino. Tenha coragem e siga em frente.

      Mesmo assim consigo pegar no sono, mas sou desperta por Regina me balançando, olho-a sem entender e ela revira os olhos.

      - Vem pra cama antes que eu mude de ideia. – Mesmo sem querer ela sorri e eu faço o mesmo. Deitamos de lados opostos e me cubro com o edredom que ela havia me dado. Logo, volto a pegar no sono, sem saber o que me aguardava no dia seguinte.

      Você não percebe que Deus está ao seu redor.

Uma Vida em Vinte DiasOnde histórias criam vida. Descubra agora