Capítulo 10

20 2 8
                                    

Phyllis corria de um lado para o outro, quase fazendo círculos no jardim, choramingando e parando algumas vezes para bater o pé. Ela parou ao ver que Shammock, Kallinda e Flynn aproximavam-se, as bochechas vermelhas. Mexeu em uma de suas tranças, inquieta.

— Avaris está roubando de novo! — ela bateu o pezinho, a voz embargada. Kallinda deu um profundo suspiro para a menina de seis anos que a encarava apelativa.

— Não estou! Mentirosa. — o irmão apenas dois anos mais velho que ela surgiu de sua invisibilidade. A pequena virou-se indignada.

— Você prometeu que não ia fazer isso!

— Eu prometi que não ia atravessar coisas! — o menino rebateu. Fitou Kallinda com seus olhos heterocromáticos, um azul e outro amarelo. — Bee, ela tá mentindo!

— Você que é o mentiroso!

— Ok, já chega vocês dois. — Kallinda interrompeu e os dois calaram-se imediatamente. Phyllis cruzou os braços, birrenta. — Temos trabalho a fazer.

Os irmãos se entreolharam, a discussão pela brincadeira dispersou-se de imediato. Eles sorriram animados um para o outro, os olhinhos brilhantes. Avaris puxou as laterais do chapéu de retalhos que usava ao dar pulinhos para Kallinda. Flynn revirou os olhos.

— Sério, sério?

— Eba!

— Certo, fique com as crianças, Bee. Eu e Flynn vamos procurar Drivière. Explique a eles o plano. — Shammock finalizou. Flynn respirou aliviado, pois não tinha paciência para crianças.

O homem caminhou com o jovem seguindo-o de perto, carregando o longo machado apoiado no ombro, até um casebre no pátio relativamente simples. As paredes de tábuas de madeira não tinham nada de especial, nem em qualidade, nem em aparência. Os poucos móveis que havia ali eram parcamente ou nada usados, por isto, apesar de parecerem novos, estavam empoeirados.

Shammock dirigiu-se de imediato à pequena porta entreaberta que levava ao porão. Desceu as escadas iluminadas por luzes flamejantes que flutuavam como pequenos sóis nas paredes ao lado, acompanhado por Flynn que o seguia em silêncio. Ao fim da escadaria jazia um laboratório extremamente limpo, sem um traço do desleixo do cômodo acima, com candelabros ornamentados e lustres pomposos funcionais, muito bem conservados. Havia longas mesas com potes contendo pedaços de animais, vísceras, bebês e até adultos, livros e mais livros, prateleiras com pastas, arquivos. Flynn lançou um olhar para as duas mesas que carregavam alguns corpos ressecados, desidratados, murchos, sem suas línguas ou olhos. Os dedos, decepados na falange com precisão, jaziam em sua forma natural em potinhos com um líquido azulado ao lado de cada corpo, junto dos olhos e línguas. O símbolo alquímico em volta de cada corpo era feito com dois litros de sangue dos próprios corpos. Passaram indiferentes, como se fossem mais dos objetos esquisitos que compunham o local.

Em uma mesinha pequena, ao fundo, estava um homem costurando o que parecia ser um globo ocular em uma peça de roupa. As luvas, embebidas em sangue fresco, informavam a Shammock que a matéria prima a ser usada fora removida recentemente de sua fonte. Cogitou ser um dos olhos milimetricamente separados dos defuntos.

A luminária, preguiçosamente encurvada para iluminar as longas pinças que Lawrence segurava em mãos firmes, estava tão próxima de seu rosto que escondia os olhos do homem atrás do reflexo nos óculos. O livro de alquimia ao lado, aberto na página trezentos e oito, indicava um procedimento de ritual com runas antigas e pedaços de corpos para uma suposta poção para lagartos-rosa-de-juba. Flynn deu uma olhada e franziu o cenho ao baixar seu machado.

— Drivière, que porra é essa?

Lawrence parou o ajuntamento que estava fazendo, afastou-se lentamente endireitando a coluna, deixou com calma as pinças de lado e ergueu os olhos cinzentos de olheiras e pálpebras cansadas para o jovem.

— Desculpe, não ouvi vocês entrando. — ele sorriu, tirando as luvas para coçar os cabelos mal cuidados e já grisalhos, apesar da pouca idade.

— Já almoçou, Doutor? — Shammock perguntou, casual. Lawrence ergueu as sobrancelhas, pensativo.

— Almoço?

— Aposto que nem sabe que dia é hoje. — Flynn riu, mexendo em algo que parecia conter fios de cabelo e nervos desidratados, pendurado numa prateleira acima da mesinha.

— Hm. — Lawrence baixou o olhar, pensando um pouco. — É algum feriado importante? — Flynn riu mais uma vez.

— Não. — respondeu o mais velho, levando a mão em direção à cigarreira. — Mas recebemos uma carta hoje.

— Que bom. Fico feliz por vocês. — Lawrence disse, a voz monótona ao piscar para Shammock sem entender onde ele queria chegar.

— E com razão. — Flynn sorriu de canto e apertou os olhos para o homem sentado, apoiando-se na mesa com uma mão para aproximar-se do outro. — Por que não larga esses brinquedinhos idiotas de resto de gente? Temos coisas melhores pra fazer. — Lawrence deu um suspiro cansado. Piscou devagar para Flynn e, como que se rendendo ao sorriso incitador do rapaz, levantou-se.

— Kuorin nos mandou fazer umas coisas. — Shammock batucou os dedos no paletó, no local do bolso interno que continha os charutos. Lawrence semicerrou os olhos observando o comportamento do fumante.

— Ele sempre manda. — o homem de ombros baixos replicou. — É isso que ele faz, não é?

— Está impaciente, Doutor? — o mais velho sorriu. Lawrence era mais alto que ele, porém, sua aparência dava-lhe um ar de exaustão e cansaço; sua voz e sobrancelhas mansas o faziam parecer indefeso. Seu tom monótono era quase submisso em comparação ao tom incisivo do outro, que sempre mantinha o peito estufado e tinha uns quilos a mais do que seria o ideal para sua altura. Além disso, Lawrence não era Doutor há muitos anos. Começou sua carreira trabalhando em uma pequena funerária de Allura, aos dezessete anos e, aos dezenove, já era assistente geral do gerente, tendo mais acesso que os outros funcionários. Ficou responsável por muitas coisas práticas com os defuntos. Quando, por fim, seu equilíbrio psicológico fora colocado à prova e ele foi pego destroçando defuntos, mexendo em vísceras, entre outras coisas; tudo ao mesmo tempo. Dessa forma, é claro, acabou por ser despejado e denunciado. No entanto, foi aí que sua carreira como serial killer começou.

— Não, mas vejo que o senhor está, senhor Shammock. — Lawrence apontou para a mão do homem, pousada no paletó.

— Sim, por favor. Subamos, não aguento este seu ninho. — ele torceu o nariz. Lawrence tirou seu jaleco, largando-o displicentemente no encosto da cadeira em que estava sentado, passou pelos dois a passos pesados e, ao parar, ergueu o braço, sinalizando para que seguissem à frente. Os homens saíram para a ala empoeirada e seguiram até o jardim para Shammock fumar mais um charuto.

Ao fim da explicação de Shammock sobre o conteúdo da carta, Lawrence ajeitou seus óculos no lugar e inspirou profundamente, ponderando sobre as falhas do plano. Ele tirou um lenço do bolso no peito da camisa e secou as mãos suadas, percebendo que estava levemente trêmulo.

— O plano é um pouco vago, não acha?

— Há. — Flynn balançou o machado em direção a Lawrence, que o olhou inexpressivo. — Então faça melhor! Nosso trabalho não é dar uma nota pro plano dos outros, é executar em troca da porra da nossa liberdade. Né? — olhou apelativo para Shammock que soltou a fumaça da tragada, dando de ombros.

— Somos o executivo, de fato. E o plano é simples e objetivo. Acredito que não teremos problemas com o alvo.

— Vocês só podem estar fora de si.

— Você é que come defuntos aqui. — Flynn riu. Lawrence corou.

— Bem... você também. — ele tentou responder indiferente, socando o lenço no bolso da calça de qualquer jeito.

— Chega vocês dois.Kallinda já está preparando as crianças. Vocês preparam os convites. Vamos teruma grande festa e é bom que a apresentação seja de matar. — ele sorriu, com o charuto entre os dentes.

AlluraOnde histórias criam vida. Descubra agora