Lívia

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Minha rotina consiste basicamente em acordar, comer e trabalhar. Houve um tempo que eu era uma pessoa diferente, sorridente...feliz. Mas o que posso dizer? A vida muda as pessoas e me mudou também. Hoje não é muito diferente de todos os outros dias. A não ser que hoje vou receber meu mais novo estagiário. Não faço nada tão glamurouso quanto dirigir uma empresa nem nada do tipo. Sou apenas dona de uma clínica veterinária que vez ou outra recebe algum estagiário. Nunca sei nada sobre o indivíduo em questão. Eles fazem o trabalho deles, eu faço o meu e fica tudo bem.

Olho as horas no relógio de pulso. 9:37. O novo estagiário já está atrasado. Deveria ter chegado aqui trinta e sete minutos atrás e eu simplesmente odeio atrasos. Bufo de raiva, cansada de esperar. Tenho mais o que fazer. Deixando de lado a espera, volto minha atenção para a tela do computador a minha frente. Realmente, preciso contratar alguém para lidar com a burocracia, agendar consultas, fazer pedidos...essas coisas. Eu até dava conta de tudo sozinha quando comecei a clínica, há dois anos. Mas agora tenho mais clientes, mais tarefas, menos tempo. E ainda tenho que supervisionar algum estagiário estúpido que não sabe a diferença entre um bisturi e uma linha de sutura.

Reviro os olhos ao constatar que tenho uma consulta marcada para hoje, mais precisamente para daqui três minutos. Como que por mágica, surge uma garota na porta, quase uma criança ainda, não deve ter mais que 9 ou 10 anos. Ela tem consigo uma caixinha de transporte com um gato berrando a plenos pulmões no interior. Como se não bastasse isso, o animal se debate dentro da caixa, tentando sair a todo custo. A garota parece meio perdida, mas logo esboça um sorriso tímido, expondo covinhas nas bochechas coradas. De alguma forma, a garota faz eu me lembrar de mim mesma nessa idade, apesar de não ser exatamente parecida comigo. Tem olhos tão verdes que quase me pergunto se ela é capaz de ver com íris tão cristalinas, o cabelo castanho escuro está preso em um coque, as roupas um tanto quanto góticas para uma menina com rosto tão delicado.

Ela se aproxima timidamente e coloca a caixa sobre o balcão. Então diz que se chama Giullia e que veio trazer o gato, Theo, para uma consulta porque ele anda muito estranho ultimamente. Muito agressivo, ela disse, e não suporta que toquem a barriguinha amarela. Quase questiono sobre onde estão os pais dela, mas não é da minha conta. Pego a caixa no balcão e sigo para o consultório, com a Giullia atrás de mim, falando o tempo todo sobre como Theo era dócil até outro dia e que o pai dela quer se desfazer do gato porque ele anda muito agressivo.

-Papai acha que Theo está com raiva animal. Eu disse que não é verdade, ai meu tio marcou essa consulta. O Theo não tem raiva, tem?

-Vamos descobrir qual o problema do Theo, sim?

Ela faz que sim e logo ouço uma voz feminina chamando pela garota. Ela grita em resposta e a dona da voz surge na porta do consultório. É uma jovem beldade, o cabelo negro caindo em cascata emoldurando o rosto de traços finos, delicados e belos, os olhos azuis pousam na menina e depois em mim. Elas não se parecem, mas acho que deve ser a mãe da garota.

-Giullia, quantas vezes vou ter que dizer para não sair do carro sozinha?

-Desculpa, tia Elisa. Só estou preocupada com o Theo.

Tia? Bem, acho que tirei uma conclusão precipitada. A essa altura já tirei o Theo da caixa e o felino parece bem mais calmo em se ver livre. Sequer tenta sair correndo, como era de se esperar. Ao invés disso, deita de barriga para baixo na mesa metálica. Quando tento tocar a barriguinha, o gato se mostra agressivo.

-Ele é castrado? -Dirijo a pergunta para a tia da menina, que ainda parece bem irritada.

-Não. -Ela responde e arqueia a sobrancelha bem feita. Não me dou ao trabalho de explicar que alguns animais extremamente dóceis podem ficar agressivos após serem castrados, ainda mais na idade adulta.

Coração De GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora