Ragnar

66 17 110
                                    

Erick Montgomery. O nome não me diz absolutamente nada, mas o homem diante de mim se parece tanto com um garoto do meu passado. A vida é engraçada, o destino tem formas entranhas de agir. Momentos antes da chegada desse homem, eu estava decidida a superar meu passado. Então ele aparece e as lembranças vem à tona. Como seguir em frente se o passado me persegue? O homem diante de mim parece mesmo preocupado com o cachorro. Ele se aproxima do balcão, parecendo alheio a mim. Ele fala, mas não registro suas palavras. Estou de volta ao passado, quando eu era uma garotinha tola e ingênua, alguém que acreditava na bondade das pessoas. Uma adolescente com sonhos e metas, alguém que só pensava em fazer o bem. Até ser quebrada, brutalmente destruída, largada na beira de uma estrada de terra. Deixada para morrer.

—Alessia? —A voz de Erick chega aos meu ouvidos e me traz de volta ao presente. Pisco algumas vezes antes de olhar para o cachorro gigante que ele colocou sobre o balcão. O animal olha para mim, os olhos tristes e sem brilho, olhos de alguém que se rendeu, que desistiu de lutar pela própria vida. Olhar para ele é como olhar a mim mesma no espelho anos atrás.

—Você vai ficar bem, amigão. Prometo. —Afago a cabeça dele, e ele solta um ganido doloroso de se ouvir, algo tão sofrido que me faz recordar os motivos que me levaram a ser veterinária. Volto minha atenção para Erick falando usando o tom de voz mais frio, distante e impessoal que consigo. —Pode trazê-lo para o consultório, por favor?

Ele nada diz, apenas pega o enorme cão de pelagem dourada e me segue até o consultório, depositando o animal gentilmente na mesa de exames. Tão gentilmente que mais parece estar deitando um bebê no berço. O cachorro solta um gemido de dor, o que me deixa um tanto preocupada.

—Qual o nome dele? —Pergunto enquanto pego uma agulha para coleta de sangue e um aparelho de tosa para raspar o pêlo da pata de onde o sangue será coletado.

—Não sei. Não é meu. Achei ele quando ia para casa. Parece muito debilitado, então liguei para a Elisa pedindo o número de um veterinário.

—Ele está mesmo debilitado. —Com cuidado, raspo o pêlo na pata dianteira esquerda do cachorro. Ele não protesta, como era de se esperar. Apenas ergue os olhos aquosos para mim. —Está tudo bem agora, garoto.

—O que acha que ele tem? —Seu tom de voz é preocupado. Ele se importa com o bem estar do animal.

—Ainda é cedo para dizer. Na melhor das hipóteses, desnutrição severa. Vê como as patas estão trêmulas? Fraqueza, talvez. Mas também é um sintoma comum de cinomose avançada. Não saberei até sair o resultado dos exames.

O silêncio que se segue é um pouco desconcertante. Para Erick, creio, porque estou muito ocupada cuidando do cachorro. O animal não faz nada em protesto e Erick fica rondando a mesa, como se fazer isso fosse apressar as coisas. Recolho a amostra de sangue e tento alimentar o cachorro, mas ele se recusa a comer até mesmo a papinha que preparei. Okay, isso é realmente preocupante. Um cachorro desse porte deve pesar uns sessenta quilos, mais ou menos. Esse aqui está com apenas treze. Ouso me perguntar como ele resistiu por tanto tempo, mas parece que agora ele está pronto para desistir.

—Não vou deixar você desistir agora, amigão. Vamos lá, coma só um pouquinho.

Mas ele não come. Então é hora do plano B. Alimentação intravenosa, o que significa que ele vai ter que ficar internado durante um tempo. Então eu o transfiro para um leito próprio para casos de animais a serem internados e ajeito os tubos da alimentação em sua patinha. O olhar que ele me lança é de gratidão. É, amiguinho, ainda existem humanos com bom coração. Após ajeitar a medicação na veia dele, coloco a amostra de sangue em um invólucro adequado para encaminhar ao laboratório.

Há um laboratório aqui, no andar de cima. Mas não tenho ninguém para fazer a análise de tais amostras, então tenho que encaminhar para uma outra clínica e eles me mandam o resultado por email. Como hoje é sábado, só consigo entregar a amostra para eles na segunda, então a deixo guardada no refrigerador.

Coração De GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora