Coração De Gelo

Revivendo o passado

Minha cabeça dói quando acordo. Isso se dá em parte por estar de ressaca, em parte por ter chorado quase a noite inteira. Não bebi muito, juro que não. Mas sempre fui fraca para bebida, mesmo na fase mais rebelde da minha vida, dos doze aos dezesseis anos. O que me acordou foi o latido estridente de Gigante. Saio do sofá ainda meio cambaleante, usando a mesma roupa que usei na festa. Não devo estar com uma cara muito boa e nem me dou ao trabalho de me olhar no espelho só para constatar o óbvio. Subo as escadas e abro a porta do terraço. Os cachorros passam correndo por mim, quase me derrubando e se postrando na porta da frente, um misto de latidos e ganidos, com um arranhar de patas no piso. Querem sair e abro para eles. É hora do passeio matinal. Vão dar uma volta pelo bairro, fazer as necessidades e voltar. É quase um ritual.

Deixo a porta aberta e vou para a cozinha, sendo recebida por três pares de olhos que me fitam de cima da mesa esperando pelo café da manhã. Reabasteço as tigelas dos gatos e eles descem da mesa, indo para as tigelas. A Sunny para a verde, o Hermie para a azul e o Mark para a rosa. Ele cisma que a tigela rosa é dele.

Gatos e cachorros alimentados e com água limpa mas tigelas, agora posso cuidar de mim. Faço café forte e sem açúcar. É bom para ressaca, meu pai diz. Bem, costumava funcionar quando eu era mais nova, espero que funcione agora. Bebo dois copos de uma vez só, o segundo acompanhado de duas aspirinas e alguns biscoitos. Não sinto fome, então isso vai ser suficiente. Olho as horas. 6:37 da manhã. Tenho tempo antes de ir para a clínica. Não que eu abra a clínica dia de sábado, mas hoje sinto que preciso me distrair. Pessoas normais se distraem saindo com os amigos ou passando tempo com a família. Bom, eu não sou uma pessoa normal e meu método de distração é enfiar a cara no trabalho. Além do mais, minha melhor e única amiga deve estar muito ocupada com o namorado e minha família...mamãe está morta e não falo com meu pai faz alguns meses.

Dou de ombros enquanto sigo para o meu quarto. Deus, estou horrível, penso enquanto me olho no espelho. Meu cabelo parece um ninho de passarinho, os olhos vermelhos e inchados como se eu tivesse passado a noite me drogando. Tudo bem assim mesmo, não planejo sair por ai tentando seduzir um homem, então não preciso estar apresentável. Preciso de um banho.

A porta da frente ainda está aberta e não posso fechar antes da volta dos cachorros. Enquanto espero, escolho que roupa usar. Jeans e camiseta, é meio que meu uniforme. Basicamente a roupa que uso todos os dias, tanto no trabalho quanto fora dele. Não há motivos para ser diferente hoje. Jogo a roupa sobre a cama no mesmo instante em que a Bella pula nas minhas pernas, feliz da vida. Ela sempre é a primeira a voltar, seguida por Afrodite e Zeus, a dupla dinâmica. Gigante é o último, sempre.

Afago a cabeçorra da Bella e ela coloca a língua gigante para fora, abanando o rabo. Depois corre em círculos pelo quarto antes de pegar seu ossinho e se aquietar no tapete do quarto, o tapete do Gigante. Já posso até ver ele brigando quando voltar. Só divide as coisas dele com a Afrodite.

A dupla dinâmica entra correndo no quarto, pulando e mordendo um ao outro, arfando cansados. Todo dia é a mesma coisa. Eles saem e depois entram no quarto para dizer que estão de volta. Bella deita no tapete de Gigante e ele briga com ela. Depois os gatos surgem para brigar com Zeus e saem correndo quando ele late. Essa manhã não é diferente. Gigante aparece com seu corpinho redondo e já parte para cima da Bella todo agressivo. Ela se limita a pegar o osso e sumir porta afora. Saio atrás dela para fechar a porta, mas Lívia aparece no jardim, acenando feliz. Aceno de volta e espero ela entrar antes de fechar a porta.

—Bonjour, mademoiselle. Se divertiu ontem?

—Bom dia, Lívia. E não. —Minto, não quero que ela saiba que me diverti fazendo um tour pela casa do André. —Tá fazendo o que aqui? Não devia estar com o Fernando?