Conhecendo o Gigante

200 54 361
                                    

Assim que saio do banho, me enrolo em uma toalha e saio descalça do banheiro porque adoro a sensação do piso gelado em meus pés quentes e molhados. De alguma forma isso me faz bem. Três bolas de pêlo passam correndo por minhas pernas, quase me derrubando. Trata-se do pega pega noturno dos meus gatos. Ao passar pela sala, dois dos meus cães estão ocupados em uma luta livre, algum tipo de vale tudo entre o Zeus e a Afrodite, dois vira latas marrom chocolate que adotei em uma ONG protetora dos animais há dois anos. Eram filhotes na época.

A outra cadela, Bella, está muito entretida roendo um osso. A história da Bella é quase tão triste quanto a do cachorrinho que chegou na clínica hoje. Por fim, ao entrar no quarto, o vestido que eu planejava usar hoje está jogado no chão, todo babado e rasgado. O culpado por isso é o mais novo membro da família, o Gigante. A ironia é que Gigante é menor que os gatos, apesar de já ser adulto. Mas de todos os meus animais, é o mais carente e ciumento. Se ele sente que vou sair, dá um jeito de estragar alguma coisa. Da última vez ele conseguiu roubar um chocolate na minha bolsa e passei a noite na clínica cuidando dele por conta da intoxicação.

Ao me ver, ele abana o rabinho e vem correndo pular nas minhas pernas, todo satisfeito com sua obra de arte. Em outras circunstâncias, eu teria ralhado com ele, mas agora estou achando muita graça porque eu nem queria ir nessa festa mesmo.

—Bom trabalho, Gigante. Mas isso não vai me manter em casa.

Ele late feliz da vida e volta para cima do vestido com o intuito de terminar o trabalho que começou. Eu rio e dou graças a Deus por não ser um dos meus vestidos novos. Deixo ele terminar de roer o vestido, afinal, não há mais salvação para os restos de trapo que ele deixou ali. Escolho outra roupa. Um body branco rendado e um conjunto de calça e casaco beges, sendo a calça de cintura alta e o casaco contendo alguns botões dourados nos punhos para dar um detalhe. O cabelo eu deixo solto e nos pés uma sandália marrom de salto.

 O cabelo eu deixo solto e nos pés uma sandália marrom de salto

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Sem maquiagem, primeiro porque não sou muito fã disso. Segundo porque a intenção não é impressionar ninguém por lá, muito menos o André. Dou uma olhada em mim mesma no espelho e em Gigante ocupado com os restos do vestido de cetim lilás. Ele parece tão entretido que nem nota que estou de saída. Pego uma bolsa de mão com estampa de onça, só para colocar os documentos e o celular. Não pretendo ficar lá por muito tempo, só o suficiente para marcar presença. Tanto que devo voltar para casa a pé mesmo. Acho que isso é tudo.

É nesse momento que a porta da frente se abre. Os grunhidos de Zeus e Afrodite em sua luta de vale tudo cessa instantaneamente e posso ouvir o som das patas enormes batendo no piso enquanto correm para saudar Lívia. Ouço um arfar feliz e sei que Bella também foi receber minha amiga. Gigante larga o vestido e me encara esperando ansiosamente pela entrada de Lívia no quarto. Não, ele não vai até ela porque ficou mesmo animado com a ideia de destruir meu vestido e porque ele é um pequinês obeso e preguiçoso.

—Alessia, seus monstrinhos estão me atacando! —Ela grita da sala, mas está rindo então deixo ela se virar com a "garotada" enquanto tomo o vestido do Gigante. Ele já roeu coisa demais por hoje.

Não demora muito para que Lívia surja na porta do meu quarto usando um vestido tubinho vermelho com renda no busto, salto alto preto e o cabelo solto em uma cascata cor de palha. Está linda, mas é a Lívia, ela fica bem usando moletom e chinelos com meia. Logo que a vê, Gigante ergue seu corpo minúsculo e repleto de banhas, abana o rabinho e saltita até Lívia, esperando receber um afago e um biscoito. Claro que ela atende ao desejo do monte de banha e os outros três entram no quarto a espera de um mimo também.

 Claro que ela atende ao desejo do monte de banha e os outros três entram no quarto a espera de um mimo também

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

—Muito bem, Lívia. Vamos logo antes que eu mude de ideia.

—Hmm, pra quem não queria ir, você está um arraso. —Ela diz, jogando um último biscoito no ar para o Zeus. Reviro os olhos e chamo os cães para sair. Só os deixo dentro de casa quando estou por perto, geralmente ficam no terraço, cada um com sua casinha e sua caminha, menos o Gigante, que apesar de ter a casa e a cama, adora dividir tudo com a Afrodite.

O quarteto canino sabe que é hora de ir e seguem em fila idiana para o terraço, com Gigante liderando a trupe. Ele está comigo há apenas dois meses, mas já se sente o líder da matilha e os outros o seguem, então ele se acha o rei da cocada.
.
.
.
O táxi parou diante de uma casinha geminada pintada de branco e com janelinhas azuis. Diante da casa, um quintal/jardim pequeno, mas muito bem cuidado, rodeado por cerca de madeira branca, bem parecida com aquelas casas americanas que vemos em filmes. Aposto que nos fundos tem um gramado e uma piscina para completar o cenário idílico. Superando todas as expectativas, posso dizer que a casa de André é bem agradável, apesar do som alto e das pessoas já bêbadas pisoteando a grama imaculada.

Não quero estar nessa festa. Quero estar na minha casa, na minha cama com um balde de pipoca assistindo Netflix enquanto os gatos e Gigante dormem ao meu lado, com Afrodite e Zeus se engalfinhando no chão e Bella roendo seu osso no tapete, vez por outra erguendo os olhos para mim e abanando o rabo alegremente. Uma típica sexta a noite em minha vida. Lívia sabe que não quero estar aqui, então ela paga o motorista e me arrasta para fora do carro antes que eu mude de ideia.

Tudo bem, penso, posso ficar aqui por uns trinta minutos e depois vou embora para minha costumeira noite de sexta. Logo que passamos pelo portão de madeira, somos recebidas alegremente por Fernando, o namorado da Lívia. Correção, ela é recebida alegremente por ele e eu fico plantada ao lado dela esperando que acabem a sessão de sexo explícito ao ar livre.

Quando ela finalmente se dá conta de que ainda estou parada aqui, me olha com as orbes azuis brilhando de desjeo reprimido, talvez um pouco constrangida por essa pegação, e sei como essa noite vai acabar. Eu voltando para casa sozinha enquanto ela vai embolar os lençóis em algum lugar. Lívia me encara por alguns segundos, depois dá um sorriso maldoso e diz com cara de inocente:

—Vá dar uma volta, se enturmar. Não é pra bancar minha sombra o tempo todo.

Olha o displante dessa criatura. Esse é o mundo do Fernando e dos amigos deles, amigos esses que foram apresentados para ela, mas não para mim, exceto pelo André. Essa é a festa dele, afinal de contas. Mesmo assim, sinto-me como uma adolescente nerd no primeiro dia de aula em uma escola nova. Digo isso porque eu era uma adolescente nerd até...bem, até deixar de ser.

Não respondo nada, apenas sigo para o interior da casa. Para o caos, para o início dos meus problemas.

Coração De GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora