II. FARO

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O livro foi abandonado no banco dianteiro do carona e ninguém mais abriu a boca para mencioná-lo no restante do trajeto, mas Carrie não deixou de pensar em como Leanna lhe causava arrepios às vezes; em como detestava a sala de jantar da sogra e aqueles olhos vítreos assustadores da cabeça de lobo empalhada pendurada na parede; em como aquela casa estava sempre cheia de pessoas bem vestidas, mas que pareciam guardar segredos sórdidos; ou ainda no jeito sorrateiro que ela agia quando estava rodeada deles como se espreitasse algo. Mas ela não comentava essas coisas com Robert, eram impressões que ela não ousava dizer em voz alta.

Não tiveram dificuldade em encontrar a entrada para Wolfhill, a estrada de terra à esquerda da pista era ladeada por arbustos floridos e uma placa convidativa de boas-vindas. Faixas brancas decorativas estavam penduradas nas árvores, atravessando a trilha da entrada de um lado ao outro e Carrie ficou feliz por não ver corvos nelas. Daqui não dava para seguir de carro. Desceram e seguiram a pé e chegaram à entrada do vilarejo faltando dez minutos para o início do festival, pequenas casas de madeira no estilo medieval circundavam o que parecia ser uma capela com uma fachada triangular no meio de um vale, não havia mais do que vinte delas ali, mas o local estava abarrotado de pessoas, as ruas de terra batida eram irregulares e havia candeeiros onde habitualmente deveria haver postes e isso dava a impressão de que eles tinham atravessado um portal do tempo e havia também tendas armadas por todos os lugares com mesas e cadeiras. Uma horda vestida de branco veio recepcioná-los, eram extremamente sorridentes e solícitos e talvez fosse pelas primeiras horas de sol, mas tudo ali parecia resplandecer em um branco celestial. O branco estava presente em tudo: nas tendas, nas vestes dos moradores, que por si só traziam em sua pele um tom leitoso, nos adornos de cabeça e até mesmo nas pequenas casas de madeira rústica pintadas. Apenas frutas e flores traziam alguma cor que não fosse branco àquele lugar.

— Ela não disse que precisávamos vir de branco. — cochichou Carrie para o marido.

— Acho que serve apenas para os moradores. — respondeu Robert com outro sussurro, olhando em volta para se certificar de que estava certo.

— Sejam bem-vindos, Senhor e Senhora Mitchell. — disse uma senhora de feição afável. — Não se preocupem, Bridget nos deixou cientes de que viriam no lugar dela e de sua família.

Ela sorriu para eles e era quase impossível não sorrir de volta. Parecia feliz em vê-los sem nunca mesmo os ter visto antes.

— Me chamo Violet. É um prazer recebê-los.

— Obrigado. O prazer é nosso. Sou Robert, esta é minha esposa Carrie e minha filha Jullie.

— Oh, então esta é aniversariante do dia? — indagou Violet com empolgação.

— Sim. E essa é a Samantha. Papai esqueceu de apresentar ela. — disse Jullie, mostrando sua boneca.

— Oh, claro: a Samantha! Como pude esquecer?

— É uma linda menina assim como você, Jullie. — disse a mulher, prendendo uma margarida no cabelo de Jullie. — Quantos anos completa hoje, mocinha?

Jullie olhou para o pai e mostrou um nove meio incerto com os dedos.

— Nove?

A menina assentiu com acenos de cabeça frenéticos.

— Perfeito. — respondeu Violet com o seu sorriso viral mais uma vez. — Agora acompanhem-me, por favor.

Sem que percebesse Carrie estava sorrindo e embarcando naquela alegria profusa, Violet seguia na frente junto à horda de pessoas que misturava mulheres e homens velhos e jovens, todos riam de um jeito leve, a trilha era íngreme, mas a primavera parecia ter se antecipado ali, estava um dia agradável sem os ventos gélidos de inverno. A escarpa descia até o centro do vilarejo, que naquele dia era um formigueiro albino. Carrie teria se juntado a eles se não fosse pela figura da mulher que fez o sorriso em sua boca desaparecer numa piscada. Ela parou e deixou os outros seguirem rumo ao centro. Ficou parada com os olhos semicerrados, queria espiar de longe para ter certeza de que não estava sendo leviana, a poucos metros dali, no meio do redemoinho lácteo que ia se formando conforme mais pessoas chegavam ao centro do vilarejo, uma mulher jovem sorria para ela maliciosamente e sem nenhum pudor. Só podia ser ela; loira e com aquela boca vermelha vulgar; a mesma boca que encontrara entre as pernas de Robert. Carrie já não estava ouvindo o marido chamá-la quando apressou os passos em direção à mulher que ela tinha certeza ser Cheryl Scott. Ela não pediu licença, apenas seguiu esbarrando em quem quer que encontrasse pelo caminho, não tinha tempo para formalidades naquele momento. Era como uma formiga no açucareiro e era impossível achar o grão que queria se todos eram exatamente iguais.

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