#05 Exilado (Como Um Fantasma)
Eu sou a barata suja e deslocada de Kafka. Eu sou o André de Raduan Nassar, o desgraçado. Eu sou Caim. Eu sou o pior do pior. A preguiça que se transformou em ira.
…
Trecho de A Autobiografia Não Autorizada de P.a.m.
P.a.m. agarra Bell pela cintura e encaixa um joelho no meio de suas pernas. Desce as mãos para suas coxas e sobe até chegar ao quadril. Sente os ossinhos salientes, a pele lisa e branca como nuvens. Os olhos de Bell se reviram. As línguas se encontram como serpentes descontroladas. Precisam explodir de alguma forma. Arrastam-se pela parede do corredor de volta ao banheiro. As meninas raivosas já tinham saído. Uma indiezinha retoca o lápis de olho. Invadem como se não houvesse ninguém. A indie sai assustada. Entram no privado e fecham a porta. P.a.m. passa a mão por entre as pernas de Bell e aproveita para puxar sua calcinha para baixo. Aquela peça de algodão branco que sempre aparecia em seus sonhos mais molhados. Bell passa a mão por entre as pernas de P.a.m. e tenta abrir sua braguilha, mas não consegue. Sem parar de beijar, P.a.m. abre o botão da calça e puxa o zíper. As calças caem até os joelhos. Por um segundo ela não sabe se coloca a mão lá, ele também fica na dúvida se guia a mão dela. Então só a abraça e pressiona os corpos.
Então ela apoia a mão no peito de P.a.m. e diz:
– Você tem camisinha?
Surpresa.
Brochante.
P.a.m. é trazido de volta à realidade, a coisa que mais odeia no mundo.
– Acho que sim. – Cata os bolsos com pressa.
Bell de frente para ele, só os ombros encostados na parede, a parte de baixo do corpo inclinada para frente, o vestido levantado até a cintura. Ele se divide entre procurar desesperadamente em seu bolso e contemplar a cena.
Não tem camisinha, mas Bell tem.
– Posso ir um pouquinho sem? – Diz no tom de voz mais doce que consegue reproduzir em toda a sua vida.
Bell ri:
– Claro que não. Eu não sei por onde você tem andado, danadinho.
O fato de ter que usar camisinha já era chato, mas a insinuação ciumenta de Bell era ainda pior. Ele bufa. Mas o tesão não dá espaço para brigas. Mete os dentes na embalagem com raiva e puxa forte demais, rasgando o pacote ao meio. O preservativo pula para o alto dando voltas desesperadoras no ar. A queda naquele chão molhado e sujo era um adeus definitivo à transa. Por pura sorte, e não reflexo, estende o braço e segura o preservativo. Trás ao peito e aperta com força como se fosse um filho. Olha para seu amigo e pede desculpas por ter de colocar aquela coisa sufocante e desconfortável.
– Foi mal, companheiro.
Bell ri do comentário.
– Eu amo você. – Ela diz.
P.a.m. finge que não ouve. Só pensa em enfiar logo a camisinha. E rápido. Não se importa se Bell está excitada ou não (os meninos nunca se importam). Primeiro coloca do lado contrário. Não encaixa. Demora para perceber o erro. A calça, que estava nos joelhos, escorrega até o chão. Desvira a camisinha. Concentra-se nas etapas: A) segurar a ponta para não acumular ar e explodir, B) puxar o látex, desenrolando-o sobre o membro.
Aquilo dói. E quanto mais se atrapalha, mais difícil fica. Tenta ao máximo se concentrar, mas parece que seu amigo lá embaixo tem planos de descanso. E quanto mais P.a.m. quer, mais o corpo parece desistir.
E foi assim que aconteceu. Meio que de repente. Ele foi insistindo, insistindo, e o corpo foi desistindo, desistindo. É tudo muito estranho, às vezes parece que o amigão tem vontade própria. E tudo foi ficando mais lento e mais mole, mais mole… Ele não queria desistir. Não podia terminar assim. Era inacreditável. Com ele?!
– Relaxa… – Ela não sabe o que dizer. Sente-se culpada, e mais do que nunca se sente feia e indesejada.
P.a.m. levanta as calças e fecha o zíper. Ajeita o vestido de Bell e abre a porta do privado. Deseja com toda força não ter ninguém mais no banheiro. Anda até a pia. Não quer olhar no espelho. Abre a torneira e não faz nada, só fica olhando a água descer.
Bell ajeita a calcinha e fica pensando se deve ir atrás dele. Será que ela era tão imprestável que nem o tesão dele merecia? Olha para fora e vê P.a.m. apoiado na pia, os braços esticados, a cabeça metida entre os ombros.
Bell abraça sua cintura por trás e pousa a cabeça em seu ombro. P.a.m. se mexe afastando a cabeça da menina, ela desencosta um pouco, mas continua abraçando-o. Ficam um tempo em silêncio.
– Esquece… – Ele resmunga.
– Não tem nada demais.
– Eu sei disso.
– Então pronto.
Ele, gentilmente, se livra dos braços dela.
– Isso nem foi o pior… – Ele parece que vai completar a frase, mas se perde, mirando vagamente o espelho.
– Como assim?
– Nada…
O garoto encara a torneira aberta. Bell o observa com receio e ternura, leva a mão aos cabelos de P.a.m.. Ele afasta a cabeça.
– Sabe, – E a garganta quase dá um nó – quando eu tava lá no palco, eu sentia as coisas, mas ao mesmo tempo não sentia, dá pra entender? Porra, eu sei que foi tudo foda, mas eu não sentia! É como se eu entendesse tudo, mas não conseguisse viver nada. Parece que eu sou um exilado da vida. Eu ando por aí e vejo as coisas, mas não consigo tocar nas coisas de verdade, eu toco as pessoas, mas não consigo senti-las. E no palco isso foi o pior de tudo, porque era o momento mais feliz da minha vida, e eu não conseguia experimentar essa felicidade suprema, mastigava mas não conseguia sentir o gosto! Isso foi o pior. E foi feliz, foi feliz pacas, mas, ao mesmo tempo, não foi, entende? Eu estava lá, me retorcendo, gritando e cantando, mas era como se eu fosse um fantasma.
Não havia lágrimas, mas seus olhos eram os mais tristes que já se viram. Bell deixava escorrer um pranto liso e involuntário.
– Eu só queria ser normal. Sentir como todo mundo sente. Eu só queria sentir alegria. Não quero ser um personagem de mim mesmo.
– P.a.m., você é a pessoa mais autêntica que eu já conheci.
Ele se irrita um pouco:
– Não é isso. Não se trata de me comparar com o resto do mundo. Eu não vou conseguir explicar. Se trata de mim. Eu comigo mesmo.
Respira fundo:
– Hoje eu tive aquele sonho de novo, não sei se já te contei, eu tô lá e de repente meus ossos começam a crescer mais rápido que meu corpo. Começa pelo joelho, os ossos vão crescendo e empurrando a carne, e depois os cotovelos e as mãos, dói pra caralho. Daí os ossos rasgam minha carne e eu acordo assustado de tanta dor.
Ela abraça o menino e acaricia sua cabeça. P.a.m. se deixa acarinhar. Ela diz:
– Nossa, só lembrei disso agora, mas essa noite eu sonhei que o Renato Russo e o Dorian Gray eram a mesma pessoa. Ele falava comigo. E eu acordei chorando… Foi bonito... – P.a.m. quase não ouviu.
Ela abraça o menino com mais força. P.a.m. retribui, primeiro sem muita convicção, depois com carinho. E diz:
– Brigado.
Ela não diz nada.
#06 O Triângulo
Garotos extraordinários nunca deveriam ter dias ruins
Mas o que dizer se são os dias ruins que os tornam extraordinários?
…
Trecho de A autobiografia não autorizada de P.a.m.
Deve ser maldade dos deuses. Ironia. Um ideal poético sarcástico qualquer. Não se sabe. Mas no momento nós contemplamos nosso triângulo amoroso novamente se esbarrando na frente de um banheiro. Sim, Moira aparece. Seus olhos verdes têm um tom de esperança perdida e urgência estampa seu rosto.
Nada está tão ruim que não possa piorar. A aparição faz a onda do fairy dust, já meio enfraquecida, passar instantaneamente, como quando você está com soluço e toma um susto. Bell pega na mão de P.a.m. e entrelaça os dedos, seus olhos soltam faíscas de raiva. Moira percebe o ato e o ignora. P.a.m. desenlaça os dedos gentilmente. A música alta preenche o corredor quente, muitas pessoas passam e esbarram. P.a.m., no meio das duas, só pede para aquilo acabar logo.
Moira diz:
– Meu pai tá vindo aí, você avisou aos meninos?
– Não importa, a gente já fez o show. E tem mais, oficialmente eu já tenho dezoito. Pra alguma coisa isso tem que servir.
– Deixa de ser burro, isso é pior. E sério que você não avisou os garotos?
P.a.m. não responde. É verdade, agora pode ser preso. Sabe-se lá por qual motivo. O pai dela é a polícia, e a polícia pode inventar o motivo que quiser. E também era verdade, foi escroto o bastante ao ponto de não alertar os amigos.
– O que o pai dela vai fazer aqui? – Bell pergunta.
– Vai dar uma batida. A boate vende bebida pra menores, essas coisas. – P.a.m. responde – E também porque ele me ama.
– Que babaca nazista! – A boca se lambuza com os adjetivos derramados – Vamos cair fora – Bell puxa o braço de P.a.m..
Ele não se mexe. Pergunta:
– Você veio aqui só pra dizer isso, Moira?
– Também.
P.a.m. a encara com um ponto de interrogação e um de exclamação colados no rosto.
– Tem que ser agora, P.a.m., desculpa.
Moira tem uma expressão que dá um pouco de medo. Um calafrio percorre seu corpo e o garoto treme de leve.
– Bell, avisa os meninos. Pede pra sair pelos fundos. Eu tô indo lá.
– Vem comigo.
– Não. – Ele olha como se ela fosse uma criança.
– É sério? Depois de tudo? – Os olhos começam a querer ficar úmidos – Eu te salvei na escola, eu entupi esse lugar de gente hoje dizendo que era seu aniversário… Meu deus, P.a.m....
Ele se sente cansado demais:
– Eu já tô indo, me espera lá.
– Desculpa, Isabel, eu preciso… – Moira tenta falar. Ela tem pressa.
– Cala a boca, patricinha! – Bell grita. – Vocês se merecem. São patéticos. Tu merece essa patricinha, sem sal, CDF, cafona, idiota! – O ar quase falta, dá uma pausa de meio segundo – Essa patricinha filha de nazista corrupto!
Ninguém tem sangue de barata e Moira também não. Uma irritação profunda faz as veias do pescoço começarem a saltar. Ela possui assuntos realmente urgentes para tratar, enquanto aquela maluca fica berrando e fazendo suas cenas. E P.a.m., como sempre, igual um palerma. Moira solta:
– Sua delinquente, você deu pro P.a.m. enquanto eu tava namorando com ele e ainda quer continuar botando banca? Putinha de merda. – O palavrão sai com uma mistura de satisfação e culpa.
Bell fica estática, acumulando ódio. P.a.m. se coloca entre as duas. Uma expressão de dúvida no rosto quase se transformando em clareza.
– A gente o quê? Transou? Quando?
– Ah, vai negar agora? No dia seguinte que a gente fez amor pela primeira vez. – Moira limpa o nariz que começa a escorrer, mas não deixa as lágrimas começarem a brotar – Meu deus, P.a.m., foi nossa primeira vez. Foi minha primeira vez. Por que você acha que logo depois eu terminei contigo daquele jeito?
– Porque eu tinha beijado a Bell. Mas foi só um beijo. E eu nem correspondi direito. Eu te falei isso! – P.a.m. olha para baixo, vasculhando a memória – Não te falei?
– Qual é, P.a.m.? Todo mundo sabe que vocês transaram naquele dia. Teve aquele show cover do Nirvana que você insistiu em ir e eu não queria. A Márcia veio me contar.
– Um dia depois que eu transei com você, eu ia transar com a Bell?! – P.a.m. gesticula os braços levando as mãos para o alto e depois pousando-as na cabeça. De repente, algumas peças se encaixam. Ele encara Bell:
– Você espalhou essa mentira, né?! Foi você! Sabia que a Márcia ia bater pra Moira e inventou essa história toda!
Bell fecha o punho, as unhas quase rasgando a carne da mão. Seu rosto se deforma, parece que ela vai dizer alguma coisa, mas desiste. Uma lágrima comprida desce de um olho, depois do outro. Encara P.a.m. com um ricto na boca. Ela fala, mas quase não sai som. P.a.m. lê os lábios dela dizendo:
– Brocha...
Bell se vira e dá três passos. Para. Espera alguns segundos e volta, encarando o garoto. Nos lábios, um riso debochado, nos olhos, raiva.
– Ah! E eu também já fiquei com o Mani. – Sai batendo os pés e enxugando a humilhação do rosto. Lágrimas que ela amaldiçoa insistem em escorrer pelas bochechas.
Ele não sabe se acredita ou não. Pisca devagar tentando recobrar o equilíbrio e se encosta na parede. Não quer falar nada. Não quer fazer nada. Mas quando abre os olhos, Moira continua lá.
– Então, Moira, o que é?
#07 Guitarras
Ideia para um título de disco:
Irresponsável, inconsequente, Incoerente & Apaixonado.
…
Trecho de A Autobiografia Não autorizada de P.a.m.
– PORRA! MOLEQUE-FILHO-DA-PUTA-DESGRAÇADO!
Antes de Moira dizer qualquer coisa, o guitarrista do Nabuco aparece saltando de lugar nenhum. Agarra P.a.m. pelo pescoço e levanta o garoto do chão de forma que ele fica na ponta dos pés, as costas na parede, arfando feito um cãozinho acuado. O All Star surrado mal toca o bico no solo. Uma mão de P.a.m. segura o braço do guitarrista e a outra tenta empurrar seu corpo. O cara não é tão grande, mas P.a.m. foi pego de surpresa, e aquela maquiagem, aquela cara de lunático, é assustador demais.
– Qual é, cara? – as palavras saem sufocadas, ridículas.
– Larga ele, babaca! – Moira grita enquanto pega com força no braço do cara. A garota não para de gritar – Está tão assustada quanto histérica, agarra no braço de La Rubia cravando as unhas, se pendurando e balançando o corpo com raiva.
Ele acaba soltando P.a.m..
– Qual é a tua, moleque?! Por que fez isso?
P.a.m. tosse enquanto verifica se o pescoço ainda está no lugar.
– Do que tu tá falando?
– Deixa de ser falso! Tá vendo isso aqui? – e mostra o punho roxeado – Tu me fez dar porrada nos caras do Overdrive à toa.
– Tá pirando, loira? Do que tu tá falando.
Ou aquele moleque estava dizendo a verdade ou ele era a criatura mais falsa e corajosa que La Rubia já tinha conhecido.
– Os caras do Overdrive te viram mijando na minha guitarra!
Então era isso! P.a.m. quase ri. Na hora ele realmente estranhou o instrumento, mas estava tão chapado que nem percebeu a Les Paul branca, enquanto o modelo de guitarra do Johnny é uma imitação nacional de Mustang!
– Você mijou na guitarra dele? – Moira não acha aquilo de todo impossível.
– Não! Quer dizer, na verdade eu mijei na guitarra do Johnny…
– Você mijou na guitarra do johnny?! – Isso sim é inacreditável, até mesmo para P.a.m..
– Pô… não dá pra explicar agora… eu queria mijar na guitarra do Johnny, mas acabei me confundindo e mijando na dele, pelo jeito…
O guitarrista se mete:
– Não é pra explicar nada, é só pra me pagar outra guitarra novinha, só isso! Como é que eu vou fazer o show?!
– Eu te empresto a guitarra do Johnny. O teu case é igual ao do Johnny, e eu tava puto com ele, lembra?
– Cala a boca! Eu quero uma guitarra agora!
O guitarrista agarra a camisa de P.a.m. pela gola e o joga na parede sem largar da blusa. Os olhos vermelhos de raiva e algo mais que não se pode identificar. P.a.m. bate a cabeça, que começa a sangrar de novo. Fica um pouco tonto. No mesmo movimento o guitarrista solta um soco que vai direto ao estômago de P.a.m.. O menino pensa que vai vomitar a própria alma. Retorce-se no chão, abraçando sua dignidade perdida. Moira se joga em cima do guitarrista. O cara a afasta com um braço enquanto prepara um chute na cabeça de P.a.m.. Ele fecha os olhos esperando a botinada e rezando para não ter o nariz quebrado.
Alguém grita:
– Ei, La Rubia! – era o Nabuco em pessoa – A polícia tá aí!
– O quê?!
–Surreal. É só a gente aparecer pro mundo cair. Trouble makers. Corre!
O grandalhão magricelo dá um tapa na cabeça de P.a.m.
– Tu tá me devendo uma guitarra. Eu vou te achar. – E sai pelo corredor que já começou a virar uma zona de guerra com gente se empurrando para tudo quanto é lado.
– Só se for em outra vida, bonitão. – Ele diz, se sentindo macho. Mas torcendo para o cara não ter ouvido.
P.a.m. tenta recuperar o fôlego enquanto verifica o sangue na nuca. Passa o dedo indicador pelos dentes para ver se estão todos lá, mas é uma atitude mais cinematográfica do que real. Moira tenta se equilibrar agachada junto a P.a.m., mas tem gente demais passando por eles. Ela se acomoda ao lado do garoto, que só consegue dizer “merda, merda, merda”. A respiração ofegante, os sentidos confusos, a sensação medíocre de ter escapado de um grande perigo. O quase arrependimento de ter mijado na guitarra, que na verdade agora já estava virando orgulho. E enquanto esse orgulho vai crescendo P.a.m. começa a rir sozinho, e a risada vai crescendo, fazendo-o perder a respiração de novo.
– Do que tu tá rindo?
– Ser salvo pela polícia duas vezes no mesmo dia!… – E cada risada é acompanhada por um gemido de dor – Pega na mão de moira – Vamos, – Levanta-se com dificuldade – vamos achar os garotos.
Os dois saem abrindo caminho entre a multidão que anda apressada e sem rumo certo. P.a.m. vai à frente, o braço esticado para trás, a mão suada segurando firme a mão de Moira. Ela fala alguma coisa, mas P.a.m. não entende.
– O quê?
– Vamos pro outro lado, a saída é por lá. – Ela repete.
– Não, os moleques podem estar aqui.
– Mas a polícia ta aí.
– Foda-se. Eu não tô crescendo, tô virando saco de pancadas.
Moira não ouve.
#08 A Família Caos
Lembro de todas as coisas doces da infância. Mas não sei... Se eu olhar bem de perto não foi muito diferente do resto da minha vida. Eu era uma criança que sentia a dor. A Dor. Aquela simplesmente de existir. E me angustiava. Aos 13 anos tudo só complicou mais, porque chegou, sem avisar, o sexo e a obrigação de ser feliz. Antes, ser feliz era um sentimento como qualquer outro. Como quando ia à praia de Itacuruça aos domingos com a família, ou quando virava uma fita de videogame. Depois essa felicidade se foi, e a angústia que já era experimentada, aos poucos se tornou mais constante e bem mais forte.
…
Trecho de A Autobiografia Não Autorizada de P.a.m..
Não conseguem encontrar os amigos, só o pai de Moira perto do balcão do bar falando alguma coisa com o dono do Trincheira.
– O seu pai tá mesmo aqui. Isso é comigo, não é? É pessoal…
Ela revira os olhos e caminha em direção ao senhor Jaime.
– Moira! O que você…?! É proibido pra menores! Eu…
– Meu deus, pai, você esqueceu que eu já tenho dezoito?
O tom da frase foi mais de tristeza do que de raiva. E aquela tristeza machucou o pai. Quando foi que ela cresceu tanto? E agora ela queria fugir. Queria ser tudo aquilo que ele levou uma vida inteira tentando impedir que ela fosse. Ou acha que levou. Já não tem tanta certeza se tomou as atitudes certas. Mas quer, pelo menos, agir como se tivesse tomado.
– Olha só esse lugar, – A voz dele sai forte – não tem nada a ver com você! – Mas sem consistência nenhuma.
– Sabe pai, é tão estranha essa tua superproteção. Ela quer parecer que é pro meu bem, mas, no fundo, você só quer me afastar do mundo porque assim é mais confortável pra você.
– Meu deus, você é tão inteligente que chega a ser chata. Me lembra alguém.
Apesar da situação, P.a.m. consegue se sentir solidário ao pai de Moira, não é fácil conviver com a perspicácia dela.
Moira sabe muito bem de quem o pai está falando, e por um instante parece que eles não precisavam estar ali discutindo, brigar não faz nenhum sentido quando os dois querem a mesma coisa. Mas a língua que usam é diferente.
– Pai, essa proteção não me protege de nada. Você tem que me criar pro mundo, e não pra si mesmo. Os pais querem o bem dos filhos mas não se importam se eles estão se sentindo bem.
– Isso não é verdade, eu realmente só quero o seu bem! – Quase perde a paciência, respira um segundo, e força um sorriso – Ai, ai, Moira, É muito bom ser jovem, só o jovem não percebe isso. Eu estou aqui para te proteger, proteger todos vocês. – Ele aponta em volta – Proteger vocês de vocês mesmos.
– É pai, todo adulto tem inveja dos mais jovens.
– Moira, você não entende. Você também vai crescer. – Ele se esforça para controlar o tom da voz – E ter filhos…
Ela dá as costas de repente. Lágrimas grossas começam a escorrer. Mas seu rosto não demonstra tristeza, nem angústia, é uma tela em branco. Procura por P.a.m., ele está escondido no corredor de onde vieram. Chama-o com um sinal da mão. P.a.m. não se mexe. Ela lança um olhar de fúria silenciosa. Ele então começa um caminhar indeciso. O estômago arde por causa do soco. A nuca dói.
Vendo P.a.m., os olhos do senhor Jaime saltam da órbita. Ali está toda a razão da queda de sua filha. Da rebeldia, dos maus gostos adquiridos, do mau comportamento. Tenta passar pela filha, quer esbofetear aquele moleque. Moira estende o braço, impedindo o avanço do pai. Ele força passagem, mas ela aperta os braços dele até as próprias mãos doerem. Não é isso que o faz parar. É o olhar que ela tem. Idêntico ao da mãe.
Ela respira muito fundo e fecha os olhos antes de começar a falar:
– Eu não pensei que ia ser assim. Na verdade eu imaginei mil maneiras diferentes. E algumas tinham até finais felizes… – Pega na mão de P.a.m.. Seu pai tenta dizer alguma coisa, mas ela levanta o braço com firmeza – Eu queria conversar com um de cada vez. Talvez eu esteja sendo a maior idiota do mundo, mas não aguento mais. Vocês vão ter que me perdoar. Pai, eu fui burra e você foi ausente, não sei se nessa ordem. Não quero culpar você, mas é impossível não fazer isso. Mas também não me abstenho da culpa. Eu sei o que isso significa e vou aguentar as consequências. – o salão está praticamente vazio, ao longe se ouve Santos gritando com alguns adolescentes. O eco torna tudo estranho. Moira aperta a mão de P.a.m. com muita força e diz alguma coisa.
Mal se ouve a palavra que sai de sua boca:
– Oi?
Moira repete:
– P.a.m., eu acho que tô grávida.
Silêncio no mundo.
Zumbido e estática dentro de seu ouvido.
Um frio no estômago que beira o insuportável. Como um bloco de gelo duro, compacto, pesado.
P.a.m. procura o chão mas não acha nada, pensa que vai desmaiar mas volta a si. Segura-se em alguém que passa. Moira pega seu braço e ele se solta com um movimento brusco.
– Porra… – E a palavra sai todo esmagada e fraca – É mentira, né? Quer dizer, você acha ou tá? Fez algum teste?
– Fiz.
– Então?! – Seu pai quase grita.
– Deu que sim.
Tem vontade de vomitar. Quer desaparecer. Seus joelhos estão fracos. Nada daquilo pode ser verdade. Não, Moira se enganou, com certeza se enganou, esses testes não são cem por cento confiáveis. Foda-se, as coisas vão dar certo. Não vão? Se não derem, ele tem que arranjar um jeito de dar. Nem que tenha que pagar para tirar aquela criança. Mas com que dinheiro? Vendendo o videogame, o violão e o aparelho de som? O dinheiro nem chegaria perto. E com que direito?! Arrependeu-se do pensamento escroto e covarde, mas, ao mesmo tempo, o que podia fazer?
Capitão pega a filha pela cintura e a abraça, afastando-a de P.a.m.. Quer falar um milhão de coisas, mas tem medo de sacar a arma e estourar os miolos daquele delinquente ali mesmo. Sim, isso seria uma boa ideia. Devia ter feito isso há mais tempo. Devia ter feito antes. Deve fazer isso agora! Mas a impotência diante do leite derramado prende seus pés ao chão e acorrenta suas mãos.
P.a.m. encara Moira. Se ao menos pudesse voltar no tempo e usar camisinha. Lembra-se da cena no banheiro com a Bell e sente uma espécie de alívio. Pensa em todas aquelas campanhas ridículas que o governo joga na televisão. Por que não podia ter levado uma delas a sério? Se ao menos pudesse voltar no tempo e nem mesmo ter transado. Podia ficar em casa ouvindo música, lendo quadrinhos, se masturbando. Como pôde ser tão idiota?! O que ele dever dizer para Moira? Dar um sorriso? Fingir alegria?
Fica lá parado com aquela cara de bobo angustiado. Moira também não sabe mais o que falar, teme alguma atitude violenta do pai ou, o que poderia ser bem pior, uma postura de P.a.m. totalmente “Tô nem aí”.
Capitão Jaime cerra os punhos e bate a mão direita repetidas vezes na perna. Quase é possível ouvir seus dentes rangendo:
– Minha filha, você, você ainda era menor quando vocês… Quando esse marginal abusou de você? A gente vai resolver isso!
Moira abraça o pai tentando não deixá-lo andar:
– E o que você vai fazer? Vai prender o pai do seu neto? Vai atirar no pai do seu neto?
Capitão está a um passo do abismo. Centímetros de uma atitude sem retorno.
Uma voz feminina e insegura chega por trás de P.a.m.. Ele não pode ver quem é, mas pode dizer sem dúvida nenhuma quem é a dona daquelas palavras:
– Pai? – A voz se esforça para não gaguejar – Neto? Prender?! Do que você tá falando, Moira?
– Mãe, não… – P.a.m. não consegue completar a frase – Calma, mãe.
No meio da confusão, sem entender muito bem o que está acontecendo, ela toma a postura de leoa protegendo a cria:
– O que tá acontecendo aqui, senhor Jaime?! – A mãe de P.a.m. fala alto – E o que é esse sangue na cabeça do meu filho?!
– A mãe! Agora a senhora aparece! Eu vou te ensinar a educar um moleque. – Ele aponta o dedo no rosto da mulher.
– Como é que é? – Ela caminha para frente.
– O seu delinquente de estimação abusou da minha filha.
É claro que ela nem quis ouvir a história:
– Seu marginal fardado! Todo mundo te conhece! Que droga você está falando do meu filho?!
– Cala a boca!!! – Moira grita o mais alto que consegue. – CALA A BOCA! – Eles se assustam com o berro – Vocês dois estão malucos?! Não querem ouvir o que a gente tem pra dizer?
Os dois adultos fazem uma pequena trégua onde Moira consegue respirar. Dois segundos depois, quando ela pensa que vai conseguir argumentar, os dois recomeçam a brigar, gritar, e trocar acusações.
P.a.m. nem pensa duas vezes. Não quer participar daquela discussão. Não pode sair nada de bom dali. E está cansado de ser julgado. Sai de fininho como um covarde. O incrível é que ninguém nota. Ele deixa capitão, Moira e sua mãe – A mais nova família caos – aos berros e lamentações. Nem pensa no possível filho (que Deus o livre). Vira-se e corre o mais rápido que pode. Atropela o soldado Santos no caminho, os moleques que eram interrogados aproveitam para fugir. Só quer chegar à saída dos fundos. Os garotos devem estar lá. Com certeza estão, são malandros demais para serem pegos. Ou não. Quem ele está enganando? São apenas garotinhos assustados e mimados de classe média baixa. Mais provável que todos fossem para a delegacia com as calças molhadas, chorando e esperando pela presença dos pais.
YOU ARE READING
Terra do nunca
Teen FictionAtravessando um dia de cão depois de quase matar o valentão que praticava bullying nele, tudo o que P.a.m. quer é chegar ao local do seu show e viver o sonho de ser um Rockstar. Mas a polícia na sua cola, ex-namoradas em conflito, membros da banda...