#03 Garotos Maus Vão Para o Inferno

15 3 0
                                    

#03 Garotos Maus Vão Para o Inferno

Existem dois tipos de pessoas no mundo: Eu e todo o resto. E elas nunca estarão de acordo.


Trecho deA Autobiografia Não Autorizada de P.a.m.






Então o DJ para a música e o silêncio é preenchido por burburinho e apreensão. Não há apresentações. Só P.a.m. num olhar psicótico, encarando o público como um inimigo a ser sobrepujado. Mani num sorrisinho malicioso e Johnny estático feito estátua, as pernas afastadas e a coluna ereta, um filete de suor descendo pelo canto da testa. Lou deveria começar com aquela batida forte, reta e cadenciada de Rock Boy, mas estava demorando a entrar. Uma peça da bateria não se encaixava. Johnny olha para trás, preocupado. P.a.m. mantém o olhar maníaco na direção da audiência. O burburinho que tinha parado, volta a crescer aos poucos. O suor de Johnny pinga em sua mão direita. Mani acende um cigarro. P.a.m. continua estático.
E de repente: PAH PAH PAH!!!
Quando a multidão menos espera, a bateria de Lou começa a fazer as paredes da sala chacoalharem. Era repetitivo e hipnótico. Após alguns segundos só de bateria, Johnny aproxima sua guitarra do amplificador e uma microfonia se expande e toma conta do lugar. Quando ela fica insuportavelmente alta e repetitiva, ele começa a modulá-la como uma onda, um tsunami de ruídos. É quando Mani entra com seu riff de baixo, dando vida à música, fornecendo contornos e sentido, agora a bateria e o baixo eram a cama ideal para a guitarra deitar com o público e fazer sexo tântrico. P.a.m. se move lentamente seguindo o fluxo da guitarra e depois começa a acompanhar a cadência do baixo, esperando, esperando. É preciso ter toda a atenção do público. É preciso hipnotizá-los, trazê-los para cima do palco, fazer com que suas mentes dancem junto com a música. E aí então, ele começa, solta um grunhido baixinho que vai crescendo até dar início à letra:

Eu tenho belas mentiras nos olhos
Eu posso jogar com você
Eu tenho minha inocência
E uma consciência irreal

Eu tenho medo no peito
Eu tenho uma vida no lodo
Um mundo que não é meu
E eletricidade no corpo

A música segue sua repetição melódica e harmônica, só a guitarra varia ruídos disciplinadamente aleatórios. O vocal é quase falado.

Eu tenho apatia no bolso
Eu tenho preguiça na alma
Tenho mediocridade na testa
Eu tenho ironia na boca

Até que explode no refrão! A guitarra forte e distorcida, suja e alta! O vocal repetindo a mesma frase oito vezes:

Eu sou o rock boy

Sou dispensável pro ciclo vital
Sou um vírus no ecossistema
Tenho doces mentiras nos olhos
Eu acredito no meu coração

Eu tenho uma violência inerte
Tenho uma juventude sônica
Eu tenho a vida toda pela frente
E um cérebro na cabeça

Eu sou o rock boy
Eu sou o rock boy…

As últimas frases são recitadas sobre um caos sonoro:

Vou me foder por causa disso
Mas preciso de uma rock girl

O caos persiste por longos segundos. Parece que é a última música do show, não a primeira. P.a.m. continua grunhindo “preciso de uma rock girl…”. Como se continuar com aquele mantra fosse fazer uma rock girl realmente se materializar ali. A plateia não sabe o que pensar, e isso é o que pode existir de mais alto para um artista, não é verdade? P.a.m. já está todo enrolado no cabo do microfone. Mani ajoelhado ao chão, bate nas cordas grossas de seu contrabaixo o mais forte que pode. Lou esporra a bateria e Johnny esfrega sua guitarra no amplificador como só Pete Townsend fazia. Alguns bêbados perto do palco começam a berrar e uivar, meninas dão gritinhos. P.a.m., embrulhado no cabo, encara as pessoas da primeira fila com um olhar assassino. Lou percebe que é hora de parar, dá algumas batidas ainda mais fortes e encaixa uma virada, imediatamente os meninos percebem o que fazer, mesmo sem nunca terem ensaiado um final para essa música. E terminam todos juntos, tão abruptamente quanto começaram.
O final repentino pega mais uma vez o público de surpresa. Alguns gritam um U-Hu tímido enquanto outros batem palmas burocráticas. Umas menininhas do lado esquerdo do palco gritam a plenos pulmões.
Johnny começa a verificar o quanto a guitarra está desafinada. E sob aquele barulho chato de alguém afinando uma guitarra em alto volume, P.a.m. começa mais um de seus discursos enquanto se desenrola do cabo. A voz entrecortada ainda procurando fôlego, entre nervoso e satisfeito.
– Nós somos os garotos que o mundo esqueceu, Os Garotos Perdidos, pra sempre marginalizados. Aqueles que nunca cresceram, aqueles que nunca vão crescer, aqueles que NÃO QUEREM crescer! Vocês sabem, maturidade é muito supervalorizada hoje em dia, maturidade isso, maturidade aquilo, gente madura, criança imatura, blá, blá, blá. Eu vou dizer a verdade pra vocês: A noção de maturidade hoje é completamente confundida com ADESTRAMENTO! Quando dizem que querem você maduro, na verdade eles tão dizendo que querem você adestrado! Adestrado como um cãozinho, um cãozinho na coleira. Amadurecer nunca, crescer jamais. Eu tenho uma novidade pra essa gente: I DON'T wanna be your dog!!! – E ergue as mãos como um regente, um superstar, a cintura torta imitando Iggy Pop! O próprio reverendo Bowie em seu culto do mal! O próprio Morrison em seu ritual místico! A multidão (de 50 pessoas) dando gritos de aprovação e encorajamento! Enche os pulmões com nitroglicerina para anunciar a próxima música:
– E tem mais: WE DON'T WANT TO GROW UP!! One, two, three, four!!!
As pessoas presentes puderam acompanhar a versão mais rápida e raivosa de um dos clássicos do Ramones. Quem esteve parado até agora não pode mais resistir e entra na dança. Uma pequena rodinha punk se forma, e adolescentes raivosos começam a liberar a energia acumulada durante uma semana e uma vida de insatisfação. O pessoal mais velho se afasta um pouco, mas acompanha a batida com o balançar da cabeça enquanto concordam visceralmente (ou tristemente) com o refrão. Em dado momento um menino sobe ao palco e começa a cantar a música junto com P.a.m.. O vocalista entrega o microfone na mão do rapaz e ergue as mãos para o alto enquanto balança a cabeça com força. Foi o bastante para uma menina se empolgar, subir também, e em complemento agarrar a cintura de P.a.m.. Então um amigo dela resolve ir atrás e acaba pisando no pedal da guitarra de Johnny que falha por um segundo e depois perde a distorção. Não precisa mais nada para Johnny preparar um chute com a sola do pé na bunda do intrometido que voa de encontro à primeira fileira.
Logo tem mais gente no palco do que fora dele. P.a.m. toma o microfone de volta e grita para que Lou pare. O baterista paralisa imediatamente, o que faz o resto da banda também interromper a música. Mani não consegue parar de rir.
P.a.m. tenta colocar ordem de volta no recinto:
– Ei! Caos! Eu gosto de caos, eu adoro o caos. Mas não no meu palco, porra! – E ri no microfone.
A casa ri junto. Johnny acaba de expulsar os mais excitados e verifica seus instrumentos. Mani fala alguma coisa com Lou e os dois morrem de dar risadas. Seus maiores sonhos se realizando e eles mal percebem de tão felizes. A vibração é perfeita. Com a casa lotada a energia contagia cada um com muito mais facilidade. Pega pelo ar, pelo suor, há eletricidade flutuando, deixando os pelos arrepiados e a adrenalina espirrando pelos poros.
Johnny enfrenta alguns problemas com o equipamento. O amplificador não quer mais ligar. P.a.m. pede ajuda ao operador de som. Ninguém aparece. Pede de novo, dessa vez fazendo voz grave de pregador televisivo. Nada. Pede por favor. Começa a variar vozes graves e extremamente agudas. O público também começa a gritar pelo cara da mesa de som. P.a.m. puxa o coro:
– Veado! Veado! Veado!
De repente todo mundo está gritando junto. Mani senta-se no chão. Johnny pede para P.a.m. parar com o xingamento. É a gota para P.a.m. perder a paciência:
– Ei! Alguém ajuda aqui. – Recosta-se na enorme caixa de som à sua esquerda – Alguém aí tem uma cervejinha para mim? Alguém? Alguém? Beuller? Beuller? Sério, gente. Ninguém? Opa! Uma alma caridosa. Brigado, amor, a próxima música vai ser oferecida a você. Eu não bebi nada hoje – Alguém da plateia grita: “Mentiroso”. P.a.m. faz uma careta de deboche e aponta para si dizendo apenas com os lábios “Quem, eu?”, e continua: – É sério! Quer dizer, pra não dizer que não bebi nada, foi uma latinha. Que na verdade foi nosso cachê – Aproxima a boca do microfone e ri com força – Sério, gente! Nosso cachê foi uma latinha de cerveja! Nem água rolou! Como pode isso? – e faz uma cara de riso/espanto/escárnio.
Lou olha para Johnny. Se eles tinham alguma chance de ser chamados para outros shows, P.a.m. tinha acabado de matá-la. Mani fala algo no ouvido P.a.m.. O vocalista diz ao microfone:
– Oi, Mani? O que foi? Censura? – Abre os braços – Fala sério, amigo. Vocês conhecem o nosso Mani? O baixista mais baixo da história do rock n' roll! Palmas pra ele!
A plateia aplaude e grita, Mani esquece que está puto com P.a.m.. Então o carinha da mesa de som aparece e magicamente a guitarra de Johnny volta a funcionar. Ele começa a fazer barulho, tanto barulho que P.a.m. não consegue falar mais nada. O vocalista dá uma geral na cara séria dos amigos e resolve apresentar a música seguinte:
– A próxima canção se chama Manifesto – P.a.m. aponta para o fundo da pista – e ela vai em homenagem ao carinha do som!
A música começa com a guitarra de Johnny repetindo uma sequência abafada de power acordes em Sol e Ré. Então o vocal de P.a.m. entra:

Eu não posso mais ficar aqui parado
No meio dessa solidão
Já me cansei de tanta cretinice
De tudo que sempre estoura na minha mão

A bateria vai entrando devagar, junto com o baixo.

Me cansei de ouvir tanta merda
De quem vive com o cu na mão
O que eu gosto é sempre proibido
E você sabe, assim é bem mais divertido

Aqui a bateria entra de vez, descendo a porrada.

O que eu penso, o que eu sinto é sempre errado
Já não ligo mais pra isso
Só preciso encontrar alguém que aceitou seu próprio inferno
E jogou fora o paraíso

Meu tempo é sempre perdido
Não tenho saco pra promessa
Ansiedade é meu sobrenome
Quero o depois de amanhã, eu tenho pressa

Eu tô cansado de ficar calado
Ouvindo quem não tem nada pra dizer
Meu corpo não aguenta ficar parado
Tenho quilômetros a correr e muito barulho pra fazer!

A estrutura da música é simples e contagiante, a letra é bruta e honesta. Como algo que você já sabe, mas precisa de alguém para te dizer. Um susto e uma revelação. A estrutura sonora da casa não ajuda, muitas vezes a voz fica abafada no meio da maçaroca de guitarra distorcida, mas as poucas frases distinguíveis são o suficiente para deixar a plateia eufórica.
Mesmo depois de ouvir os aplausos ao fim da música, P.a.m. não consegue se livrar da sensação de injustiça que o descaso do técnico de som deixou grudada nele. Não adianta o quanto tudo dá certo, ele não consegue se livrar dessa raiva, essa fúria, uma frustração profunda, uma amargura, essa ideia de que todo mundo está sempre querendo estragar seus planos, derrotá-lo, foder com ele. Como se cada tragédia diária, cada derrota insignificante ou cada golpe do acaso fosse uma afronta pessoal.
– Sabe, se não fosse a gente, e por “a gente” eu digo as bandas, não teria ninguém aqui, não teria ninguém pagando entrada, nem consumindo no bar, nem nada. E sabe o quanto desse lucro vem pra gente, as bandas? ZERO! Não, zero não, vem uma latinha de cerveja. É isso que vale nosso trabalho: uma latinha de cerveja. É, acho que vou ter que me acostumar com isso.
Lou dá uma daquelas viradinhas cômicas na bateria. Johnny recomeça com a microfonia numa tentativa de calar o amigo. P.a.m. segura as cordas da guitarra enquanto fala:
– Ok, vamos para a próxima, originalmente intitulada “Bad boys go to hell”, agora em versão brazuca: “Garotos maus vão para o inferno”.
Guitarra, bateria e baixo entram juntos num riff lento e pesado. A letra diz:

Eu fiz um trato com o capeta
Vendi minha alma para o mal
Eu me encontro no inferno
Ninguém me salva eu sou um estranho

P.a.m. se agacha, fica de cocoras, com a cabeça abaixada.

Eu não pedi pra nascer mau
Eu não pedi pra nascer triste
Tenho esse ódio em minhas veias
E ninguém nunca vai entender

Agora levanta e caminha por entre a plateia. Encarando cada um nos olhos. Um olhar que mistura raiva e desafio.

E se você olhar de perto
Você vai ver:
Garotos maus vão pro inferno

As estrofes se repetem mais duas vezes e a música acaba. Ele grita o último verso até quase perder a voz, jogado ao chão no meio do público, como se uma força o puxasse para baixo. A boca grudada no microfone, simulando sexo com o chão sujo. Os mais velhos na plateia não conseguem acreditar naqueles moleques. A garotada nem liga e só curte o show.
O resto da apresentação foi um equilíbrio tênue entre insanidade e diversão. P.a.m. se jogou de cima da caixa de som por sobre a plateia, mani arrebentou uma das cordas do baixo com a boca, e mais uma invasão maciça do público ao palco se deu, desligando cabos e pedais, transformando o final de uma das músicas em um set só de bateria e voz.
Os meninos fecham o espetáculo com Basket case do Green Day. Uma versão estendida com direito a mais discurso de P.a.m.. Ele simplesmente recitou a letra em português. “Você tem um tempinho para me ouvir reclamar de tudo e nada ao mesmo tempo? Eu sou um desses idiotas melodramáticos, neurótico até os ossos, sem dúvida sobre isso. Às vezes me entrego aos vermes, às vezes minha mente me prega peças, isso tudo vai só acumulando, e eu acho que vou ter um colapso. Eu sou paranoico? Ou só tô chapado?!
Lou dá a última virada de bateria e Johnny espanca a guitarra num último acorde deixando as notas soarem e se expandirem até formar um microfonia que se estende, e se estende, e se estende… O público aplaude e grita. A primeira fileira é formada por um bloco de meninos pingando de suor, as meninas do cantinho esquerdo do palco se acabam em berros histéricos. A banda não consegue esconder o riso bobo e largo do rosto. Só P.a.m. parece sério, mas no calor do momento ninguém consegue perceber. A alegria é tão grande que eles esquecem de desmontar o equipamento. Um pequeno grupo se amontoa na frente do palco para falar com eles. Esse tipo de atenção é viciante.
Mas tudo acaba. O show acabou. E P.a.m. sente isso como um soco no estômago. Agora percebe qual é o pior momento do Rock Star: aquele exato instante em que o show termina. É como se o chão se abrisse. O que se faz agora? Minha vida toda ficou para trás, fora do palco nada faz sentido. Vai para um canto fingindo que está enrolando o cabo do microfone. Sua alma está inundada e seus olhos secos.

– Pu-ta-que-pa-riu! – Mani diz – Eu juro, eu amo vocês! Nós somos fodas!
Lou não consegue parar de sorrir. Johnny parece ter esquecido toda e qualquer rixa por causa de garotas:
– Eles gostaram mesmo! A gente tem que gravar logo! Botar a música pra tocar por aí! Divulgar! – o sorriso besta não se desfaz.
Sansão aparece com cara séria:
– Ei, vocês são uns bostas, mas são legais. A molecada gostou. – Ninguém dá atenção para o dono do estúdio.
P.a.m. nem ajuda Lou a desmontar a bateria, vai direto para o “camarim”. Senta em um banquinho e fica sentindo o leve odor de sua urina enquanto olha para a parede. Os outros garotos chegam falando alto e rindo, nem percebem o estado de espírito do amigo enquanto fazem planos para conquistar o mundo.
Roberto Lima entra logo atrás:
– Ei, caras! Muito bom o show! Posso entrevistar vocês pro meu zine?
– Como assim? Entrevistas? Já? É claro que sim! Rolling Stone, aí vamos nós! – Mani diz.
– Só não sei se a gente tem algo de interessante pra falar! – Johnny completa.
– Relaxa, a coisa vai saindo natural. Pensei em fazer um lance tipo individual e depois perguntas pra todo mundo, beleza? Vou começar com o baixista: Nome e instrumento que toca, depois quais são suas bandas preferidas?
Mani não pensou duas vezes:
– Nome: Mani, se escreve M-A-N-I, mas se fala mêni, tipo o baixista do Primal Scream, sacou? Filme: qualquer um com a Sylvia Saint.
O entrevistador cai na gargalhada.
– É sério?
– Eu nunca brincaria com isso.
– Ok… E bandas?
– Hum... Ramones, New York Dolls, Red hot chilli peppers, Demolition Doll Rods e Britney Spears.
Roberto ri mais.
– Tá, agora é a vez do guitarrista, manda lá.
– Johnny, guitarrista. Hum, difícil cara, vou ter que pensar, não dá pra sair falando assim… Pô, banda de todos os tempos? Mas é a que eu acho o melhor, ou a que mais marcou minha vida?
– Não importa, fala o que vier ao coração.
– É, Johnny, fala qualquer coisa, vai ficar de frescurinha? – Mani diz.
– Isso é importante, não dá pra falar qualquer merda igual Mani fez. – A galera começa a gritar e zoar – Pô, eu poderia citar, que eu lembre agora, Ramones, Bad Brains, Rage against the machine e Dead Kennedys.
– Só banda do caralho – Roberto diz – Agora o batera.
– Ramones, Dinossaur jr, nick Drake, Sonic Youth, Lemonheads…
– Você parece ser o mais ligado em indie rock, seu nome é Lou, né?
– Isso, Lou, escreve L-O-U. Pois é, mas eu gosto de mais coisa além de indie. E como você também pode notar, eu tenho, sem dúvida, o melhor gosto musical da banda.
Todos protestam e a algazarra toma conta de novo.
– Há controvérsias, pequeno garoto – P.a.m. se manifesta pela primeira vez.
– Bem, essa é uma boa ponte, como vocês administram essa coisa de influências, existe muita divergência ou vocês entram de acordo logo? Para escolher as covers, por exemplo, como é?
P.a.m. responde:
– A gente toca muito mal, então, é pegar a mais fácil.
Eles concordam.
– Pois é, tô vendo que Ramones é a cola entre vocês quatro.
Johnny diz:
– Ramones é o início de tudo!
– O início, o meio e o fim! – Mani completa.
Lou completa:
– E tu já viu a história da banda? É triste pra caraca.
– Parece até a gente – P.a.m. comenta.
Roberto tinha encarado o comentário do vocalista como uma simples piada, mas nota o constrangimento meio sufocado por risadas que paira no ar. Encaixa logo outra pergunta:
– Isso. Finalmente chegamos ao vocalista, quais são suas influências, P.a.m.?
P.a.m. respira como se tivesse se preparado para isso a vida inteira. Ele não está mais em um quarto apertado cheirando a urina, ele está no sofá do Jô Soares, no programa do Henry Rollins, numa entrevista para a Rolling Stone.
– Pô, vou começar com Green day, que não consigo parar de ouvir. Sonic youth. O Sonic me ensinou a compor, pra ser mais exato, me deu a coragem necessária. Foi como o Ramones, só que uma iluminação um pouco diferente. Ramones é tipo, é só juntar três acordes e fazer uma música, o Sonic Youth é tipo, é só fazer QUALQUER barulho e fazer música, entendeu? Pras letras eu me inspiro muito em livros. Demian, O apanhador no campo de centeio. Filmes também adoro, Kids é animal.
– Beleza! Tá ficando ótimo! – Roberto Lima sorri, satisfeito – E agora me contem como a banda começou.
– Ah, todo mundo é amigo no colégio. Não tinha mais ninguém que prestasse lá, sempre roubavam nossa merenda, nunca escolhiam a gente pro futebol, então a gente foi se juntando naturalmente, de acordo como iam segregando a gente. – Mani explica.
– Tá vendo no que dá!? – Johnny diz – o mundo quer separar os monstros, acaba criando uma legião deles.
– É verdade. E o nome da banda? Como surgiu?
Mani se adianta empolgado, ele estava gostando de se sentir o porta-voz:
– Na verdade o nome da banda é inspirado na música Search and Destroy do Stooges. Só que eu achava que a frase, 'I’m the world's forgotten boy' significava, 'Eu sou o garoto perdido do mundo', mas na verdade é 'garoto esquecido', né? E eu adorava a coisa de garoto perdido, porque dava a ideia de perdição, de louco, imoral, e ao mesmo tempo de sem rumo, sem lar, essas coisas. Então enchi o saco pro nome da banda ser 'Os Garotos Perdidos'. Depois Johnny disse que a tradução certa era ‘Esquecido’. E a gente ficou meio balançado pra trocar, só que Os Garotos Esquecidos era muito brega e P.a.m. lembrou daquele filme…
Roberto conclui empolgado:
– Ah! Aquele dos vampiros! Um clássico!
– Pois é, daí ficou Os Garotos Perdidos.
– A explicação pra nome de banda mais foda que eu já ouvi!
– Não somos uma banda, somos um bando – Mani diz.
– Não é uma banda, é uma piada. – P.a.m. rebate.
– Ok, rapazes, vou deixar vocês arrumarem os equipamentos. Desculpa alguma coisa lá no som. O fanzine sai mês que vem.
Johnny se adianta:
– Obrigado a você, Roberto! Brigadão mesmo! A gente é que pede desculpa por alguma coisa.
Os outros garotos agradecem várias vezes. P.a.m. comenta:
– Só que da próxima vez vê se rola pelo menos uma graninha. – Roberto finge que não escuta e sai pela porta sem olhar para trás. P.a.m. se vira para os amigos – Aposto como ele encheu o rabo de dinheiro.
Mani encara:
– Qual é, doido? Relaxa! Nenhuma banda começa ganhando grana.
– Roberto nunca mais vai convidar a gente. – Johnny diz enquanto caminha para a porta.
Lou tenta mudar o rumo da conversa chamando os garotos para tomar uma cerveja. O convite inusitado empolga o grupo e tem o resultado esperado pelo menino. Largam os instrumentos em um canto do quarto e vão em direção ao bar.
– Tu tá sentindo um cheiro de mijo? – Lou pergunta.
– Pior que tá mesmo. – Mani funga o nariz – O Johnny deve ter mijado nas calças.





























#04 Descolados e Deslocados

Os meus amigos eram tudo que eu tinha. Eles e o rock. O rock sempre foi meu melhor amigo: Izzy stradlin, 14 years, Pearl Jam, Oceans. Essas coisas me ajudaram a sobreviver. 13 anos. Ninguém sai ileso disso. Ninguém que realmente importe.
E eu não morri. Ainda.


Trecho de A autobiografia não autorizada de P.a.m.







Foram os quatro para o bar tentar filar alguma bebida, já que dinheiro não havia. Do jeito que o show foi um sucesso Mani já planejava trocar seus beijos por cerveja. Era estranha e adorável a sensação de caminhar com todos os olhares em sua direção. Não da maneira como olhavam para eles no colégio, como se fossem freaks imbecis. Agora eles eram os freaks cool. Deslocados e descolados. Sim, tudo o que era dito sobre o poder do Rock n' Roll podia estar certo. Tornar-se uma estrela apesar, e por causa, de sua estranheza. Eles sentiam os olhares, e não olhar de volta era o mais legal. O poder de ser blasé.
Um garoto de cabelo mop top, loiro, de não mais que 14 anos, veio falar com eles. Disse que se chamava Freakium, perguntou se eles tinham algo gravado e disse ter um zine, queria fazer uma matéria com a banda. Trocaram telefones.
Duas meninas vieram também. Perguntaram sobre próximos shows e se podiam tirar uma foto. Trocaram telefones. Uma delas não tirava os olhos de Lou, tentava disfarçar, mas não era boa nisso. A amiga comenta com Mani que ela adora bateristas, são sempre aqueles que as garotas não escolhem, então, não há competição. Esperta. Lou estava mais solto depois do show. Provou o gosto de ser alguém que só conseguia desejar ser. A menina era gordinha, tinha o cabelo azul e usava uns óculos grandes e quadrados. Não era exatamente bonita, mas era estilosa.
Os garotos não conseguem parar de rir da situação, nunca tinham visto Lou daquele jeito, um Don Juan todo sem jeito. Afastam-se do casal e assim também faz a amiga da menina. Lou e sua fã ficam lá falando sobre bandas, quadrinhos e mais bandas.
Conseguem arranjar uma cerveja. Mas P.a.m. quer mais. Como sempre. Quer uma outra coisa. A banda Overdrive 78 já tinha começado a tocar, mas ele não quis ver o show de perto, ficou encostado no bar observando a movimentação. Tinha a curiosidade de ver como as bandas se portam no palco, uma banda com mais shows que ele, uma banda que já tinha gravado. Mas, ao mesmo tempo, deseja que todos eles morram. Não quer competição. Quer ser o único. Despreza o outro grupo. Prefere não assistir ao show.
Ignora quem vem falar com ele, mas fica deprimido quando não vem ninguém. Quer uma coletiva de imprensa após o show. Quer ser a banda que fecha a noite. Quer fama internacional AGORA! O rosto na capa das revistas. Um piano branco no meio da sala de sua mansão de frente para o mar. Uma esposa lindamente perfeita e submissa, inteligente e engraçada a quem amaria profundamente e com quem teria brigas homéricas, quebrando garrafas de uísque e implorando perdão. Quer compor a canção perfeita, mais tocada que Stairway to Heaven e Smells Like Teen Spirit. Quer poder reclamar que a fama o sufoca, que a imprensa é uma merda e não larga de seu pé. Quer toda a atenção, e poder pedir para que o deixem em paz.
Disse, meio que do nada:
– Vamos, folks. Vamos fazer alguma coisa.
Mani não entende.
– Como assim? Tá legal aqui. Dá pra ver o show, dá pra conversar, dá pra ver as menininhas.
– Sei lá, vamos sair daqui. Tu ainda tem Fairy Dust?
– Tenho não, doido, tava contigo, lembra? Não tá mais?
– Ah, é.
– Mas sossega o rabo, vamos aproveitar, não tô a fim de chapar mais, não.
– Até tu vai arregar?
Mani achou melhor não responder, já conhecia aquele olhar. O show já tinha sido feito, foi um sucesso, muito melhor do que ele jamais tinha sonhado. Foda-se P.a.m. e seu estrelismo. Ia simplesmente ignorá-lo o resto da noite e aproveitar.
Johnny se aproxima de Mani no balcão, esperando que P.a.m. relaxasse, e Bell não aparecesse. Agora que o show tinha acabado e o sangue começava a esfriar, o constrangimento começa a tomar conta do ar. Ficam os dois com os cotovelos apoiados enquanto balançam a cabeça ao compasso das guitarras barulhentas do Overdrive 78.
P.a.m. se sente triste. Muito triste mesmo. Não é angústia. É uma tristeza daquelas que te tiram o poder de ação e você só quer chorar. Fica um tempo olhando para a plateia que assiste ao show. De costas para os amigos. Sem pensar em nada. Sente-se sozinho. Percebe nos olhos dos amigos o quanto é inconveniente. Nunca quis que fosse assim. Nunca quis ser ele mesmo. Ele simplesmente é. Se nem no meio dos infratores e banidos ele encontra abrigo, onde encontraria?
Tem uma ideia.
Dá um tempo, tomando coragem, então caminha levemente para o meio da multidão. Sai sem falar nada e sem deixar muita saudade. Procura um rosto. A música que toca é boa. A banda é boa. O guitarrista faz coisas incríveis e inacessíveis. Não que fosse um virtuose, mas usa acordes que P.a.m. nunca imaginara poder existir, dissonantes e com sentindo. O vocalista realmente sabe cantar e sua voz é compreendida de qualquer canto do salão. Como ele inveja! É cortante. Mas foda-se. Precisa se concentrar. Reconhecer o rosto que procura dentre tantos outros. Deve estar mais perto do palco, pensa, sim, era bem típico. Força passagem pedindo licença. O Trincheira nunca esteve tão cheio. Não consegue parar de pensar na grana que estão lucrando à custa das bandas. Quanto mais perto do palco, mais abarrotado, mais difícil de andar.
Sim, ela está lá, na primeira fila. Uma groupie do caralho. Escrota. Mas ainda assim, sua. Ficou parado a alguns metros, lembrou-se do clipe de Dirty Boots. Se eles pudessem ser aquele casal tudo estaria a salvo. Se Bell e Moira pudessem se fundir em uma só tudo estaria salvo. Por um segundo pensou em desistir e ir para casa. Mas lembrou-se de que não tinha mais um lar. Decidiu levar tudo às últimas consequências. Como se nada importasse. Como se tudo importasse demais, de um jeito que chega a doer. Doer tanto que você finge que não importa. Talvez fosse isso. Deu um tapa na própria cabeça para afastar as elucubrações. Concentrou-se no rostinho bonito e maquiado de Bell. Toda perfeitinha, dançando e se insinuando para o vocalista.
Ficou ali esperando ser notado. Flertando com outras meninas para provocar ciúmes. Foi uma amiga que cutucou Bell e mostrou P.a.m.. Eles ficaram se olhando. Bell continuou dançando e assistindo ao show. Mas uma menina encostou-se a P.a.m. e puxou assunto, o som era alto e eles tinham que falar gritando, a boca perto do ouvido um do outro. P.a.m. não entendia nada do que a menina falava, provavelmente era sobre Os Garotos Perdidos. Ele não olhava para Bell, esperava sua reação. E não demorou. Ela aparece por trás de P.a.m. e puxa o menino.
O garoto diz, blasé:
– Hey, baby. Calma.
Ela não fala nada, só continua andando e ele vai atrás. Marionetes de si mesmos num teatro sem autor.

Chegam a um lugar menos cheio. Bell se vira, seu rosto está estranho. P.a.m. quase desiste de ter ido atrás dela. Talvez ele esperasse uma menina sorridente e submissa, pronta para satisfazer qualquer desejo. Ela não sabe se bate ou se beija. Tudo o que consegue dizer é:
– O show foi ótimo.
Ele também não sabia mais o que falar.
– Foi mesmo?
– Tá louco? Todo mundo gostou! Você não percebeu?!
– É… espero que sim.
– Porra! Foi óóótimo.
E P.a.m. se lembra de como odeia quando ela prolonga esse ó. Mas não importa, ela está ali, e ele está carente demais para qualquer exigência tola. Pensou que poderia morrer sozinho se continuasse com essas exigências detalhistas. Meninas que não conhecem bandas, meninas que riem alto demais, meninas que não sabem reconhecer uma ironia, meninas que não sabem ser irônicas, meninas altas, meninas de roupas comuns, meninas hippies. Todas essas futilidades que têm um peso enorme em suas escolhas talvez determinem sua eterna solidão.
– É, eu acredito. Acredito mesmo. Mas sei lá, nunca é o bastante.
– Isso é bom, né? Te faz querer sempre o melhor.
– Pois é, deveria ser, mas também me atrapalha de simplesmente aproveitar o momento. Isso me angustia.
– Te entendo, eu conheço você, sei como é.
"Conhece nada", P.a.m. pensa. Mas logo afasta o pensamento. Não quer brigar. Não quer nada de ruim. Está tão frágil que esquece totalmente o ocorrido com Johnny. Só quer a companhia dela, aquelas conversas ótimas que eles tinham, como se tivessem as almas conectadas. Mas, acima de tudo, ele quer uma coisa que ela tem. Uma passagem para o céu de diamantes. Flutuar num sonho infantil.
– Então, vamos aloprar de verdade?
– Always!
– Você tem aí?
Bell só pensava: Ele não comentaou nada sobre Johnny! Enquanto pudesse mantê-lo por perto, era o bastante, não importava como.
– Tenho.
– Vamos no banheiro.
Pararam no corredor para um beijo. Parecia que não se beijavam há muito tempo. P.a.m. sente a cintura fina de Bell mais uma vez. Beijam-se demoradamente. Depois ficam observando um pouco as pessoas dançando. Bell comenta:
– Olha só, nós somos uma multidão de indivíduos, uma gang de outsiders.
– Você é tão inteligente, Clubber… – P.a.m. alfineta, sorrindo.
– Não me chama de Clubber.
– Desculpa, Clubber.
Bell começa a acompanhar a letra da música que toca: It's our nowhere towns, our nothing places and our cellophane sounds, maybe it's our looseness. – E aponta para os dois, enquanto mexe a cintura – We're Trash, we're the litter in the breeze, we're the lovers in the street.
P.a.m. sorri e acompanha o riff de guitarra com o corpo enquanto executa um air guitar. Bell completa aproximando os lábios cuidadosamente do ouvido de P.a.m.:
– Eu daria fácil pro Brett Anderson.
– Afetado demais… Mas a banda é realmente boa… Essa música é foda.
Foi então que P.a.m. notou outro casal bem perto deles. É Lou e sua nova amiga, estão se beijando. Lou tenta equilibrar um copo de cerveja quente na mão esquerda enquanto abraça a cintura da menina com a direita. P.a.m. ri demais, Bell acompanha.
Vai depressa na direção do baterista, e dá um tapa tão forte nas costas de Lou que ele derrama metade da cerveja.
– Ei… – Lou diz meio sem graça, mas sorrindo feito uma criança boba que tinha acabado de ganhar um prêmio.
P.a.m. olha para a menina, sorrindo amigavelmente.
– Trata bem meu amigo! – depois se vira para Lou – e aí, cara! Vamos melhorar essa festa?!
A menina ri sem graça. Já estava feliz de pegar o baterista, agora também estava conhecendo o vocalista e a namorada dele, que de tão estilosa, chegava a intimidar. Sente-se fazendo parte de algo realmente grande, algo novo em sua vida, como estar em um filme. Imaginou-se anos no futuro sendo entrevistada para um documentário sobre a banda.
– Pode deixar que ele tá em boas mãos – A menina de óculos quadrados diz, tentando se enturmar.
P.a.m. e Bell simpatizam de cara com ela.
– Hey, boy! Vamos lá! A gente tem um lance especial. Tá tudo pedindo, o show foi foda, é o que dizem, você tá com uma gatinha, – e dá uma piscadela para a menina que sorri sem graça – tá tudo dando certo.
– Então pra que mais? – Lou diz.
– Vamos complementar! Vamos fazer tudo perfeito. Amanhã a gente não tá mais aqui, amanhã vai ser tudo Dust and Bones! Quem quer ficar velho?!
– You, P.a.m., Always get what you want. – Lou dá um soco de leve no peito do amigo.
As meninas riem por dentro de admiração, no entanto, tentam aparentar um certo ar superior, zombando dos garotos como se eles fossem crianças.
Lou tenta recusar:
– Tu sabe que eu nunca experimentei essa parada.
– Pra tudo tem uma primeira vez, não é o que dizem? – Aquele sorriso de criança feliz do P.a.m. era irresistível, como a inocência do eterno esquecimento.
As duas meninas, de um jeito que só duas mulheres conseguem, se tornam amigas imediatamente, contando casos pessoais num espaço de tempo microscópico, como se elas se conhecessem há dez anos. Lou percebe o envolvimento da menina com seus amigos e não quer perdê-la. Além do mais, está tão feliz que faria qualquer coisa. A felicidade também pode nos levar a tomar decisões bastante imbecis. Foram os quatro para o banheiro.

P.a.m. se aproxima do amigo e derrama um pouco daquele pozinho mágico em seus olhos. Lou fecha as vistas com força e depois as esfrega com os nós dos dedos indicadores. Permanece um tempo com as janelas da alma fechadas. Quando as abre novamente a paisagem lá fora era outra.
No início sente um pouco de tontura e pânico. Encosta a mão na parede e espera a sensação ruim passar. P.a.m. sorri em sua direção. Recupera o equilíbrio e a ardência nos olhos passa. Sente-se bem.
– Pronto, e agora? Não tô sentindo nada.
– Relaxa, é assim mesmo.
A amiga de Lou já estava em outra onda, já estava voando!
– Meu deus! O que é isso? O som tá dentro de mim! Vocês tão ouvindo isso? Essa música é ma-ra-vi-lho-sa! Uhhhhh! John Lennooooooon!!!
Tocava Tomorrow Never Knows.
Logo os quatro dançam como se o mundo fosse acabar. Amontoados no banheiro minúsculo. Fazendo dele sua própria boate. O vaso sanitário era o altar.
– Turn off your mind, relax and flow down the street. – Bel começa a cantar, e completa, falando muito alto – Nunca soube a letra dessa música, mas sempre cantei o primeiro verso assim.
– Uma vez falei pra um cara que essa era a nova música do Chemical Brothers e ele acreditou! Fantástico, não é? – A amiga de Lou fala mais alto do que o necessário – Beatles ainda está pra ser inventado, os caras tão muito a frente no tempo!
– Ah! Fala sério! Beatles é um saco! Eu odeio os Beatles!! E odeio mais ainda fã de Beatles!  – P.a.m. polemiza.
– Ah! Eu amo! – A amiguinha de Lou se adianta com os olhos arregalados e os dentes todos à mostra em um sorriso gigantesco.
– Eu também, baby – Lou responde. E tasca um beijo em sua nova namoradinha.
– Lou, você disse “baby”?! – P.a.m. pergunta.

Amizade e amor. Tesão e rock. Tudo misturado num banheiro apertado de boate. O amiguinho do mundo das fadas faz sua mágica. O efeito cresce. As paredes se estendem. O teto some, Bell é a primeira a perceber e aponta para o céu, estrelado como nunca tinham visto antes. Como só viam quando iam para o campo, onde não há prédios e postes. Um espetáculo de luzes e brilho. Toneladas de Glitter atiradas ao espaço por um deus do Glam Rock. Uma estrela cadente risca o céu deixando um rastro de saudade. A música não estava mais vindo de fora, ela não vinha dos alto-falantes. Ela vinha de dentro deles. Ela saía pelos ouvidos e pelas bocas. Eles podem sentir o gosto da música, e ela é agridoce, tem o gosto de festas e eletricidade. Seus pés não estão no chão. Ficam só curtindo aquela sensação de flutuar. Cada estrela no céu parecendo um vaga-lume que não se deixa pegar. Beijos que mais parecem explosões. Lábios em chamas. Risadas que mais parecem sinos. Sinos que avisam a chegada de uma nova Era. Uma era cheia de plenitude e prazer. Sem dores e sem dúvidas. Uma era repleta de música e felicidade. Cheia de aventuras com finais felizes. Compreensão, amor, sexo, inteligência e guitarras distorcidas.

Até que alguém de mal com a vida grita:
– Porra! Que merda é essa?!
Duas meninas querem usar o banheiro, mas é impossível. P.a.m. e Bell se beijam bem em cima da privada, Lou e a amiga se agarram logo na entrada, impedindo a passagem. Eles tinham entupido a torneira e a água cobria o chão.
– Meu deus, que mau humor! Relaxa gatinha. – Bell diz alisando o cabelo da menina.
Os quatro dão passagem e as duas amigas entram, xingando mais. Eles não param de rir. Rir é tudo o que conseguem fazer. Rir tinha se tornado a única forma de comunicação. Foram para o corredor e continuaram dançando. Lou reclama que está morrendo de sede.
– Cara, preciso comprar água! Ou outra cerveja! Ha ha ha ha!
Pega sua amada pela mão e saem quicando pelo corredor em direção ao bar. Mais frenético e agitado do que em qualquer momento em sua vida. Sem controle. Vivendo. Arriscando. P.a.m., por meio segundo, se preocupa com o amigo, mas só por meio segundo.

Terra do nuncaWhere stories live. Discover now