Prólogo

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Leyraq Razooc era conhecido pelo seu esforço nas tarefas que realmente importavam, mas infelizmente acabava deixando de lado aquilo que, em sua visão, poderia ser considerado banal ou desinteressante. Cabeça dura como só ele, sempre foi muito complicado  mudar qualquer tipo de opinião já presa em quem é. Felizmente, ganhou experiência ao longo de todos os seus cento e catorze anos de vida e isso lhe deixa com um sorriso no rosto.

Ao seu redor estende-se um mar de cadeiras e mesas de madeira em um prédio no formato triangular que mais parece um semicírculo quando visto da esquina movimentada de Marrulyo. Atualmente, apesar de muitos estudiosos avisarem de antemão, começou uma terrível chuva de relâmpagos com ocasionais momentos de calmaria onde somente uma chuva regular transforma a terra em lama. Algo que Leyraq não precisa se preocupar, tendo em vista que sua taverna está bem protegida contra grande parte das ameaças naturais ou arcanas que afligem a vida dos mortais. 

Uma taverna que construiu ao longo de uma vida e que está cheia de histórias que precisam ser contadas a todos aqueles que forem sonhadores o suficiente para ouvir.  O começo da noite chegou, mas hoje não seria um dia comum para Razooc. As janelas estavam cobertas por cortinas que nenhum vento poderia mover, as velas todas apagadas nos candelabros dispostos sob as mesas e, por fim, o grande portão repleto de inscrições mágicas estava trancado e emitindo uma leve vibração que esquentava a mão de quem aproximava-se. O engraçado do local, e o principal motivo de estar funcionando há tantos anos, é a maneira que fora construído. Uma estrutura robusta com mesas e cadeiras que magicamente se remontam quando quebradas em plataformas giratórias que fazem muitos ficarem tontos. A Espiral de Mil Giros é tudo que um adulto desejou quando criança e nunca teve, mas com muito álcool e magias incríveis. Uma descrição que fez Leyraq tornar-se conhecido na cidade, mesmo que visto muito pouco fora do estabelecimento. 

A pequena figura idosa possui bochechas caídas e uma cabeça raspada, a fim de nunca mais ver a calvície que o persegue desde novo. Tem olhos castanhos que refletem a luz da única vela acesa no local, além de um longo cavanhaque com bigodes enrolados na ponta que cultivou sem o auxílio de qualquer magia. Suas vestes longas quando comparadas com sua baixa estatura são desproporcionais e arrastam pelo chão quando o pequeno Prymonídeo anda. Seu tom de pele oscila entre tons esverdeados e brancos, chamando a atenção de quem o vê pela primeira vez. Na ponta de suas longas orelhas peludas, como a de um gato, se vê brincos feitos de madeira. Estava lendo um livro de couro tingido de roxo, escrito com uma língua certamente esquecida pela grande maioria. 

"P-Pai..." Uma voz surge de um dos corredores, sua filha mais velha tem receio em seus olhos. Estava pronta para mais um dia de trabalho na taverna, mas agora só está confusa. "O que está acontecendo aqui?! Porque está tudo fechado, desde quando não trabalhamos?"

"Calma, calma." Leyraq olhava para sua filha e tinha a certeza o quanto havia crescido. Corpo forte, mas ainda ágil. Sempre pronta para qualquer tipo de perigo ao seu redor. "Não olhe tão preocupada assim pra mim com esses seus olhos grandes! Eu explico tudo, tudinho! Antes, no entanto, chame sua irmã também! Ela também tem o direito de entender o que está prestes a acontecer, Lua."

Leyraq deu um pequeno salto do banco elevado que estava e levava o livro embaixo do braço. A diferença de altura dele e das filhas eram a mesma de uma criança para seus pais. Riu um pouco consigo mesmo,  lembrou-se da confusão que foi quando ambas começaram a ficar mais altas que ele. A estatura dos humanos é surreal quando em comparação com a de Prymonideos como ele. Em meio a estas memórias, encaminhou-se para o salão lateral em passos cansados. Ouvia alardes vindo do segundo andar e os passos apressados de ambas suas filhas correndo escada abaixo em direção ao pai. Ele as esperou em frente da lareira que as brasas estalavam e queimavam sem parar. 

Lua, a mais velha, tinha cabelos incrivelmente curtos, não queria dar chance de serem agarrados no meio de uma luta. Seu mestre de batalha a treinou bem, sem dúvidas. Roupas simples e amarraduras de couro faziam parte de quem era. Tomou a dianteira e sentou-se na poltrona próxima a lareira que Leyraq estava olhando. 

A irmã mais nova, Cristal, tinha cabelos chamativos e alegres. Lisos, longos e trançados, mas a lateral direita raspada. Usava sempre o vestido amarelo que o pai havia feito e lhe deu de presente com um sorriso no rosto. Desta vez, no entanto, o olhar era de preocupação. 

"Pai, o que está acontecendo?" Cristal perguntou controlando-se para não soltar uma piada nervosa em um momento como este. Leyraq fez um movimento com a mão e ela ficou quieta, ansiosa pela resposta do pai.

"Minhas queridas filhas, vocês sabem que as amo como ninguém, certo?" Ao ver a preocupação pesar para o lado do desespero, decidiu trocar a abordagem da conversa. "Olha, vocês são incríveis! Irmãs e rivais que chegarão onde nenhum mortal jamais pensou em ir, só não vão esquecer de mim quando chegarem ao topo!"

"Pai, você não está fazendo sentido! Explique do começo, porque a taverna está fechada?!" Lua questionou. 

"Não é a primeira vez que fecho ela, sabiam? Somente algo importante me obriga a fazer isso, então fiquem orgulhosas por serem. Só não demais!" Andou em círculos por alguns segundos e então escorou-se na coluna de pedra ao lado da lareira. Coçava seu antebraço de tempos em tempo, involuntariamente. "Acho que vocês já são sábias o suficiente para saberem uma parte do meu passado. Uma escolha que privei de vocês até saber que teriam o discernimento para decidirem com consciência em cima de um erro que cometi."

"Erro? Do que está falando?!" Cristal, a mais emotiva das duas, botou-se a frente e interrompeu o pai com sua pergunta. "Estamos em perigo, pai?"

"Perigo? Não, acho que não." Riu um pouquinho e segurou a mão da filha mais nova, abrindo um sorriso reconfortante. "Mas o que sempre disse sobre o perigo? Se você não está nele, certamente tem a escolha de estar."

"Cristal, deixe-o falar! Não está vendo que está sendo difícil pra ele?!" Lua já fora mais incisiva e isso conseguiu fazer com que sua irmã ficasse quieta e levemente magoada. "Que escolha teremos que realizar? Continue, por favor, pai!"

"Uma escolha que somente vocês podem fazer, algo que pode trazer a aventura que tanto anseiam nos seus sonhos! No entanto, a chance de perigos inimagináveis pode vir a permear o futuro de vocês..." Interrompeu o que dizia para carinhosamente segurar a mão de Cristal e com um olhar dizer que não tem por ficar triste pela preocupação da irmã. "A escolha é simples e surge na forma de uma pergunta, vocês gostariam de vir comigo procurar o restante da família?"

Vendo hesitação no olhar de ambas e as mil perguntas que espreitam em suas mentes, Leyraq bateu suas mãos bem forte e então voltou a falar, antes que a situação ficasse fora de controle.

"Acalmem-se! Tudo fará sentido, mas agora fiquem confortáveis nestas poltronas! Tenho uma história para contar que deixará a escolha mais fácil para vocês duas. A história da última vez que deixei a taverna fechada, anos e anos atrás."

O Conjurador de Mãos Onde histórias criam vida. Descubra agora