— Fé eu tenho, fé eu peço, Padre...
— Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deusvocê deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modereesse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é maismandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: "Jesus,manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso..."
E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelentemente, porqueera mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu:
— Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capinacom sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. Evocê ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora ea sua vez: você há de ter a sua.
E, lá fora, ainda achou de ensinar à preta um enxofre e tal para o gogo dosfrangos, e aconselhou o preto a pincelar água de cal no limoeiro, e a plantartomateiros e pés de mamão.
Meses não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. NhôAugusto comia, fumava, pensava e dormia. E tinha pequenas esperanças: deamanhã em diante, o lado de cá vai doer menos, se Deus quiser... — E voltoua recordar todas as rezas aprendidas na meninice, com a avó. Todas e muitasmais, mesmo as mais bobas de tanta deformação e mistura: as que o pretoengrolava, ao lavar-lhe com creolina a ferida da perna, e as que a pretamurmurava, benzendo a cuia d'água, ao lhe dar de beber.
E somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a vida jáse acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdia deDeus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente! O corpo estava estragado, pordentro, e mais ainda a ideia. E tomara um tão grande horror às suasmaldades e aos seus malfeitos passados, que nem podia se lembrar; e sómesmo rezando.
Espantava as ideias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foidando uma espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e faziacompridos progressos na senda da conversão.
Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o pretofabricara, já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de inícioconsistia em ir para longe, para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo— uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais queteria de ver, mas que era agora a única coisa que possuía de seu. Antes departir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito edificante e vasta. E,junto com o casal de pretos samaritanos, que, ao hábito de se desvelarem,agora não o podiam deixar nem por nada, pegou chão, sem paixão.
Largaram à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma verdadeiraescapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu osbraços em cruz, e jurou:
— Eu vou p'ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vezhá de chegar... P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negrosaplaudiram, e a turminha pegou o passo, a caminho do sertão.
Foram norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia eviajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo. Paraalém do Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, do PeixeBravo, dos Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos os muitos arraiaisjazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes morros e dos morros de cristaisbrilhantes, entre as varjarias e os cordões-de-mato. E deixavam de ladomoendas e fazendas, e as estradas com cancelas, e roçarias e sítios demonjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; emesmo as grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como osseus currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de sombra dascaatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das lagoas compatos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs e o Rio doSapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho, contra asserras azuis e as serras amarelas, sempre. Depois, por baixadas, comouteiros, terras mansas. E em paragens ripuárias, mas evitando a linha dosvaus, sob o voo das garças, — os caminhos por onde as boiadas vêm,beirando os rios.
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Sagarana- A hora e a vez de Augusto Matraga
Short StoryHistoria autoral de João Guimarães Rosa Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste...