— Chego até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem devinte braços, com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre,durmo em ponta de faca, e amanheço em riba do meu colchão!... Está aínosso chefe, que diga... E mais isto aqui...E mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegarpunhais pelo pico, para desarmar gente em agressão.Nhô Augusto se levantara, excitado:— Opa! Ôi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com asclavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria, p'ravoltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na frente, e nãodizer até-logo!... E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo,e arma-de-fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-de-lácorrendo e pedindo perdão!...Mas, aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar deacanhamento; suspirou e perguntou:— Mais galinha, um pedaço, amigo?— 'Tou feito.— E você, seu barra?— Agradecido... 'Tou encalcado... 'Tou cheio até à tampa!Enquanto isso, seu Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entornada, não tiravaos olhos de cima de Nhô Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir acachaça, bebeu também, dois goles, e pediu uma das papo-amarelo, para ver: — Não faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...— Pode gastar as óito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...— Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar,vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...Fez fogo.— Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um emdois... Ferrugem em bom ferro!Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou numdesânimo, que o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem dos seushóspedes, e, como o pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento,com uma fogueira acesa no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite,quando não houve mais nem um para contar histórias de conflitos, assaltose duelos de exterminação.Cedinho na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bemagradeceu muito o agasalho, e terminou:— O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, maseu estou lhe prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado epago, que o senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-daguarda combinaram, e isso para mim é o sinal que serve. A pois, se precisarde alguma coisa, se tem um recado ruim para mandar para alguém... Tiveralgum inimigo alegre, por aí, é só dizer o nome e onde mora. Tem não? Pois,'tá bom. Deus lhe pague suas bondades.— Vão com Deus! Até à volta, vocês todos. 'Té a volta, seu JoãozinhoBem-Bem!Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer:— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo quenão viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Nãoquero especular coisa de sua vida p'ra trás, nem se está se escondendo dealgum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer seamadrinhar com meu povo? Quer vir junto?— Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho BemBem...— Pois então, mano velho, paciência.— Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo,meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem!Aí, o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se curvoupara Nhô Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outros nãoescutassem:— Amigo, reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doençacom muitas dores e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...E o bando entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando umacantiga brava, de tempo de revolução:
"O terreiro lá de casanão se varre com vassoura:varre com ponta de sabre,bala de metralhadora..."
Nhô Augusto não tirou os olhos, até que desaparecessem. E depois seesparramou em si, pensando forte. Aqueles, sim, que estavam no bom,porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, epodiam andar no mundo, de cabeça em-pé... Só ele, Nhô Augusto, era quemestava de todo desonrado, porque, mesmo lá, na sua terra, se alguém selembrava ainda do seu nome, havia de ser para arrastá-lo pela rua-daamargura...O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que eracachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seuJoãozinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos —rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-omundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. Eh, mundo velho debambaruê e bambaruá!... Eh, ferragem!...E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mãomais dura...E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência,e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirarsua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão,que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atolasempre mais.Recorreu ao rompante:— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguémnão me faz virar e nem andar de-fasto!E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porqueele já viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qualhavia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assimparecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lheexperimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindotudo.E, assim, dormiram as coisas.Deu uma invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passavaos dias debaixo da chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma.Depois, entestou de pôr abaixo o mato, que conduzia até à beira do córrego osangicos de casca encoscorada e os jacarandás anosos, da primeira geração. Eera cada machadada bruta, com ele golpeando os troncos, e gritando. E ospretos, que se estavam dando muito bem com o sistema, traziam-lhe de vezem quando um golinho, para que ele não apanhasse resfriado; e, como parachegarem até lá também se molhavam, tomavam cuidado de se defender,igualmente, contra os seus resfriados possíveis.E ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que,agora, Nhô Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida nelelatejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um regresso eum ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer penitência, com atentação estimulando, com o rasto no terreno conquistado, com o perigo etudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir para o céu; e mesmo alembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo, como a fomedepois de um almoço cheio. Bastava-lhe rezar e aguentar firme, com o diaboali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente porhábito, quase, era que ia repetindo:— Cada um tem a sua hora, e há-de chegar a minha vez!Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as trêshoras fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que NhôAugusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho abola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de águasem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício deverdes cá em baixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver.Estava capinando, na beira do rego.De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacaspassava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Maisoutro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes,gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras maisjuntas.— Uai! Até as maracanãs!E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não seacabavam mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cimada gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grãode verdura — se sumindo no sul.— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, umaesquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo,brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: osúnicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins,os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, eque choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar oalarido — rrrl-rrril!rrrl-rrril!...Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Umbando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Meespera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, queavançava lá atrás.— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nasroças... Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito,sem as maitacas?!...O sol ia subindo, por cima do voo verde das aves itinerantes. Do outrolado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas.Todo anjo do céu devia de ser mulher.E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado:
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Sagarana- A hora e a vez de Augusto Matraga
Short StoryHistoria autoral de João Guimarães Rosa Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste...